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Uma diferenciação se faz necessária entre genética clássica ou mendeliana e essa nova genética. De maneira bastante esquemática é possível definir a genética clássica (a que os pesquisadores brasileiros se dedicaram até meados da década de 1980) e a genômica da seguinte maneira: 1) a genética mendeliana ou clássica é aquela que estuda a correlação entre um único gene e um traço (cor dos olhos, por exemplo) ou uma doença (monogênica). Entre humanos, esse conhecimento segue a análise do padrão familiar de repetição daqueles aspectos. 2) A genômica, por sua vez, é o estudo direto de genes, de suas funções e interações simultâneas. Além das doenças monogênicas, ela tem como objeto traços e doenças poligênicas e multifatoriais, que envolvem a interação entre diferentes genes e destes com fatores ambientais não-genéticos.

A expressão “nova genética” foi cunhada em 1980 por David Comings, editor da revista American Journal of Human Genetics, ao comentar as novas técnicas para análise do DNA (WILKIE, 1994). Até a descoberta do DNA, os genes só podiam ser estudados indiretamente, pelo rastreamento do modo como algum traço era hereditariamente transmitido ao longo das gerações. Esse é o caso dos estudos discutidos no capítulo anterior da presente dissertação e dos trabalhos das pesquisadoras do CEGH até final da década de 1980. As técnicas moleculares passaram a permitir aos pesquisadores examinar a variação, não mediante a investigação de alguma óbvia característica física ou traço bioquímico (o fenótipo), que podem não refletir plenamente a verdadeira constituição genética (o genótipo), nem pela procura das proteínas expressas pelo gene, mas pela análise direta do próprio DNA.

A descoberta da estrutura do DNA estipulou uma nova agenda para a genética. Afinal, os genes tinham uma corporificação molecular e química que, ao menos em princípio,

podia ser diretamente dissecada. Em vez de rastrear a transmissão de características capazes de saltar gerações antes de se expressar, os geneticistas podiam alimentar a esperança de analisar a química do próprio DNA.

A Biologia Molecular, ciência que promoveu o desenvolvimento de projetos genomas, desenvolveu-se ao longo do século XX e apresenta três marcos relevantes: o descobrimento da estrutura de DNA (1953), das técnicas de RNA recombinante (1970) e de novas técnicas e equipamentos (1995) que automatizaram o processo de sequenciamento do genoma de organismos vivos. A origem do termo biologia molecular é atribuída a Warren Weaver, especialista em matemática aplicada e diretor da Divisão de Ciências Naturais da Fundação Rockefeller entre 1932 e 1957. A Rockefeller teve um papel significativo na emergência e institucionalização da biologia molecular, sobretudo pela ação de Weaver, que impulsionou uma reformulação das políticas de financiamento em direção a um campo emergente de investigação, a biologia experimental, com o objetivo de que as ciências biológicas passassem a incorporar os avanços técnicos e teóricos da física e da química (KAY, 1993). Isso significou financiar todo um campo de investigação emergente, no lugar de líderes científicos isolados, o que, entre outras coisas estimulou uma ampla mobilidade de investigadores (KOHLER, 1976; ABIR-AM, 1992).

Foi visto no capítulo anterior a importância da Fundação Rockefeller para o financiamento e a organização da pesquisa em genética clássica até o final da década de 1960. No entanto, o fomento à biologia molecular, que já ocorria nas principais universidades americanas nesse período, não teve ressonância no Brasil. Não foram encontrados elementos que permitam concluir o porquê do não fomento à pesquisa molecular entre os pesquisadores brasileiros, mas ainda assim é possível levantar a hipótese de que isso ocorreu em parte devido a mudança no modo de financiamento, privilegiando o campo de estudos, e não os líderes científicos, como mostrou Abir-Am (1982). Também os custos muito mais elevados da pesquisa molecular podem ter contribuído, em grande medida, para a falta de financiamento nos centros de pesquisa de países periféricos como o Brasil.

O desenvolvimento da biologia molecular é um processo que se inicia na década de 1930, mas será em meados da década de 1960 que ela começará a obter um status cognitivo autônomo, condição fundamental para sua completa institucionalização (KREIMER; LUGONES, 2003). A partir de 1930 estava em marcha um processo que produziu uma série de diferentes confluências disciplinares que geraram paulatinamente a aceitação de um novo nível de análise: o nível molecular como o lócus sobre o qual dirigir o olhar para desenvolver

uma compreensão acerca da reprodução dos organismos vivos. A partir de 1950 o termo “biologia molecular” começa a se difundir mais amplamente, com o início da publicação do Journal of Molecular Biology.

No fim da década de 1950 havia três campos de estudo em biologia molecular, relativamente separados (KREIMER; LUGONES, 2003):

1. Estrutural: Estudo da arquitetura das moléculas biológicas, concentrado em três grupos: grupo capitaneado por Linus Pauling, no California Institute of Technology (Caltech)47; grupo de Max Perutz, no Cavendish Laboratory em

Cambridge; grupo liderado por Rosalind Franklin e Maurice Wilkins no King's College de Londres.

2. Bioquímico: Estudo da interação entre moléculas biológicas no metabolismo celular e hereditariedade, desenvolvido pelo grupo francês de Lwoff, Jacob, Monod e Wollman, no Instituto Pasteur, em Paris48.

3. Informacional: Estudo das maneiras pelas quais a informação é transmitida de uma geração de organismos para outra, e da translação de informação em moléculas biológicas, desenvolvido pelo autointitulado “Grupo do Fago”, liderado por Delbrück, Luria e Hershey49.

No que diz respeito aos espaços institucionais, a biologia molecular se desenvolveu, em princípio, em três países: EUA, Inglaterra e França. Um dos motivos para isso é que a biologia molecular é uma empresa muito mais custosa do que foi a maioria dos campos mais antigos da biologia, e por isso só podia ser empreendida em grande escala por países ricos (GARLAND, 1983).

Em 1953 foi publicado pela primeira vez – por James Watson e Francis Crick – que a estrutura do DNA é a de uma dupla hélice50. Entre 1953 e 1963 tiveram lugar outros eventos

importantes para a consolidação da biologia molecular, como os trabalhos do grupo bioquímico francês sobre o modelo do operon51, os trabalhos de cristalografia da equipe

47 A importância da Caltech para a emergência da biologia molecular e de uma “visão molecular da vida” foi

discutida em detalhe por KAY, 1993.

48 Cf. GAUDILLIÈRE,1993 49 Cf. MULLINS, 1972

50 O modelo da estrutura do DNA proposto por Watson e Crick propiciou uma compreensão físico-química de

todo o conjunto de requisitos para o gene material estabelecidos pela genética clássica: ele explicou a natureza da sequência linear dos genes; sugeriu um mecanismo para a exata replicação dos genes (bem como para a síntese de RNA a partir de DNA); explicou quimicamente a natureza das mutações; e mostrou como mutação, recombinação e função são fenômenos separáveis no nível molecular (EL-HANI, 2005).

51 JACOB; F; MONOD, J. On the regulation of gene activity, Cold Spring Harb. Symp. Quant., 26, pp.

inglesa no Cavendish Laboratory que estabeleceram a estrutura molecular da hemoglobina, e o estabelecimento da primeira sequência de aminoácidos de uma proteína, a insulina, por Sanger, em Cambridge. Todas essas descobertas, agraciadas com o prêmio Nobel, foram gradualmente mudando o foco da pesquisa para o DNA (KREIMER; LUGONES, 2003).

Durante muito tempo, no entanto, a biologia molecular estava restrita ao estudo de vírus, bactérias e outros organismos mais simples. A explicação reside no fato de que o DNA das bactérias está organizado em um único cromossomo, em contraste com as células muito mais complexas dos eucariotos, como fungos, plantas e animais. É por isso que muitos autores destacam as contribuições da microbiologia para a biologia molecular (GAUDILLIÈRE, 1993), além das contribuições da bioquímica e da física.

A importância do estudo da genética de microrganismos – no que diz respeito aos propósitos do presente trabalho, a saber, a utilização das técnicas moleculares na genética humana – reside na descoberta de uma bateria de enzimas, produzidas por bactérias e vírus, que podem ser usadas na manipulação do DNA:

Gradualmente, quase sem o perceber, os pesquisadores começaram a reunir um poderoso instrumental que lhes permitia “editar” o texto genético escrito na hélice dupla. Descobriram tesouras moleculares com que podiam cortar um fragmento de texto e uma fita adesiva biológica para colar os pedaços de texto editado. Mais importante que tudo, começou-se a perceber que o conjunto microbiano de ferramentas para a edição do DNA era capaz de localizar textos específicos dentro do DNA (WILKIE, 1994, p. 71).

Na seção seguinte será brevemente discutida a inserção da genética de microrganismos no contexto local, não simplesmente em termos de “difusão” e “recepção”, mas tentando compreender a maneira pela qual aqueles atores inseridos no contexto local, com instituições não estáticas, vão se relacionando com a pesquisa feita nos grandes centros e de que maneira vão a adaptando, articulando e negociando, de acordo com as possibilidades realmente existentes.