• Nenhum resultado encontrado

A pesquisa em genética na Universidade de São Paulo

O processo de constituição da Universidade de São Paulo (USP) escapa ao escopo deste trabalho22, mas parte-se dela para compreender o processo de institucionalização da

pesquisa em genética, pois essa foi uma instituição chave que, através de processos complexos envolvendo atores, universidade e instituições de fomento, difundiu um modelo de pesquisa em genética para outras localidades do país. Embora a genética clássica tenha se difundido lentamente nas escolas agrícolas ao longo dos anos 1920 e 1930, muitos autores consideram que sua implantação definitiva se deu a partir de 1934, com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP e, principalmente, a partir de 1943, quando Theodosius Dobzhansky – biólogo russo com formação nos Estados Unidos – começou a fazer pesquisa no Brasil (SCHWARTZMAN, 1979; SIAO, 2007; GLICK, 2003; ARAÚJO, 2004).

Com a implementação da FFCL foi criada a Cadeira de Biologia Geral, que fazia parte do curso de História Natural23 e era composta por um professor titular, André Dreyfus24,

e seus auxiliares. Entre 1934 e 1943, trabalharam nessa cadeira os assistentes Edgar Barroso do Amaral, Rosina de Barros, Crodowaldo Pavan, Antonio Brito da Cunha; os auxiliares de ensino Marta Erps Breuer, Ruth Lange de Morretes e Elisa do Nascimento Pereira; e o preparador Edmundo Ferraz Nonato (FORMIGA, 2007, p. 41-2).

Na historiografia da ciência e em depoimentos de alguns de seus alunos, Dreyfus é considerado um autodidata, muito inteligente, mas sem formação específica em genética ou experiência em pesquisa experimental (FORMIGA, 2007; ARAÚJO, 2004; SCHWARTZMAN, 1979; BRIEGER, 2010; PAVAN, 2010). Crodowaldo Pavan, formado em história natural e aluno de Dreyfus, figura considerada chave no desenvolvimento da genética, afirma em entrevista:

Ele [Dreyfus] percebeu uma coisa, que o tempo todo dele era gasto em aulas, e nestas aulas ele se divertia a valer, mas ele estava percebendo que aquela base, a base científica que ele mesmo tinha, a base experimental, ele achava que era muito pouco para desenvolver um programa no nível que ele queria (PAVAN, 2010, p. 17).

22 Para a discussão sobre a criação da USP ver CARDOSO, 1986.

23 O curso de História Natural da USP começou a funcionar em 1935 e integrava disciplinas biológicas e

geológicas congregando os seguintes departamentos: mineralogia e metrografia, geologia e paleontologia, biologia geral, zoologia, botânica e fisiologia geral e animal. Ele permaneceu com esse nome até 1957, quando foi desmembrado em Ciências Biológicas e Ciências Geológicas, mas ainda pertencentes à FFCL. Com a Reforma Universitária, essa faculdade ganhou o nome atual – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – e os cursos de Biologia e Geologia se tornaram institutos: Instituto de Biociências e Instituto de Geociências.

E o Dreyfus estava numa situação incômoda, porque ele era categorizado em Ciências no Brasil, mas ele sabia das deficiências próprias. Quer dizer, ele sabia que aquilo que ele estava fazendo e que ele aprendeu sozinho, como um autodidata, tinha uma série de defeitos, ele conhecia muito bem a metodologia científica (...), mas ele percebia que com relação a técnica e trabalhos científicos experimentais mesmo ele tinha muitas deficiências (PAVAN, 2010, p. 24).

O caráter autodidata identificado em Dreyfus também é associado a outro dos primeiros professores de genética, Carlos Teixeira Mendes, da ESALQ. Essa maneira de fazer pesquisa, privilegiando os aspectos teóricos antes que os métodos experimentais, sofrerá uma mudança significativa, com o desenvolvimento da genética e inclusão do método experimental. As mudanças nas práticas de pesquisas se dá justamente com a chegada dos pesquisadores estrangeiros, Friedrich Brieger, Theodusius Dobzhansky e, em menor medida, Carlos Krug. Na USP essa mudança na prática de pesquisa se inicia a partir de 1943, influenciada pela presença de Dobzhansky e pela atuação da Fundação Rockefeller, tornando o departamento conhecido como a escola tropical brasileira de genética ou a escola de genética Dreyfus-Dobzhansky (FORMIGA, 2007, p. 43).

André Dreyfus foi contatado em 1942 pela Fundação Rockefeller através de um de seus funcionários em visita ao Brasil, Harry Miller Jr., assessor e diretor associado da Fundação nas áreas de medicina e ciências naturais na América Latina. Crodowaldo Pavan menciona em uma entrevista que, ao visitar a FFCL, Miller colocou à disposição de Dreyfus uma bolsa de pós-graduação nos Estados Unidos, de duração de um ano, para realizar pesquisa em laboratório e ministrar alguns cursos. Nas palavras de Pavan:

Miller, que desde logo sentiu as possibilidades de um bom trabalho no laboratório e o indiscutível talento do Dreyfus, ofereceu a este uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, mas com uma condição — Dreyfus deveria passar lá pelo menos um ano. Dreyfus ficou muito entusiasmado com o convite, mas no dia seguinte informou ao Miller que não poderia se ausentar durante tanto tempo do laboratório. Miller disse, então, que nesse caso ele poderia substituí-lo por um professor de origem russa, que estava na Universidade de Columbia. Esse professor estava empenhado em fazer pesquisas na América Central. Declinou o nome — "trata-se do Theodosius Dobzhansky"25. Ora, o Dreyfus ministrava seu curso baseado num livro de

Dobzhansky, por isso imediatamente replicou: "Se o Dobzhansky pode vir ao Brasil, não necessito ir aos Estados Unidos". Assim, Dreyfus perdeu uma excelente oportunidade de terminar sua formação no exterior, mas, em troca, gerou um fato de incalculável significado para o desenvolvimento da Genética no Brasil (ESTUDOS AVANÇADOS, 1993, p. 193).

25 Dobzhansky era um biólogo russo que, em dezembro de 1927, aos 27 anos, recebeu uma bolsa da Fundação

Rockefeller para trabalhar no laboratório de estudos sobre drosófila, de Thomas Hunt Morgan, na Universidade Columbia, Estados Unidos. (GLICK, 2008, p. 316). Dobzhansky tem seu nome relacionado à “Teoria Sintética da Evolução” – ou neodarwinismo –, movimento dentro da biologia que procurou integrar diversas disciplinas da área biológica, durante o período entre guerras (ARAÚJO, 2006, p. 7-8).

Dobzhansky tinha demonstrado interesse em passar algum tempo nos trópicos para coletar espécies tropicais de drosófilas que não seriam encontrados nos Estados Unidos e Europa. Não é por acaso que em sua primeira visita ao Brasil, além das atividades na USP, foi organizada uma expedição para Belém do Pará para coleta, e que a primeira atividade do grupo formado foi a descoberta e catalogação das novas espécies. É nesse sentido que podemos afirmar que a vinda para o Brasil era importante, do ponto de vista das intenções e planos de pesquisa do biólogo russo, podendo se falar em uma combinação de interesses, cujo resultado foi a aceleração do desenvolvimento da pesquisa em genética no Brasil e a possibilidade de estender o programa de pesquisa em populações selvagens de drosófilas para além daquelas provenientes de ambientes temperados.

Em estudo discutindo a importância da Fundação Rockefeller para a emergência da genética no Brasil, Tomas Glick (2003, p. 151-2) estabelece três fases para a Escola de Genética Dreyfus-Dobzhansky: 1) O período de 1943-1947, no qual são iniciadas as atividades de discussão sobre a obra de Dobzhansky e a introdução de metodologias científicas, mais precisamente a da pesquisa com drosófilas; 2) O período de 1948-1949, considerado a fase experimental, inciada com a segunda visita de Dobzhansky ao Brasil, quase toda devotada a estudar a genética das populações de duas espécies de drosófilas brasileiras; 3) O período de 1950-1956, no qual seria realizado um segundo projeto de pesquisa envolvendo uma rede de pesquisadores sobre temas relacionados à drosófila, e no qual se observa a criação de outros centros de pesquisa em genética no Brasil.

Para verificar o impacto produzido pelas diversas visitas de Dobzhansky no desenvolvimento da genética no grupo da USP e no Brasil, Monte Sião (2007) realizou um estudo bibliométrico compreendendo o período entre 1943 e 1960. Para tanto, realizou um levantamento bibliográfico extenso de artigos publicados por Dobzhansky em parceira com brasileiros e de artigos publicados pelos principais pesquisadores brasileiros que trabalharam nos projetos coordenados por Dobzhansky26. A partir desse levantamento, Sião afirma que não

existiram publicações de autores brasileiros sobre genética de populações com drosófila antes de 1943 e mostrou que as primeiras publicações dos brasileiros sobre este assunto surgiram após a primeira visita do geneticista russo ao Brasil, o que ajuda a corroborar a tese da importância de Dobzhansky para o início desse tipo de pesquisa no país.

26 Os brasileiros que mais publicaram no período analisado foram Antonio Brito da Cunha, Crodowaldo Pavan,

Rosina de Barros, Newton Freire-Maia, André Dreyfus, Antonio Geraldo Lagden Cavalcanti, Osvaldo Frota Pessoa, Antonio Rodrigues Cordeiro, Luiz Edmundo de Magalhães e Francisco Mauro Salzano (SIÃO, 2008a, p. 15).

O primeiro curso dado por Dobzhansky teve duração de três meses e foi frequentado por estudiosos de diversas instituições para além da USP, como é o caso de Carlos Krug do IAC e Friedrich Brieger de Piracicaba, cada um trazendo consigo de quinze a vinte de seus estudantes (BRITO DA CUNHA, 1990, p. 12):

Todos os biólogos importantes de São Paulo acompanharam as suas conferências, como Carlos Arnaldo Krug e Alcides de Carvalho, de Campinas; Friedrich Brieger e seus assistentes, de Piracicaba; Zeferino Vaz e João Veiga, da Veterinária; os pesquisadores do Instituto Biológico e do Instituto Butantan e alguns colegas da Medicina. Naquelas aulas o difícil era conseguir um lugar no auditório (ESTUDOS AVANÇADOS, 1993, p. 197). A chegada de Dobzhansky em 1943 parece ter motivado uma troca mais intensa entre os pesquisadores da USP, do IAC e da ESALQ, dando mais organicidade à pesquisa nas três instituições, como afirma Pavan: “com a chegada do Dobzhansky, passou a haver um intercâmbio permanente de nosso laboratório com os do IAC e da ESALQ. Coordenada pelo Dobzhansky, em 1943 organizamos a primeira Conferência Nacional de Genética, em Piracicaba” (ESTUDOS AVANÇADOS, 1993, p. 200). Nessa primeira visita, é possível dizer que Dobzhansky introduziu um grupo de discípulos brasileiros aos métodos da genética da drosófila, até então desconhecidos, e ensinou-lhe rudimentos de biologia de populações e da teoria evolucionista neodarwiniana (GLICK, 2003, p. 145). Essa introdução à genética de populações expandiu-se durante o ano sabático de Dobzhansky no Brasil, em 1948-1949.

Esse segundo período em que Dobzhansky permaneceu no Brasil consiste em um momento fundamental, pois foi quando a Fundação Rockefeller concedeu bolsas de estudos a vários pesquisadores brasileiros e estrangeiros, trazendo para São Paulo Antonio Cordeiro, de Porto Alegre, Chana Malogolowkin, Oswaldo Frota-Pessoa e Laden Cavalcanti, do Rio de Janeiro, Hans Burla, de Zurique, e Martha Wedel, de Buenos Aires (GLICK, 2008, p. 318)27.

Essas bolsas estavam relacionadas a participação em um grande projeto de parceria entre a USP e a Universidade de Columbia, cujo objetivo principal era investigar a variabilidade genética das espécies tropicas D. willistone e D. prosaltans (ARAÚJO, 1998, p. 50). O resultado do projeto de 1948 foi a publicação de onze trabalhos, no Brasil e nos principais periódicos estrangeiros da área, todos com a participação de brasileiros (PAVAN, 1950, p. 182), mostrando com mais clareza a influência marcante de Dobzhansky no desenvolvimento da genética e na formação de uma escola no Brasil (SIÃO, 2007, p. 214).

A terceira fase da escola Dreyfus-Dobzhansky foi marcada por uma visita de mais

27 Cordeiro e Cavalcanti criaram laboratórios de genética em suas universidades de origem após essa estadia

em São Paulo e Oswaldo Frota-Pessoa será um dos pesquisadores fundamentais da genética humana no Brasil.

três meses de Dobzhansky ao Brasil, em 1952, e pelo desenvolvimento de um segundo projeto de pesquisa que, como o primeiro, envolveria uma rede de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, entre 1955 e 1956, também com financiamento da Fundação Rockefeller. Esse segundo projeto era bastante ambicioso e tinha como objetivo fazer uma grande experiência que visava comparar a eliminação de genes letais naturais e genes letais induzidos por radiação. Para isso, diversas excursões foram feitas para Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, para fazer a soltura de populações de drosófila irradiadas em laboratório FORMIGA, 2007, p. 64). Esse segundo projeto não foi bem-sucedido devido a erros de planejamento (ARAÚJO, 1998, pp. 51-2)28.

Nessa terceira fase de Dobzhansky no Brasil, a partir de 1952, é detectado um decréscimo em relação ao número de publicações, e todas elas passam a ser de autoria de brasileiros, sem a participação de Dobzhansky (SIAO, 2007, p. 215). Razões levantadas para o declínio das publicações e o fim da parceria brasileira com Dobzhansky vão desde o relativo fracasso do projeto de Angra dos Reis, que resultou em uma série de atritos entre Dobzhansky e os pesquisadores brasileiros, até um suposto desejo de independência por parte desses últimos (ARAÚJO, 1998, p. 51). Além disso, os pesquisadores brasileiros foram desenvolvendo outros interesses para além da pesquisa com drosófila29.

Por fim, com o crescente desenvolvimento em genética humana, a partir do início da década de 1950, que também contou com apoio da Fundação Rockefeller, alguns pesquisadores foram atraídos por essa subárea. Os investimentos da Fundação Rockefeller, a criação da Sociedade Brasileira de Genética e a concessão de bolsas de estudos a alguns brasileiros relacionados à genética humana, já na década de 1950, tornaram os estudos com genética de populações com drosófila menos atraentes e teriam contribuído para a migração de alguns pesquisadores para uma nova modalidade de pesquisa que parecia mais promissora.

Mas mesmo com o fim da parceria com Dobzhansky, os brasileiros continuaram desenvolvendo trabalhos sobre genética de populações com drosófila, ainda que em menor quantidade (SIÃO, 2008b). Além disso, é nessa fase que se pode entrever alguns dos

28 Araújo (1998, pp. 51-52) discute algumas das razões para o fracasso relativo desse projeto. Teria havido

alguns erros de planejamento e mesmo falta de rigor na análise. Quando foram realizadas as análises do experimento principal, o resultado foi muito diferente do esperado e Dobzhansky considerou que isso era consequência de um erro, a troca de linhagens no momento da liberação das moscas, troca esta que teria sido feita por um pesquisador brasileiro e um pesquisador dinamarquês. Os colegas conterrâneos defenderam o pesquisador brasileiro, o que causou atrito entre eles e Dobzhansky.

29 Por exemplo, a diminuição das publicações individuais de Pavan sobre a genética de populações com

drosófila a partir do início da década de 1950 coincide justamente com o início de seus estudos com uma nova espécie, Rhynchosciara angelae, descoberta em uma de suas excursões em busca de drosófilas (SIÃO, 2007).

resultados do processo de institucionalização da pesquisa em genética no Brasil. Segundo Glick (2003, p. 157), até 1956 haviam 12 centros de pesquisa em genética difundidos a partir da FFCL. Como exemplo temos os centros de genética criados na Universidade do Brasil (RJ) e na Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS), a partir de estágios de pesquisadores dessas instituições na USP durante a estadia de Dobzhansky (OLIVEIRA, 2010, p. 5). A Fundação Rockefeller financiou grande parte desses estágios, no Brasil e exterior, assim como formações doutorais na Universidade de Columbia, e equipamentos para o estabelecimento e manutenção desses laboratórios.