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CAPITULO I – OS CUIDADOS DE SAÚDE E A ÉTICA

1. CUIDADOS DE SAÚDE: CONCEPÇÃO

1.1. O CUIDAR

O termo cuidar corresponde a um fenómeno universal, é encarado sob diferentes prismas que ao reflectirem uma cultura, se associam a diferentes concepções. Nos últimos anos o conceito tem sido tema central de grande parte da literatura, mais recentemente da literatura de enfermagem, por ser considerado como a essência da disciplina338.

Neste contexto, se o conceito de dignidade humana serve de referencial normativo a todo o tipo de intervenção no homem, tanto na esfera política como na social, a prestação dos cuidados de saúde não podia fugir a esta realidade.

Por esse motivo, será necessário fazer uma distinção entre o «cuidar» e o «tratar», uma vez que há quem confunda estes dois termos. Segundo Collière,

“cuidar (care) é um acto individual que prestamos a nós próprios desde que adquirimos autonomia, mas é, igualmente, um acto de reciprocidade que somos levados a prestar a toda a pessoa que, temporária ou definitivamente, tem necessidade de ajuda para assumir as suas necessidades vitais” 339.

Cuidar é, de facto, prestar atenção global e contínua a um doente, nunca esquecendo que ele é, antes de tudo, uma pessoa. Neste sentido, o cuidador nunca poderá esquecer todos os cuidados físicos, psicológicos ou espirituais de que o doente precisa, para além dos cuidados de saúde exigidos pela doença em si.

Entendemos por «tratar» a prestação de cuidados técnicos e especializados dirigidos apenas à doença e que tem como principal finalidade obter a cura. Neste sentido, a pessoa

338 LEININGER, Madeleine, M – Caring: an essencial human need. Detroit: Wayne State University Press, 1988.

339 COLLIÈRE, Marie Françoise – Soigner…Le premier art de la vie. Paris: Masson S. A. 1996, pp. 286-287. “Care is an individual act

that we give to ourselves since we acquired autonomy, but it is also an act of reciprocity that we give to any person, temporarily or permanently, who needs help to take their vital needs”.

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doente não é vista na sua globalidade. O cuidador pensa no doente, mas tende a esquecer a pessoa com necessidades psicológicas, sociais e espirituais, vendo-o apenas com necessidade de cuidados físicos que não pode prestar a si próprio pelo facto de estar doente. Collière chama-lhes “cuidados de reparação (cure), que consistem em tratar o que constitui obstáculo à vida, acrescentando que os cuidados existem desde que o homem existe”340.

De facto, toda a pessoa, ao longo da sua vida, precisa de cuidados, no sentido de satisfazer as suas necessidades básicas e indispensáveis à vida, sejam elas fisiológicas, psicológicas, sociais ou espirituais. Sempre houve necessidade da pessoa se cuidar a si própria, cuidar dos outros ou ser cuidada e, naturalmente, foram sendo criados laços de interdependência entre as pessoas, uma vez que o homem vive em comunidade.

Para a compreensão do cuidar como uma dimensão fundamental do agir humano, no dinamismo de uma energia na qual reconhece o que é a saúde, Honoré baseia-se em três pressupostos341:

- O cuidar não é exclusivo dos técnicos; refere-se a todos e a cada um; às coisas e a tudo o que faz parte do mundo.

- É o que mantém a existência, a actividade humana; dirige-se ao outro e ao ambiente, salvaguardando a dignidade humana.

- Apesar da sua fraqueza, vulnerabilidade e incertezas, cuidar traduz-se no que somos, com capacidade de pensar e manter a condição de existência, através das várias opções que se vão descobrindo.

340 Ibidem.

167 Mas esta ajuda entre as pessoas ganha mais relevância quando a pessoa se encontra doente e, consequentemente, mais fragilizada, necessitando de cuidados de saúde.

Neste sentido, será a pessoa doente considerada um ser humano detentor de uma dignidade constitutiva e inviolável, que merece todo o respeito, que não diminui nem desaparece quando está doente?

Pensamos que não. Nas últimas décadas, passou-se para uma utilização excessiva de exames complementares e de fármacos e, em contrapartida, deixou-se de valorizar a escuta e o diálogo com o doente. Os profissionais de saúde sabem cada vez mais sobre as doenças e conhecem cada vez menos os doentes e as pessoas que estes nunca deixam de ser.

Continuando a nossa exposição, e indo ao encontro de Daniel Serrão, a pessoa doente

“é uma pessoa humana, síntese admirável e, para mim, ainda, misteriosa, de duas realidades categoriais que representámos pelas palavras corpo e espírito, as quais não existem uma sem a outra e que mutuamente se explicam: aquele corpo é humano porque se exprime através de um espírito; e nada sabemos do espírito humano para além do que aquele corpo nos revela”342.

De facto, é importantíssimo considerar a pessoa na sua totalidade e, portanto, cada doente na sua unidade insubstituível e na sua situação singular, tendo sempre o cuidado de não olhar apenas à patologia. Isto é, cada homem vive a sua doença de uma maneira única e tem muitas vezes problemas de ordem psicológica, social ou espiritual, para além da sua doença física.

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Na verdade, se os profissionais de saúde agirem com respeito, associando sempre a competência técnica e a sensibilidade humana, estarão a respeitar a dignidade da pessoa e, ao mesmo tempo, a contribuir para que o doente seja orientado e ajudado na solução dos problemas que podem acompanhar a sua doença, contribuindo certamente para uma aceitação ou recuperação mais fácil. Como diz o Padre Feitor Pinto, “O mais importante é mesmo ser reconhecido como pessoa e receber nos serviços de saúde a qualidade humana a que se tem direito e, ao mesmo tempo, encontrar a resposta afectiva indispensável para a alegria de viver, mesmo na hora da provação”343.

Parece-nos inegável, podendo constatá-lo através de muitos exemplos, que a existência de laços de solidariedade, de afecto, de cuidados, é inerente a qualquer ser humano. Nascemos fruto da relação e sobrevivemos pela relação. A este respeito Laín Entralgo escreve: “[…] o encontro se realiza diversificando-se em uma série de acções perceptivas, afectivas expressivas, intelectuais e operativas”344. Neste sentido, parece-nos indiscutível a afirmação de que cabe relevante papel na humanização a todos os profissionais de saúde, já que nenhum destes tem justificação para a sua existência senão em função da presença da pessoa doente.

Sou enfermeira, tenho consciência de que o agente da primeira linha da humanização é a enfermagem, contribuindo poderosamente para a prática de cuidados de saúde mais humanos e, por isso mesmo, de melhor qualidade, ao serviço do outro.

Por outro lado, temos um grande desafio pela frente: precisamos de aprender e de vivenciar a dimensão do amor/cuidado para com o doente. A solidariedade eficaz alia

343 FEITOR, Pinto - «Humanização e Qualidade de Vida». In: Servir. vol. 44, nº 1 (1996), p. 20.

344 LAÍN ENTRALGO, P. – «El momento afectivo de la relación medica». In: La relación médico-enfermo. Madrid: Editorial. 466 - 479

169 competência científica e humana ao serviço da pessoa fragilizada. Isto é a garantia da dignidade da pessoa. O nascimento da Bioética e o seu desenvolvimento constituem a certeza de uma reacção positiva, reflexo da preocupação com as consequências de todo o progresso sobre a pessoa.

Assim, é fundamental nunca esquecer que a pessoa é o verdadeiro centro de atenção e que a palavra-chave deixa de ser a «cura» (cure) e passa a ser o «cuidar» (care), o que implica sempre interrogarmo-nos se o que é cientificamente possível é eticamente correcto. Cuidar é assim uma atitude, uma maneira de estar na vida que induz a um verdadeiro olhar para o outro e para o mundo. “Cuidar de tudo o que compõe o mundo e de tudo o que contribui para o tornar, a cada dia que passa, mais humano, eis o que poderemos designar por missão da comunidade dos humanos”345. Cuidar é assim, antes de mais, um acontecimento entre pessoas.

Também Mayeroff apresenta a sua concepção de cuidar, quando diz que “no cuidar eu experiencio o que eu cuido como extensão de mim e, ao mesmo tempo, como algo separado de mim que eu respeito por si mesmo”346. E sublinha que o cuidar é ajudar o outro a crescer, não impondo a sua própria direcção. A nossa abertura ao mundo é condicionada pelo conhecimento que temos de nós, pela consciência da nossa existência, pela capacidade de vermos o outro como ingredientes do cuidar: o conhecimento, a alternância de ritmos, a paciência, a honestidade, a confiança, a humildade, a esperança e a coragem.

345 HESBEEN, Walter – Cuidar neste mundo. Loures: Lusociência, 2004, p. 25. 346 MAYEROFF, Milton – On caring. New York: Harper Perennial, 1990, p. 7.

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Através de vários estudos realizados, conclui-se que o conceito de cuidar é multidimensional e complexo, continuando assim nos dias de hoje, No entanto, existe unanimidade em considerar o respeito como um conceito central da enfermagem e o mais fundamental valor profissional. O respeito aqui em questão é o de “cultivar intimamente a convicção que cada humano, quaisquer que sejam as suas características e a sua história, quaisquer que sejam os actos que tenha cometido, é – e permanece – equivalente a dignidade”347. Esta dignidade nunca se perde, porque cada humano é uma parte da humanidade.

Na fundamentação filosófica da sua teoria Human Care, Watson define cuidar como “ideal moral da enfermagem e a sua finalidade como protecção, realce e preservação da dignidade humana”348. Este conceito não é somente um simples desejo, uma emoção ou uma atitude, aponta um sistema de valores, vontade, compromisso, conhecimento, acções carinhosas, sendo na relação intersubjectiva entre o enfermeiro e a pessoa, que o cuidar se manifesta. O objectivo das intervenções da enfermagem é proteger, melhorar e preservar a dignidade humana, uma vez que procuram “[...] ajudar as pessoas a obter um maior grau de harmonia entre a mente, o corpo, e o espírito, o que originará o conhecimento e o respeito por si próprio e o desenvolvimento do processo de auto-cuidado”349.

347 HESBEEN, Walter – Cuidar neste mundo. p.25.

348 WATSON, Jean – Nursing: human science and human care – a theory of nursing. New York: National League for Nursing, 1988, p.

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