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CAPITULO I MARCOS CONCEPTUAIS: PESSOA E O CORPO

1. PESSOA: CONCEPTUALIZAÇÃO

1.1. A PESSOA E A INTERSUBJECTIVIDADE

1.1.2. A pessoa como relação «eu-tu»

A relação implica, no plano pessoal, a existência essencial de um duplo elemento, o «eu» e o «tu». O «eu» e o «tu», em termos filosóficos, significam a relação que se estabelece entre duas pessoas. Segundo Vergés Ramirez, esta relação não implica que a pessoa esteja sempre em «acto», em actividade, mas “significa a capacidade estrutural de se relacionar como expressão do seu ser pessoa”33.

31 VERGÉS RAMÍREZ, Salvador – Dimensión transcendente de la persona. p. 49. 32 Ibidem.

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Perante a questão «porque será a relação o elemento constitutivo da estrutura pessoal do homem?», podemos dizer que não se trata de um «acto de relação», mas sim de uma capacidade dinâmica do homem para se relacionar pessoalmente, isto é, a relação é concebida como a capacidade de comunicação do homem, sendo este o elemento básico da sua estrutura relacional34.

Poder-se-á dizer que a estrutura da pessoa se complementa reciprocamente pelo contacto imediato «consigo mesmo» e a sua relação com o «outro». Um e outro desenvolvem a estrutura pessoal de homem no binómio relação do «eu» em si mesmo e relação desse «eu» com o «tu» (o outro)35. Por outras palavras, eu não posso tornar-me completo só pelos meus próprios esforços, eu torno-me inteiramente «Eu» através de uma relação com o «Tu».

O reencontro do homem «consigo mesmo» corresponde à sua estrutura mais profunda; a relação com o «outro» não só revela o homem em «si mesmo» como também dinamiza a sua estrutura originária. Pode-se dizer que esta relação pertence à esfera da realidade existencial, vivida pelo homem de uma forma consciente, na referência a «si mesmo» e ao «outro», dentro de uma atmosfera de um «encontro recíproco», indo ao encontro de Martin Buber, que diz que o encontro do eu e do tu é uma relação em que dois pólos equivalentes se constituem um ao outro em perfeita reciprocidade (Gegenseitigkeit). No encontro, o homem faz-se autenticamente eu e o outro autenticamente tu, ou seja, o «eu» promove-se a si mesmo através da promoção do outro eu (o tu) numa relação constante de reciprocidade. Aqui se encontra a fundamentação central: a relação do «eu»

34 Ibidem, p. 51. 35 Ibidem.

51 com o «tu», e vice-versa, produz uma existência nova, fundada na fusão dos dois na unidade do encontro. É o momento de saída do «eu» da sua «egoidade» para se abrir à relação com o «tu».

Segundo Vergues Ramírez, toda a pessoa possui dentro de si (na sua esfera intima) um «tu» inconsciente36, correspondente à sua maneira dialogante de ser. E esta referência a si mesmo é a afirmação da sua identidade37. Relativamente a esta questão, é interessante citar aqui a noção de relação possível entre organismo e o objecto, segundo António Damásio, em que ele interroga “como é que o sentido de si, no acto do conhecimento, se implanta na mente (no eu)?”. Por duas razões: em primeiro, o organismo humano em questão é aquele dentro do qual acontece a consciência; o objecto, é aquele em que se dá a conhecer no processo da consciência; e as relações entre ambos, constituem o conteúdo do conhecimento a que chamamos consciência. Nesta perspectiva, a consciência constrói-se a partir de dois factos: que o organismo esteja envolvido numa relação com o objecto e que este provoca uma modificação no organismo. Daqui a tal relação dialogante entre o «eu» e o «outro», que pode ser objecto ou pessoa38.

A dinâmica da relação do «eu» com o «tu» revela o que é a pessoa mas também configura o seu ser interno39, uma vez que envolve um conhecimento mútuo de um «ser» e do «outro», através de uma permuta recíproca. Contudo, esta comunicação recíproca não implica a perda da própria personalidade individual, mas um reencontro do homem “consigo mesmo”. Podemos dizer que a relação pessoal do homem se desenvolve na intercomunicação do «eu» com o «tu». Este «eu» promove-se a si mesmo ao entrar em

37VERGÉS RAMÍREZ, Salvador – Dimensión transcendente de la persona. p.52.

38 DAMÁSIO, António – O sentido de si. 13ª ed. Lisboa: Publicações Europa América, 2011, pp. 30-40.

39 SCIACCA, M. F. – El hombre este desequilibrado. Barcelona: Edições Miracle, 1958, p. 12, citado por VERGÉS RAMÍREZ,

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relação com o «tu», promovendo também o «outro». Isto não quer dizer que se perde algo que é seu, trata-se apenas do reencontro consigo mesmo.

Esta relação tem um carácter activo40, uma vez que inclui a presença recíproca de duas pessoas, «Eu-Tu». Esta palavra primordial «Eu-Tu» é constitutiva do Eu, o qual não existe isoladamente41. Isto significa que o «eu» não pode existir, como tal, sem a presença do «tu». Esta presença é de carácter estrutural, isto é, pertence à sua maneira de ser. A tomada de consciência desta necessidade de relação recíproca define a pessoa de uma forma bidireccional, a do mesmo ser pessoa e a da presença consciente do «tu» no «eu». A consciência do ser individual forma-se numa inter-relação dinâmica entre o eu e o outro, sendo, por conseguinte, inerentemente intersubjectiva.

Tal como Buber, que situa a relação Eu-Tu no plano da reciprocidade simétrica, Vergés afirma que esse «eu» não pretende apoderar-se do «outro», de forma a convertê-lo em seu próprio instrumento de manipulação e utilização, pois a destruição do «tu» seria o suicídio do «eu»42. A relação do «eu» com o «tu» é, do ponto de vista ontológico, uma relação de abertura, de mutualidade, de franqueza e presença. Este é o sentido profundo do ser individual do homem, que não é idêntico a si mesmo enquanto não traduzir em acto a sua relação intercomunicativa. Assim, a relação individual do homem desenvolve-se sempre no intercâmbio recíproco do «eu» com o «tu», porque se trata da sua constituição interna. Por isso, a relação não é redutível a um simples aumento do próprio «eu».

Neste sentido, a relação do «eu» com o «tu» encontra-se igualmente fundada no princípio da acção recíproca que regula a relação de todos os seres. E só a sensibilidade e a

40 Ibidem, p. 56.

41 DINIS, Alfredo - «Ética e identidade pessoal na perspectiva das ciências cognitivas». In: Brotéria. 2003, p.119, cita M. Buber. 42 LAÍN ENTRALGO, P. – «Teoria y realidad del otro. El otro como otro yo. Nosotros, tú y yo». In: Revista de Occidente, Vol. I;

53 fragilidade43 podem acolher o outro como sujeito dotado de uma dignidade própria44. O «tu» é um ser real, sensivelmente dado com a sua história, a sua experiência, a sua fragilidade, reconhecido como «outro» ser humano. Este reconhecimento da realidade do outro só é possível na mesma medida em que o «eu» é sensível.

Por tudo o que foi dito, a pessoa é uma dimensão relacional, considerada «ser- com», estando enraizada numa comunhão entre dois «eus», assentes nas suas respectivas dignidades humanas, mediados pela relação. A “pessoa” requer necessariamente relações com “outra pessoa”, numa correlação «eu-tu».