• Nenhum resultado encontrado

CAPITULO II CORPOREIDADE

1. CORPOREIDADE: CONCEPTUALIZAÇÃO

1.1. CONCEPÇÃO DUALISTA DO HOMEM

A filosofia ocidental, de Platão, a Merleau-Ponty concebia usualmente o corpo sob diferentes pressupostos, que vão da oposição à aposição corpo-alma. É o dualismo do homem e do seu próprio corpo ou a unidade do homem e do seu próprio corpo que enunciaremos de uma forma resumida.

É Platão o principal responsável pela concepção dualista do homem. O homem, para este filósofo, é um ser dividido em duas partes: um corpo exterior que flui na sua relação à alma interior que é imortal. Aqui, o corpo é apenas a condição passageira da alma, o elemento impuro, mortal e limitativo do homem, que em si mesmo deve ser entendido a partir da razão151. Assim sendo, podemos dizer que o corpo está ligado ao mundo sensível e a alma é a sede da razão. É preciso cuidar da alma, diz-nos Platão mas, porque a alma reside no corpo é preciso também cuidar do corpo. É pela voz de Sócrates que Platão aborda as questões do corpo, questões que emergem do próprio corpo de Sócrates e é através da voz de Sócrates que Platão responde à questão fundamental: será possível um corpo pleno sem alma?152. O corpo é, pois, uma espécie de prisão para a alma, o veículo pelo qual age a alma no mundo sensível. Ainda nas Leis, Platão reconhece como

verdadeira “essa prioridade de origem que reconhecemos à alma relativamente ao corpo, e

151 Cf. PORTOCARRERO, M. L. – «A Relação Corpo-Espírito». In: ARCHER, L.; BISCAIA, J.; OSSWALD, W. (Coord.) – Bioética.

Lisboa: editorial Verbo, 1996, pp. 64-69.

93 essa situação segunda e posterior do corpo, já que pela natureza o comando é da alma e cabe ao corpo se submeter”153.

Continuando a nossa explanação, e seguindo as directrizes do pensamento cartesiano, este marca uma importante etapa na história do corpo. O princípio de que parte para definir o ser o humano é o eu pensante ego cogito (emergindo da res cogitans) face à

res extensa, substâncias diferentes, ligadas pela glândula pineal. Só a «razão» (cogitans)

pode constituir a única realidade consistente e, deste modo, é a existência de “um universo em si perfeitamente explícito”154. É no Tratado das Paixões da Alma155 que Descartes procura a prova da união substancial entre o corpo e a alma na glândula pineal por uma intuição empírica: em todos os órgãos dos sentidos há uma duplicidade, de modo que a glândula pineal é o único lugar que recebe essas impressões dos objectos externos de maneira una. A glândula pineal é o órgão de encontro entre as duas partes fisicamente constitutivas do cérebro. A unidade da glândula entre o cérebro encerra a ordem dupla dos órgãos dos sentidos.

É na estrutura da glândula pineal que se dá o encontro das impressões externas que proporcionam a excitação capaz de provocar as paixões. A partir das impressões perpassadas pelo corpo e que, por conseguinte, excitam a alma - acarreta-se na voluntariedade ou não, a depender somente da alma ou do corpo. A explicação disso dá-se primeiro com os objectos externos que enviam suas impressões passando dos sentidos à

153 PLATÃO - Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007, pp. 48 - 279. 154 MERLEAU-PONTY, M. – Phénoménologie de la Perception. p. 51.

155 DESCARTES, R. - Tratado das Paixões. Obras Escolhidas. Trad. J. Guinsburg, Bento Prado Jr., Newton Cunha e Gita K. Ginsburg,.

94

glândula pineal através dos espíritos animais156. Ainda, em primeira ordem, o corpo tem sua autonomia. Quando essas impressões marcam na alma um sentimento (paixão da alma), deverá ocorrer a segunda ordem, inseparável da primeira: a excitação da glândula pineal. Essa excitação leva-nos a decidir sobre os actos ou não. As percepções, por serem sensíveis, agem imediatamente contra ou sobre a alma (pura). Com a predominância das sensações, a alma pouco irá contribuir para os actos. Daí segue o corpo com mais violência em seu movimento. Assim, a alma sente, mas não age. Descartes exemplifica com o sentimento do medo: se o objecto externo causa medo, os espíritos através dos nervos excitarão a glândula pineal que, dependendo da intensidade da paixão da alma, fará que da própria glândula os espíritos animais se espalhem pelos membros levando à fuga do sujeito. Mas, como os sentimentos no cérebro dos homens estão dispostos de maneira diversificada, é possível que, em vez de medo, excite no sujeito a coragem e mantenha a vontade de permanecer no local. É nesta segunda situação que a vontade prevalece sobre o corpo.

Descartes ao descrever os efeitos somáticos sobre a alma, através da glândula pineal, elabora uma questão crucial, de ordem moral circunscrita na liação de nossa natureza dúplice: como nos devemos conduzir diante das paixões? Responder a esta questão, obriga-nos seguir pelo confronto de nossa natureza nas duas substâncias pelas acções da vontade - paixões da alma e imediatez do corpo. Descartes expõe a relação da vontade (íntima à alma) com as paixões (mediadas pelos órgãos do corpo, mas excitados na alma). A centralidade é a própria alma – nela temos a vontade livre (indeterminada),

156 Para Descartes os espíritos animais consistem antes de tudo em uma matéria, que circula no próprio corpo na medida em que tais

espíritos correm através do sangue e recaem entre as concavidades do cérebro fazendo-nos perceber, no caso especifico do corpo, o modo através do qual os estímulos são recebidos.

95 ligada às acções e às paixões. Assim, nessas acções também demandam os movimentos da glândula pineal a relacionar-se com outras faculdades, como a memória e a imaginação. Podemos, então, na acção voluntária (a acção de vontade), forçar a glândula pineal a conduzir os espíritos a trafegar pela mente encontrando meios de lembrança, de algo do passado ou de fantasia. Temos então o jogo fortuito da acção voluntária que deverá confrontar-se imediatamente com as paixões, pois a alma, segundo Descartes, está acompanhada sempre de alguma paixão. Não é de maneira abrupta ou rápida que podemos alterá-la ou suprimi-la, visto que os espíritos animais impressos de tais emoções ou paixões transitam pelo corpo e afectam vários órgãos com violência157.

Descartes estabeleceu que somente através da razão, que mediava todas as relações objecto/sujeito, é que se pode chegar à verdade sobre as coisas, fez severas críticas ao sensualismo dizendo que os sentidos podem enganar.

“Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez”158.

A esta concepção antropológica subjazem duas correntes epistemológicas sobre a natureza do conhecimento: o Idealismo e o Empirismo. O primeiro atribui tal importância à realidade espiritual ou substância pensante «res cogitans», que remete toda a realidade a ele, isto é, à dignidade do sujeito, reduzindo o corpo a um objecto como qualquer outro.

157 DESCARTES, R. - Tratado das Paixões. Obras Escolhidas. 158 Ibidem.

96

O segundo atribui tal importância à matéria, que reduz toda a existência a ela, reduzindo o corpo a um puro mecanismo159. De facto, para Descartes, o corpo é esta realidade que nós chamamos corpo-objecto e que pode ser manipulado da mesma maneira que outro objecto qualquer, em que não se deve pôr qualquer limite, podendo ser produzido e programado segundo a própria utilidade das exigências do desenvolvimento tecnológico.

No entanto, o conceito bíblico de homem ultrapassou o tradicional problema da união da alma e do corpo. O homem é um todo espiritual e um todo corpóreo. Toda a intervenção sobre ele nunca deve duvidar da interdependência entre a dimensão corpórea e a dimensão espiritual160. Neste sentido, o corpo é visto como totalidade relacional com os vários órgãos, com os outros, com o mundo e com Deus.

E. Mounier apresenta o homem integral, isto é, de corpo e de espírito integrados numa unidade complexa. Neste sentido, não se pode conceber o homem independentemente do corpo e do espírito. Esta noção de pessoa que E. Mounier conseguiu do pensamento cristão e que, de modo algum, pensa o ser humano dissociado entre matéria e espírito. Nesta perspectiva, o ser humano não é compreendido por partes, mas como um todo. É desta forma que E. Mounier resolve a dualidade entre matéria e espírito: “o homem é corpo exactamente como é espírito, é integralmente corpo e espírito”161. A pessoa é existência incarnada. O homem é corpo precisamente como é espírito, é totalmente corpo e totalmente espírito.

159 ROCCHETTA, C. – Hacia una teologia de la corporeidad. Madrid: Ediciones Paulinas, 1993, pp. 70 - 72. 160 Ibidem, p. 94.

161 “El hombre así como es espíritu, es tambíén un cuerpo. Totalmente cuerpo y totalmente espíritus”. MOUNIER, Emmanuel –El

97 Para Merleau-Ponty, os mistérios do corpo e as ligações do corpo com o espírito são clarificados de uma nova maneira. Ele critica os dualismos paradigmatizados nas dicotomias intelegível-sensível, alma-corpo, os quais considera abstracções de um plano concreto onde existe unidade e não cisão.

O corpo, o nosso ser corporal contextualizado na sua forma de se ligar ao mundo e de o viver, considerado como ser-no-mundo, torna-se o centro do mundo, o pivô do mundo162. A concepção filosófica de Merleau-Ponty compreende o homem como um ser enraizado na existência. É o que iremos expor ao longo deste capítulo.

Assim, Merleau-Ponty agrega diferentes autores e orientações filosóficas, mas a sua crítica incide, sobretudo, no Empirismo e no Intelectualismo (que se inclui no Idealismo), que reconhecem apenas dois modos de ser, mundo e consciência, objecto e sujeito, «em si» e «para si», afluindo no mesmo estatuto de objecto «em si», numa abstracção onde há total identidade e estabilidade. Deste modo, tanto o Empirismo como o Intelectualismo consideram o corpo como um objecto entre os objectos num mundo. Ambas as doutrinas partilham o preconceito de que só existem “dois sentidos, e dois sentidos apenas para a palavra existir: ou existimos como coisa ou existimos como consciência.”163.

Isto é, para o Empirismo, o sujeito é um ser objectivável no mundo objectivo; para o Intelectualismo, o mundo é sempre mundo objectivo que tem existência apenas para uma consciência que o projecta diante dela. E, assim, o corpo é considerado o lugar da dualidade sujeito/objecto.

162 “ Le corps est le véhicule de l`être au monde, et avoir un corps c`est pour un vivant ce joindre à un milieu défini, se confronde avec

certains projets et s`y engager continuellement […] car s`il est vrai que j`ai conscience de mon corps á travers le monde, qu`il est, au centre du monde, le terme inaperçu vers lequel tous les objects tournent leur face, il est vrai pour la même raison que mon corps est le pivot du monde […]”. MERLEAU-PONTY, M. – Phénoménologie de la Perception. p. 97.

98

Procurando ultrapassar o «pensamento objectivo»164, que considera o corpo como objecto (porque “separado” de toda a história da consciência pessoal) podemos dizer que este autor, nos propõe um retorno à percepção, ao sentir, ao corpo. É uma rejeição do corpo como um mecanismo em si e a consciência como um ser para si. É a partir da Fenomenologia de Husserl que Merleau-Ponty vai afirmar que o meu corpo «é uma dimensão da minha própria existência» e, por isso, «estilo»165. E “a relação com o mundo é vivida de forma privilegiada no corpo: corpo próprio, sujeito da percepção também designado “eu natural”166. O corpo é, neste contexto, um corpo-sujeito, o corpo próprio, o corpo vivido que constitui condição de possibilidade da nossa existência no mundo. É preciso dizer que “o corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo, ele mantém o espectáculo visível continuadamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”167.

Renunciando ao «pensamento objectivo», que compreende o corpo como um mecanismo «em si» e a consciência como um «ser para si», este autor considera que “nosso corpo não é objecto para um ”eu penso”: ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio”168. Neste sentido, podemos afirmar que o corpo próprio é expressão, é fala, é linguagem, é o «local de comunicação» da consciência e da coisa, do sujeito e do objecto, e mostra que o corpo próprio não é objecto nem um espírito puro169. É

164 Ibidem, p.110.

165 Estilo é a relação vivida entre o nosso corpo e o mundo. O corpo é estilo porque é o carácter único e específico que diferencia um

corpo expressivo de um outro, isto é, o estilo é como que uma figura única que atravessa as diversas formas expressivas da sua vida: o modo de andar, o modo de viver, a amizade. RENAUD, Isabel - «A Pessoa Humana e o Direito à Saúde». p. 327.

166 “Eu natural” porque percebemos com nosso corpo, como que sujeito de percepção. MATOS DIAS, I. – Uma Ontologia do Sensível –

A aventura filosófica de Merleau-Ponty. p. 74.

167 MERLEAU-PONTY, M. – Phénoménologie de la Perception. p. 235. 168 Ibidem, p.179.

169 Queremos dizer com espírito puro que o ser humano não é só espírito. O homem é um todo espiritual e um todo corpóreo. Dirá

Merleau-Ponty: “Mas, se a nossa união com o corpo é substancial, como poderíamos sentir em nós mesmos uma alma pura e dali ter acesso a um Espírito absoluto?”. Ibidem, p. 232.

99 um diálogo do em-si e do para-si e, efectivamente, “a experiência do corpo próprio revela- nos um modo de existência ambíguo”170. É esta perplexidade que põe em causa a distinção clássica sujeito-objecto. Por outras palavras, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo, que destaca o objecto do sujeito e o sujeito do objecto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo em ideia e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade.

Assim, o objectivo do presente capítulo consiste em explorar este tecido de articulações onde tudo coexiste e convive, isto é, o entrelaçamento daquele que percebe com o seu corpo e com o seu mundo as relações quiasmáticas e dialogantes consciência- corpo, sujeito encarnado-mundo, eu-outros, na perspectiva da filosofia merleau-pontiana, que melhor irá ao encontro do objectivo delineado.