• Nenhum resultado encontrado

Os pioneiros e a genética molecular e de microrganismos

Na seção anterior foi enfatizado como a genética de microrganismos teve uma contribuição decisiva para o desenvolvimento das técnicas de biologia molecular com descobertas que culminaram em modificações substanciais do conceito do gene, com a decifração do código genético, a elucidação dos sistemas de regulação gênica e muitos outros avanços. O notável desenvolvimento da genética microbiana e o efetivo aparecimento da biologia molecular levaram, nos anos 1970, à introdução de novas tecnologias de

manipulação gênica, principalmente técnicas conhecidas popularmente como Engenharia Genética ou Tecnologia do DNA recombinante, sendo que a contribuição dada pelos microrganismos à genética expandiu-se para as outras subáreas da genética: a possibilidade de obtenção de células isoladas de animais e plantas superiores e seu cultivo in vitro permitiu a utilização das técnicas de microrganismos factíveis de serem empregadas em praticamente todos os seres vivos.

Antes de passar propriamente para a introdução das técnicas da biologia molecular no CEGH, é importante delinear brevemente o espaço que a pesquisa em genética de microrganismos teve no país. Primeiramente, em paralelo ao declínio do financiamento da Fundação Rockefeller, há também um declínio da importância da pesquisa com drosófilas no cenário internacional, como identifica um dos pioneiros da pesquisa em genética de drosófila no Brasil, Antonio Cordeiro, em 1977:

Agora a [Universidade de] Columbia não tem mais Genética de drosófilas. Foi o Morgan que fez a escola dele lá, que contribuiu e elucidou, praticamente, toda a Genética de drosófila.

Por que a Columbia não tem mais Genética de drosófila?

Porque não tem. Os bioquímicos e os geneticistas de bactérias tomaram conta, expulsaram os drosofilistas. Não há mais nenhum rastro de Morgan, nem descendentes dele (CORDEIRO, 2010, p. 25).

Como observado, foi na Universidade de Columbia que os drosofilistas brasileiros se especializaram. Columbia era a universidade mais reconhecida no estudo dessa espécie, pois foi nela que Thoman Hunt Morgan trabalhou durante grande parte de sua carreira e formou o maior número de seus discípulos, como Dobzhanski. Tentando explicar por que o início da pesquisa em genética no país se deu com as drosófilas, outro pioneiro, Salzano, afirma:

São fatores históricos. A drosófila foi o organismo que o Morgan, um dos

fundadores da Genética clássica, utilizou para estudar a Genética, na década de dez, algum tempo depois da redescoberta das leis de Mendel. Estava se procurando um organismo que fosse interessante e o Morgan, nos Estados Unidos, escolheu justamente esse inseto, que se mostrou muito útil para suas pesquisas. Toda base da Genética clássica foi desenvolvida utilizando a drosófila como organismo. Então era natural que nós, no momento em que iniciássemos esse trabalho, também o utilizássemos. Ainda mais que o Dobzhansky era um discípulo de Morgan, tendo trabalhado muitos anos com ele, na década de vinte (SALZANO, 2010, p. 36, grifo meu).

Nesse sentido, a supressão da genética de drosófilas52 na Universidade de Columbia

52 Não que a pesquisa com essa espécie tenha deixado de ser produzida, mas ela foi perdendo espaço relativo

frente a outras espécies. Mesmo assim, foram realizados sequenciamentos de várias espécies de drosófila, sendo o primeiro realizado em 2000, como resultado de um consórcio envolvendo o grupo do Projeto Genoma de Drosophila de Berkeley, da Universidade da Califórnia, e a empresa americana Celera Genomics (FAPESP, 2001). Para o detalhamento desse processo ver DAVIES, 2001.

é uma evidência importante do declínio desse tipo de pesquisa nos grandes centros, com o desenvolvimento da genética de microrganismos e da biologia molecular. Como discutido no capítulo anterior, a ênfase na pesquisa em drosófila no Brasil teve, para além da criação de uma escola de genética no país, duas outras consequências. A primeira delas foi permitir que os pesquisadores brasileiros se inserissem na comunidade científica internacional, a partir de seus trabalhos. Isso foi possível, em grande medida, pela decisão de enfatizar as espécies tropicais, não disponíveis nos países centrais. Esta foi uma diretriz sugerida por Dobzhansky, mas que teve grande aceitação dos cientistas brasileiros53, como visto no capítulo anterior.

Pavan descreve com mais detalhes essa escolha:

[Uma] possibilidade foi discutida entre o Dreyfus, Dobzhansky e eu ouvindo, era de que o melhor seria escolher poucos campos, o melhor seria escolher organismos tropicais, que não estavam sendo trabalhados nos países mais avançados (…). Eu acho que foi uma proposta não só válida, mas extremamente útil para nós, porque com esta filosofia de todos trabalharmos só em drosófila no departamento, a fama do departamento realmente se tornou internacional e chegamos a ter um dos melhores laboratórios de Genética de drosófila do mundo (PAVAN, 2010, p. 29).

Agora, para nós a Drosophila foi extremamente importante porque conseguiu fazer com que o grupo de brasileiros trabalhasse num problema de fronteira com material nosso, sem muita competição internacional e produzindo trabalho de repercussão lá fora. A grande vantagem que eu vejo na Drosophila é que esse pequeno grupo de pessoas que começou teve uma grande influência na formação genética dos estudantes […] e fez o progresso da genética (PAVAN, 2010, p. 82).

A partir dessas duas citações fica claro que a escolha de trabalhar com organismos tropicais permitia aos pesquisadores brasileiros se inserir na pesquisa internacional, sem ter que competir diretamente com outros centros de pesquisa. Essa escolha, aliada ao trabalho dedicado dos pesquisadores e a formação das novas gerações, permitiu que o laboratório de genética de drosófila da USP fosse considerado um dos mais importantes do mundo, com diversas publicações em revistas de destaques, sobre taxionomia, citologia, citogenética e ecologia de espécies tropicais de drosófila (PAVAN, 2010, p. 37), pois até aquele momento não se conheciam as espécies brasileiras, sendo que Dobzhansky e Pavan classificaram mais de 50 delas (CORDEIRO, 2010, p. 14).

No entanto, a criação de um nicho específico de pesquisa, fortemente ligado à tradição local, a partir da pesquisa com espécies de drosófilas do mundo tropical que nenhum

53 Dobzhansky, inclusive, criticava duramente aqueles pesquisadores que tinham intenção de mudar de tema,

afirmando que eles se aventuravam ao trocar um problema genético seguro, com resultados concretos por outras questões em que teriam que competir com outros laboratórios mais bem equipados no exterior (KERR, 1990).

europeu ou norte-americano poderia estudar, teve outra consequência, a de limitar o horizonte de pesquisa e atrasar a entrada dos pesquisadores brasileiros na genética de microrganismos. Assim, em certa medida, devido às especialidades dos pioneiros da genética brasileira e de seus discípulos, a genética de microrganismos não foi, após o seu enorme sucesso no exterior, imediatamente introduzida no Brasil. Houve esforços isolados, entre 1940 e 1960, mas estes careceram de continuidade e vieram de grupos mais voltados à área de microbiologia e biofísica do que propriamente à genética (PIZZIRANI-KLEIRER; AZEVEDO).

A identificação da genética de microrganismos e da genética molecular como subáreas importantes, cujo desenvolvimento no cenário internacional era acelerado, foi feita pelos geneticistas pioneiros, tanto que, como foi citado no capítulo anterior, no final dos anos 1950 foi criada a Comissão de Genética de Microrganismos e Genética Molecular, pela SBG. No entanto, em 1977, essas subáreas ainda eram vistas como pouco desenvolvidas:

Na questão dos microrganismos, apesar de esforços como os da Sociedade Brasileira de Genética, que tentou incentivar esses estudos, o número de pessoas que se dedicam à pesquisa é pequeno. E em Genética molecular é menor ainda. Isso é inevitável devido à própria situação do país, em que existe a dependência completa de material importado para essas pesquisas.

E essas pesquisas dependem de bastante material?

É um nível de sofisticação enorme. O futuro dessa área no Brasil é ainda muito nebuloso, justamente pelas restrições às importações.

Quais os centros onde está começando a se desenvolver esse tipo de Genética?

Genética de micro-organismos? Tem gente boa como o prof. F. S. Lara, que trabalha em problemas similares aos do Pavan, ambos na USP. Em Ribeirão Preto [tem o] M. Sanaia, que é muito bom. Em Piracicaba, o João Lúcio de Azevedo, trabalhando em fungos. Tem o Maury Miranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Darcy Fontoura. São mais ou menos cinco (SALZANO, 2010, p. 29-30).

Na área de Genética de micro-organismos e Genética molecular, que não estão tão desenvolvidas no Brasil como no exterior. Se a pessoa quer montar uma linha de pesquisa original, provavelmente ainda seria muito importante que fosse fazer o doutoramento fora (SALZANO, 2010, p. 39).

Como dito na seção anterior, um dos motivos para o desenvolvimento menor dessas subáreas é o aumento considerável dos custos desse tipo de pesquisa, aliado a dificuldade de importação do material necessário para a sua realização. Por exemplo, Salzano (2010, p. 13) considera que o sucesso menor da Comissão de Genética de Microrganismos e Genética Molecular pode estar relacionado ao fato de que foi criada já no final do período de auxílio da Fundação Rockefeller. No entanto, a diminuição do financiamento não parece ser a única limitação que esse tipo de pesquisa encontrou nos departamentos de genética. É possível dizer

que existia uma tradição científica que, de algum modo, restringia uma maior dedicação a essa área; o foco nas espécies tropicais de genética forjou, de certa forma, uma maneira de fazer pesquisa, e uma concepção de pesquisa, que dificultava aos pesquisadores considerar que era mesmo importante apostar nessa linha. Imbuídos da noção de que era melhor não competir diretamente com os grandes centros, era difícil apostar nesse tipo de pesquisa:

O problema é o seguinte (isso eu estou defendendo há muito tempo e foi o princípio básico, inclusive do departamento): é nós fugirmos da competição quando ela se mostra desnecessária, não interessa nós tentarmos competir com os americanos ou com os europeus ou com os japoneses se nós podemos, trabalhando com um organismo nosso em que eles não podem trabalhar, em que, em que não haja competição, fazer uns trabalhos tão importantes e num nível superior [ao que] eles podem fazer no exterior (PAVAN, 2010, p. 81).

Porque um dos problemas que nós temos aí, uma consciência bem esclarecida, pelo menos no caso da genética, de não tentarmos desenvolver coisas que nós vamos competir com o mundo lá fora e produzir trabalho como lá fora (PAVAN, 2010, p. 94).

A opção pela não competição direta, que fez com que os geneticistas brasileiros apostassem nas espécies tropicais de drosófilas reaparece, então, quando passam a discutir o desenvolvimento da pesquisa em genética no país, a partir do diagnóstico das grandes transformações ocorridas nos grandes centros de pesquisa:

Um geneticista que está querendo fazer Genética de bactéria, que é feita de maneira tremendamente sofisticada em outros lugares, leva uma desvantagem terrível no Brasil. Tem que estar muito constantemente em contato, tem que, com muita habilidade, escolher tópicos ainda não explorados e agir muito rápido, pois os outros agem muito rápido também por que essa é uma área da Genética muito “quente”. Se escolhe um organismo que não existe em outros lugares, que é peculiar no Brasil, isso lhe dá uma vantagem sobre os outros pesquisadores e pode descobrir coisas (CORDEIRO, 2010, p. 66).

Vê-se a partir dessa citação a tentativa de novamente encontrar organismos e problemas que não existiam nos grandes centros, de modo a manter uma inserção na comunidade científica internacional, sem precisar competir diretamente. A ideia da aceleração das descobertas e a metáfora da corrida marca o desenvolvimento da biologia molecular e da genética de microrganismos, e a opção que os pioneiros citados defendem é a não participação direta nessa corrida:

Competir com este resto de pessoal não é vantagem, porque já tem milhares de laboratórios, milhares não digo, mas já deve ter mil laboratórios atualmente trabalhando no assunto e esse pessoal está muito bem equipado e não tem mistério, uma vez que um obtiver a coisa, o resto vai levar seis

meses, mas vai conseguir, porque toda a metodologia está baseada em coisas publicáveis (…). Então o que nós precisamos, a meu ver, é ter um grupo capaz de acompanhar se não totalmente pelo menos na área de coisas que nós temos a possibilidade de acompanhar o progresso e dizer: esse problema já pode ser aplicado no Brasil (PAVAN, 2010, p. 72).

A não participação implica no acompanhamento sistemático dos desenvolvimentos dessa área, a formação de pesquisadores com familiaridade com o tema, de modo que permita aplicar o conhecimento desenvolvido a problemas brasileiros:

Então, o que eu estou querendo é não fazer com que existam grupos brasileiros competindo com grupos internacionais, mas ter grupos brasileiros que trabalhem em problemas que possam ou não estar diretamente relacionados com Engenharia Genética, mas que eles possam acompanhar a literatura e no momento que um problema desses surgir com possibilidade de aplicação no Brasil, reúne esses grupos, pessoas que estão fazendo cultura de tecido de plantas, fazendo Bioquímica de DNA, podendo já existir alguém no Brasil fazendo transplante de gene (PAVAN, 2010, p. 70).

Ou seja, é necessário formar pesquisadores nessa área, mas o financiamento desse tipo de pesquisa deve estar relacionado à possibilidade de sucesso, em um contexto em que a pesquisa internacional é mais rápida e tem mais recursos. Vista por esse prisma, a opção pela não competição torna-se também uma contingência, uma forma ativa de fazer pesquisa, mas limitada por um contexto de aceleração e altos custos54.

Pela escassez de material, não é possível afirmar que essa visão era compartilhada por todos os pioneiros, apenas por Pavan, Cordeiro e, em menor medida, por Salzano, a partir das longas entrevistas que eles concederam em 1977 para um projeto de história da ciência. O fato de essa discussão ter sido feita pelos pioneiros indica também que esse era provavelmente um debate em andamento dentro do grupo dos geneticistas, debate esse que provavelmente abarcava posições contrárias a “opção pela não competição”, posições que acabaram obscurecidas. Buscar retraçar – no grupo dos geneticistas e nos cientistas brasileiros como um todo – essas posições polarizadas (opção pela não competição com enfase em questões “brasileiras” e tentativa de fazer ciência de ponta, independente do contexto local) mantem-se uma questão a ser trabalhada por pesquisas futuras.

Além de tudo, a visão de que a ciência deve estar atrelada aos problemas brasileiros leva a uma discussão antiga e ampla, da qual a presente dissertação não pretende dar conta. O que foi dito até aqui visa contextualizar as seções seguintes que tratam da incorporação das técnicas moleculares pelas geneticistas do CEGH. Além disso, acredito que essas falas dos pesquisadores pioneiros fornecem elementos para aprofundar o delineamento da tradição local

de pesquisa em genética e discutir a inserção dessa pesquisa no contexto internacional. Esse tema será retomado na seção final deste capítulo.