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CAPÍTULO 1 – ASPECTOS HISTÓRICOS E EPISTEMOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE

1.10. A pesquisa e a reflexão como instrumentos de ação e de formação

1.10.1. O professor-pesquisador

As ideias da pesquisa e da reflexão como instrumentos para a formação de professores não foram originadas ao mesmo tempo, nem pelos mesmos estudiosos da área. Elas são inspirações de um movimento internacional de profissionalização do ensino que teve início em meados da década de 1970 e se expandiu nas décadas seguintes. Este movimento, de cunho político e ideológico, influenciou pesquisadores universitários na construção de um repertório de conhecimentos profissionais para o ensino com validade científica. Desta forma, o repertório de conhecimentos ganharia legitimidade e teria eficiência garantida quando eles fossem utilizados em propostas que visassem à melhoria da qualidade do ensino (BORGES e TARDIF, 2001).

Nesse cenário de transformações, os conceitos de professor-pesquisador e professor- reflexivo começaram a circular pelas universidades como propostas para a formação de professores segundo uma nova forma de compreensão de escola, mais complexa, e como meio de transformação social. O conceito de professor-pesquisador ou de educador-pesquisador foi resultado de um movimento presente na história da educação originado entre o final do século XIX e o início do século XX. Na década de 1950, o conceito foi ampliado para o de professor (da educação básica) que pesquisa sua própria prática (pesquisa-ação) e estendido para um conceito que compreende a pesquisa como meio de transformação social. (DINIZ-PEREIRA, 2002; ZEICHNER, 2008).

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Historicamente, o movimento do professor-pesquisador tem diferentes raízes. Na Inglaterra, o movimento foi iniciado com John Dewey (influente nas ideias de professor- reflexivo), revitalizado por Lawrence Stenhouse e ampliado por John Elliot na década de 1970, com a ideia de pesquisa-ação colaborativa, como sendo a pesquisa realizada pelos professores a partir de sua prática docente na escola e/ou na sala de aula (LÜDKE, 2001; DINIZ-PEREIRA, 2002).

Nas décadas de 1960 e 1970, um modelo de pesquisa-ação, a pesquisa participante, foi desenvolvido na América Latina sob os ideais dos estudos de Paulo Freire. A pesquisa-ação, neste movimento, tinha um engajamento social e se diferenciava da pesquisa-ação inglesa porque se preocupava com princípios que levariam à emancipação político-social dos seus envolvidos. Diferentemente do modelo inglês e acadêmico, a pesquisa participativa pressupunha a integração da teoria e da prática e ambos, a comunidade e os pesquisadores produziam conjuntamente conhecimento crítico com a finalidade de transformação social (DINIZ-PEREIRA, 2002).

Mais recentemente no Brasil, estudiosos influenciados pelos movimentos de professor- pesquisador têm discutido a legitimidade e a validade da pesquisa na formação de professores e na prática docente desses professores. A adesão aos princípios do movimento por pesquisadores e formadores brasileiros se deveu a uma mudança de concepção sobre a natureza do trabalho docente. O professor, que era considerado um sujeito passivo na ação de educar até a década de 1970, visto apenas como transmissor de conhecimentos, passou a ser visto como um profissional ativo, crítico e que concebe a educação como meio de transformação social, política e cultural.

A pesquisa na formação do professor e como instrumento de reflexão da prática docente apresenta atualmente, pelo menos, três enfoques nos estudos brasileiros. Estes enfoques compartilham da ideia de valorização da pesquisa feita pelo professor e da pesquisa como forma de intervenção política do sujeito crítico e criativo (seja ele aluno ou professor) e de integração entre teoria e prática na construção do conhecimento. No entanto, divergem quanto às concepções de pesquisa (tipos) e a natureza da pesquisa desenvolvida pelos professores da educação básica. Num enfoque mais epistemológico do conceito de professor-pesquisador, Diniz-Pereira (2002) tenta legitimar a pesquisa do professor (ou educador-pesquisador) ao diferenciá-la da pesquisa universitária (dos pesquisadores acadêmicos).

Para o autor acima citado, o movimento dos educadores-pesquisadores, mesmo sendo fruto de estudos de pesquisadores acadêmicos, é um movimento de cunho político-social que

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pretende a transformação da prática escolar através dos professores da educação básica. Ele é assertivo ao afirmar que, em diferentes partes do mundo, os professores têm realizado pesquisa nas escolas e estas pesquisas se diferenciam das pesquisas acadêmicas em onze características, dentre elas: a pesquisa dos educadores tem o propósito de conscientizar politicamente e promover a transformação social dos envolvidos; a metodologia empregada, na pesquisa dos educadores, pretende a inserção na realidade para compreendê-la e transformá-la; e os resultados da pesquisa do professor são discutidos na comunidade e devem guiar ações concretas nesta comunidade.

Em outra vertente, Lüdke (2001) estuda a prática da pesquisa por professores da educação básica. A autora, em seus trabalhos, tem buscado a identidade da pesquisa do professor da educação básica e, mais recentemente, concluiu que esta identidade é ainda obscura. Esta busca tem-se baseado em estudos brasileiros e europeus sobre o professor-pesquisador e em suas investigações junto a professores da educação básica e seus formadores. Para a autora, há concordância com respeito à importância da pesquisa na formação dos professores e na/para a prática docente. No entanto, as condições de produção e de trabalho do professor da educação básica interferem fortemente na disponibilidade desses professores em realizar pesquisas na/sobre a sala de aula. Segundo a autora e colaboradores, “na visão de professores e na de seus formadores, essa forma de pesquisar vem sendo considerada importante por todos eles, mas nem sempre assumida como algo imprescindível para o trabalho desse professor, sobretudo em função das condições para a sua realização e divulgação” (Lüdke, Cruz e Boing, 2009, p. 456).

Os autores citados, apesar de, em seus estudos, valorizarem a pesquisa na formação e na/para a prática pedagógica do professor, não são unânimes na identidade da pesquisa do professor. Ora aproximam a pesquisa do professor da pesquisa acadêmica ao estabelecerem critérios de comparação entre elas, ora admitem a diferença entre a pesquisa do professor e a pesquisa acadêmica, embora não deixem claro qual é esta diferença. Alguns fatores podem dificultar o consenso entre os estudiosos; um deles é o fato de muitos professores trazerem a referência do modelo acadêmico-científico para se referirem à sua prática da pesquisa (LÜDKE, 2001).

Neste caso, tem-se um impasse: se a pesquisa do professor não é uma pesquisa acadêmica, como definir a pesquisa do professor se ele mesmo a define a partir do modelo de pesquisa acadêmica, com o qual somente teve acesso durante seu curso de graduação? Beillerot (2001, p.74) admite três critérios que definem minimamente uma pesquisa, os quais, a meu ver,

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poderiam ser também considerados para definir a pesquisa do professor da educação básica: uma produção de conhecimentos novos, uma produção rigorosa de encaminhamento e uma comunicação de resultados. Para o autor, nas situações pedagógicas, o primeiro critério se refere a um conhecimento produzido a partir da resolução de um problema pelos alunos, cujo conhecimento descoberto foi diretamente programado pelo professor; o segundo se refere à aplicação de abordagens metódicas como, por exemplo, na pesquisa de uma informação num computador, na qual também se admite o primeiro critério; e, por fim, o último critério se refere à comunicação e à discussão crítica dos resultados para a comunidade escolar.

De qualquer forma, a pesquisa na formação de professores pode trazer benefícios para aqueles que estão e estarão envolvidos com ela: formadores, professores e alunos. Nos espaços de formação inicial e continuada de professores, o professor ao pesquisar sua própria prática em colaboração com as universidades, poderia criar mais sentidos para seu trabalho e para a utilização da pesquisa como instrumento de reflexão, intervenção e inovação da sua prática docente. Com a pesquisa colaborativa, professores, formadores e alunos poderiam se beneficiar dos resultados da pesquisa do professor, uma vez que mais conhecimentos teóricos e práticos sobre a escola seriam produzidos e estes possibilitariam o desenvolvimento de mais pesquisas e a construção de aprendizados pelos alunos. Segundo Esteban e Zaccur (2002, p. 15-16):

[...] aos professores, que se aplicam em ver mais ampla e profundamente ajudados pelos pesquisadores se anuncia a possibilidade de recuperar o “fazer pensado” com autonomia crescente, em vez de meros executores do pensado por outrem; aos pesquisadores se abrem perspectivas de maiores e melhores aproximações do objeto investigado, desvelando ângulos novos de uma realidade multifacetada; aos alunos de uns e de outros se restitui o estudo do sujeito inteiramente ativo no processo de construção do conhecimento em que se faz indispensável o indagar para vir a conhecer.

1.10.2. O professor-reflexivo

O conceito de professor-reflexivo foi amplamente difundido com as obras de Donald Schön (1992) como forma de resistência às reformas educacionais difundidas na década de 1980. O conceito tinha por base a premissa de professor criativo (ALARCÃO, 2003), preocupado com o aprendizado de seus alunos e de bom professor. Para Schön (1992), o bom professor é aquele que resiste ao saber escolar pré-determinado e aprende, em sua formação, a ouvir seus alunos e a refletir na prática e sobre a prática. Para isto seria necessária a introdução de um practicum

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docente estando nela e interagindo com um professor experiente. O exercício de reflexão deveria vir, desta forma, por meio de três dimensões sobre a prática docente: as formas de compreensão das matérias pelos alunos, de interação entre professor e aluno e a relação do professor com a instituição escolar.

Uma ampliação da importância da reflexividade do professor durante a sua formação foi proposta por Liston e Zeichner (2003). Os autores propuseram uma reflexão mais crítica e coletiva do professor com base em orientações sociais e educativas. Em síntese, para os autores, a reflexão dos professores sobre suas crenças relacionadas ao ensino (como eles entendem e concebem o ensino e a escola), bem como algumas “tradições educativas” (corpos tradicionais de pensamento e de prática relacionados a determinadas finalidades educacionais) deveriam ser trabalhadas já na formação inicial dos professores. Desta forma, os futuros professores poderiam começar a lidar com a cultura profissional docente (NÓVOA, 2009), de saber discernir e fazer escolhas durante sua prática docente, relacionadas ao desenvolvimento curricular, às diretrizes administrativas, às preocupações dos pais, às diferenças culturais e desigualdades sociais e econômicas, entre outras.

Anos depois, Zeichner (2008) manteve sua opinião sobre o papel da reflexão crítica e emancipatória na formação de professores e questionou a diversidade de concepções e de rumos que a ideia de professor-reflexivo vem tomando no âmbito das pesquisas e nos programas de formação de professores. A reflexão como instrumento de luta por justiça social, defendida assim pelo autor, deveria ser um dos objetivos dos programas de formação de professores, em contraposição às concepções de professor-reflexivo veiculadas, nos atuais programas, como a de: ensino reflexivo como sinônimo de racionalidade prática, restrito às estratégias e às habilidades de ensino e focalizado nas reflexões individuais, na maioria das vezes, alheias às condições sociais da educação escolar.

Em síntese, as ideias de professor-pesquisador e professor-reflexivo parecem ser formas de pensar a ação-reflexão do professor com denominações distintas, mas para produzir efeitos idênticos para todos os envolvidos nesse processo: o professor (como instrumento de reflexão, intervenção e inovação da sua prática docente), seus alunos (com saltos qualititativos no processo de ensino-aprendizado) e a comunidade escolar (produto de trasformação social).

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1.10.3. A formação de professores sob uma perspectiva crítico-emancipatória

Os modelos críticos de formação de professores partem da concepção de uma formação docente baseada no “compromisso na elaboração teórico-científico para a transformação da prática social da educação” (PIMENTA, 2011, p. 51). Segundo Diniz-Pereira (2002), o professor é visto como alguém que propõe problemas por intermédio de um diálogo crítico e numa perspectiva mais política com vistas à transformação social da realidade tratada. Para a formação do professor sob uma perspectiva mais crítica, o autor considera três modelos de formação de professores: o modelo sócio-reconstrucionista, o modelo emancipatório ou transgressivo e o modelo ecológico crítico. Em cada um dos modelos se admite um veículo de emancipação política e transformação social: o processo ensino-aprendizado, a sala de aula e a pesquisa-ação, respectivamente.

Neste sentido, a pesquisa-ação e a ideia de Pedagogia como uma Ciência da Educação e ciência da prática têm sido utilizadas como referência téorica e prática na ressifignicação da Pedagogia e da formação de professores como um projeto pedagógico emancipatório por Pimenta (2011). Para a autora, a Pedagogia deveria ter a prática dos educadores como referência no confronto com os saberes teóricos já construídos. Esse confronto demandaria um processo reflexivo no qual se admitiria a prática como prática social histórica, por meio do qual se produziriam novos conhecimentos a partir e para a prática. É nesse contexto que a autora ressifignifica11 a Didática como eixo estruturante da Pedagogia, concebendo o ensino como prática social na formação de professores. A Didática como área da Pedagogia e como programa na formação de professores remeteria a um “programa que busca a eficácia prática e a legitimação teórica. Assim, à medida que o programa didático penetra os fatos, transformando as práticas e as suas representações, começa a desenhar, no mundo dos professores, novos contornos e nova cultura profissional” (IBIDEM, p.66).

Neste mesmo aspecto de produção de novos olhares para a escola fundamental, no curso de Pedagogia, Saviani (2007, p.132) propõe estudar a prática educativa orientada pela teoria pedagógia, de forma que os futuros professores analisem “o funcionamento das escolas [...], para

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Segundo a autora a ressignificação da Didática surgiu de demandas novas na formação de professores franceses apontadas por Develay (1993) e Cornu & Vergnioux (1992), da necessidade de não ser apenas uma teoria (mas propor práticas educativas a partir dela) e de integrar a reflexão axiológica na construção de práticas educativas.

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além do senso comum propiciado por sua experiência imediata vivenciada por longos anos no interior da instituição escolar”. No entanto, esse estudo, segundo o autor, deveria ser orientado por um currículo onde suas disciplinas (ou conteúdos disciplinares) se articulem com a história da escola, na intenção de formar pedagogos e professores conscientes da realidade em que irão atuar, a partir de um aporte teórico que os subsidie numa ação coerente e técnica para uma atuação eficaz.

Formar professores para uma consciência da realidade escolar foi uma das tendências da formação de professores reflexivos da década de 1990, segundo Pimenta (2005), saindo de uma perspectiva centrada nas questões metodológicas e curriculares dos modelos de formação de professor reflexivo para uma que considera as especificidades do contexto escolar e os saberes práticos, teóricos e de responsabilidade social (NÓVOA, 2009) e pedagógico emancipatório (PIMENTA, 2011) envolvidos.

Nessa perspectiva, Pimenta (2005) baseou-se nos princípios da pesquisa-ação crítico- colaborativa para desenvolver um projeto de formação continuada de formadores de professores no ensino médio da rede pública de ensino do Estado de São Paulo. Segundo a autora, a pesquisa- ação crítico-colaborativa articularia o desenvolvimento profissional dos formadores à construção de saberes pedagógicos da equipe escolar, a mudanças na cultura organizacional e ao fornecimento de subsídios para políticas públicas de formação continuada de professores.

A autora considerou significativa a experiência de quatro anos no projeto a partir da utilização da abordagem metodológica da pesquisa-ação crítico-colaborativa, pois possibilitou ao grupo de formadores de professores do nível médio, seu desenvolvimento profissional, alterações de práticas pedagógica, ao longo do processo, e o fortalecimento pessoal e profissional dos formadores envolvidos.

Contudo, o projeto revelou a dificuldade de se desenvolverem projetos coletivos, em escolas da rede pública de ensino, pois ficam à mercê das autoridades político-educacionais que inviabilizam a execução desses projetos ao impingir aos professores condições de trabalho precárias, práticas competitivas de relação profissional, autoristarimo e centralidade administrativa. Mas, ao invés desses condicionantes se tornarem fatores limitantes de sua crença na potencialidade formativa e de transformação emancipatória da pesquisa-ação crítico- colaborativa, a autora acredita que ela pode ser um caminho fértil de tranformação nas políticas públicas e na gestão de sistemas de ensino.

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Numa perspectiva similar, Kincheloe (1997) defende uma pedagogia crítica e emancipatório-política, na formação docente, por meio da qual o professor seja preparado para enfrentar a fragilidade do estatuto de profissionalidade dos professores – também sinalizada por Pimenta (2005) – e para questionar o “capital cultural do oprimido” ao se “reapropriar de sua história, linguística e cultura” (KINCHELOE, 1997, p. 203). Para o autor, a formação docente deveria ser repensada no sentido de habilitar o professor para uma pesquisa crítica do saber ensinar e dos contextos multimensionais da escola, bem como para motivá-lo a transformar os “arranjos institucionais dominantes da escolarização e das atitudes sociais, econômicas e políticas que o acompanham” (IBIDEM, p. 200).