• Nenhum resultado encontrado

Da genética de microrganismos à genética humana

A contribuição principal da genética de microrganismos e da biologia molecular como um todo para a pesquisa feita pelos membros do CEGH, reside, em um primeiro momento, na criação de técnicas que auxiliavam na pesquisa em genética humana, mas é com o advento da tecnologia do DNA recombinante que o cenário da genética humana vai mudar drasticamente (RHEINBERGER, 2000). Relato desse processo pode ser visto na trajetória de uma das pesquisadoras do CEGH:

Eu fiz mestrado em 1985... Então quando chega 1985, essa revolução da tecnologia DNA recombinante, essa genética molecular, ela sai da genética de bactéria e ela chega a aplicações nos humanos, para identificar mutações nos genes humanos, especialmente as responsáveis pelas doenças hereditárias. Isso estava chegando, entendeu? Então embora no meu mestrado eu tenha trabalhado com técnicas cromossômicas, macroscópicas, microscópicas, cultura de células, o mundo da genética humana já estava fervilhando, aguardando a grande evolução das técnicas moleculares. E foi exatamente o que aconteceu no começo do meu doutorado. Então do começo do meu doutorado em diante eu tive que fazer uma transição dos cromossomos para a molécula do DNA, e aprender a lidar com um monte de técnicas relativamente novas no Brasil, e tentar aplicá-las na resolução de problemas das doenças humanas (entrevista com pesquisadora sênior 4). Foi a partir de 1970 que o desenvolvimento de técnicas foi permitindo de forma mais consistente a migração das bactérias para os humanos, com destaque para o desenvolvimento da técnica de corar e examinar cromossomos ao microscópio (a cariotipia), o desenvolvimento das técnicas de DNA recombinante e da eletroforese em gel, que permite a classificação de DNA pelo tamanho (WILKIE, 1994). O primeiro DNA recombinante foi construído em 1971 na Universidade de Stanford por Paul Berg, David Jackson e Robert Symons. Em 1973, na mesma universidade, aprendeu-se a multiplicá-lo: a disponibilidade de DNA puro em quantidades suficientes para a análise transformou em grande medida o campo da genética humana.

Além disso, a possibilidade de distinguir um fragmento de DNA de outro é crucial para o mapeamento de genomas, pois a identificação de sondas de DNA associadas a genes específicos permite aos pesquisadores localizar a região de um cromossomo em que o gene reside. Com o desenvolvimento da “hibridização in situ” os cientistas passaram a ser capazes de identificar diretamente a localização de um gene e, quando associada a cariotipia, permite

distinguir dentro de qual das bandas do cromossomo a sonda de DNA foi hibridizada, o que acrescenta mais detalhes ao mapa em grande escala do genoma humano (WILKIE, 1994, p.80). Outro marco fundamental para o desenvolvimento da nova genética humana deu-se em 1977, quando Fred Sanger na Inglaterra e Walter Gilbert e Alan Maxam, nos Estados Unidos, desenvolveram independentemente métodos para a leitura rápida da sequência de pares de bases em qualquer trecho do DNA.

Em meados da década de 1980 tornou-se disponível uma técnica radicalmente nova que permitiu produzir bilhões de cópias de um único fragmento de DNA, sem a dificuldade de introduzi-lo num vetor por meio de engenharia genética e multiplicá-lo em bactérias. Essa nova técnica chama reação em cadeia da polimerase (PCR)55:

O procedimento demanda cerca de quatro horas e é simples: adicione as substâncias bioquímicas apropriadas e ponha a mistura numa máquina especial. Os reagentes químicos custam umas duas libras e o preço da máquina é mais ou menos a metade do de uma fotocopiadora comercial de escritório. A PCR usa um único filamento de DNA como molde e reconstrói a hélice dupla costurando-lhe um filamento complementar. Em seguida a hélice dupla é desnaturada por aquecimento e os dois novos filamentos funcionam como moldes para duas novas hélices (WILKIE, 1994, p. 82). Um dos primeiros triunfos da introdução das técnicas da biologia molecular em genética humana ocorreu em 1986, quando Tony Monaco, do Hospital para crianças de Boston, e Louis Kunkel, de Harvard, identificaram o defeito genético responsável pela distrofia muscular Duchenne (WILKIE, 1994, p. 35). Mas já em 1981, Kay Davies e J. M. Murray, da Escola de Medicina do Hospital St. Mary, em Londres, começaram a procurar não proteínas, mas marcadores genéticos, fragmentos característicos e reconhecíveis do DNA de portadores da doença que pudessem ser associados com a Distrofia da Duchenne. O sucesso de seu trabalho desencadeou esforços internacionais para definir a localização exata desse distúrbio genético dentro do DNA humano, que culminou na descoberta de Kunkel e Monaco. A partir da especificação genética, foi identificada uma proteína até então desconhecida, que chamaram de distrofina. Era a primeira vez que uma proteína envolvida em uma doença foi identificada a partir da análise direta de seu gene.

Três anos depois do isolamento do gene da distrofia muscular, a “nova genética” registrou mais um êxito, dessa vez com relação ao defeito monogênico mais comum entre os europeus do norte: a fibrose cística. A busca se desenvolveu por mais de uma década e envolveu equipes de trabalho na Europa e América do Norte em uma frenética corrida

transatlântica entre pesquisadores da Escola de Medicina do Hospital St. Mary, em Londres, dirigido por Bob Willianson, um grupo da Universidade de Utah, dirigido por Ray White, e uma equipe mista Estados Unidos – Canadá, liderada por Francis Collins, da Universidade de Michigan e Lap-Chee Tsui, da Universidade de Toronto. (WILKIE, 1994).

Uma vez que um defeito genético tenha sido precisamente localizado – como é o caso da distrofia de Duchenne e da fibrose cística –, a primeira aplicação do novo conhecimento tende a ser a criação de testes para identificar os indivíduos que são portadores da mutação e que, portanto, correm o risco de adoecer em decorrência do defeito, ou transmiti-lo aos filhos. Outros desdobramentos seriam a cura ou tratamento de doenças genéticas, etapa que ainda hoje encontra-se em estado incipiente.

A seleção de alguns acontecimentos, descobertas e técnicas brevemente revistos até então, estão longe de fazer uma descrição exaustiva dos muitos e múltiplos desenvolvimentos da biologia molecular. Optou-se por privilegiar, além de necessários elementos de contexto sócio-cognitivo, aqueles que foram mais diretamente relevantes para o desenvolvimento da pesquisa nos laboratórios que compõe o CEGH, a partir dos anos 1980, a saber, o descobrimento da localização específica do gene da distrofia muscular, da proteína distrofina, o desenvolvimento das técnicas de DNA recombinante, da hibridização in situ, do PCR. São esses – e muitos outros – os elementos presentes nas entrevistas, quando os pesquisadores, juniores e seniores, são convidados a descrever suas pesquisas.