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CAPITULO I MARCOS CONCEPTUAIS: PESSOA E O CORPO

1. PESSOA: CONCEPTUALIZAÇÃO

1.1. A PESSOA E A INTERSUBJECTIVIDADE

1.1.1. Relação do «eu» consigo mesmo

O «eu» da pessoa possui consciência da sua «egoidade»26 de uma forma imediata, ao transformar-se em si mesmo através da sua referência ao não-eu, isto é, às realidades externas, à forma de sair de «si» para voltar a «si mesmo», após contacto com a realidade cósmica. O autoconhecimento do «eu» pessoal não se concretiza de uma forma

25 “Il n`est pas vrai que l`enfant commence par parcevoir l`object avec lequel il se mete n relation. Au contraire, cèst lìnstinct de relation

qui est primitif. C`est lui qui se creuse et se gonfle d`avance comme la main où vient se blottir le partenaire, et ensuite seulement s`établit la relation avac ce partenaire”. BUBER, M. – Je et tu, Préface de G. Bachelar. Paris: Aubier, 1938, p. 50.

26 VERGÉS RAMÍREZ, Salvador – Dimensión transcendente de la persona. Barcelona: Biblioteca Herder, 1978, p. 46. «egoidade»

47 instantânea, mas sim, apercebendo-se como idêntico a si mesmo (como pessoa) através de um processo que inclui, em primeiro lugar, a percepção da realidade das «coisas» e, em segundo, a percepção da realidade do «outro». A acção da pessoa implica a abertura ao mundo, assim como aos que a rodeiam e obriga-a ainda a empenhar-se na obrigação de concluir a sua tarefa: “cada indivíduo de si mesmo […] abnegação criadora, […] para afirmar a pessoa”27. A este respeito E. Mounier, refere que o homem deve colocar-se sob o ponto de vista dos outros.

“Não me procurar numa pessoa escolhida igual a mim, não conhecer os outros apenas com um conhecimento geral, mas captar com a minha singularidade numa atitude de acolhimento num esforço de reconhecimento. Ser todo para todos sem deixar de ser eu”28.

Segundo Vérges Ramírez, este processo não é sequencial, já que as etapas interagem em simultâneo: o homem autoconhece-se como «pessoa» ao mesmo tempo que descobre a existência das «coisas» e do «outro». No entanto, para que este autoconhecimento se realize, é obrigatória a presença de um elemento indispensável, a introspecção reflexiva; isto é, a pessoa necessita de observar e sentir o mundo exterior a si, possuindo a capacidade de captar para a sua esfera íntima as características que julga essenciais para o desenvolvimento do seu «eu» individual29.

Com efeito, é na experiência do outro e com o outro que nos descobrimos como pessoas. Por isso, o reconhecimento dessa relação pessoal significa o encontro autêntico consigo mesma; a pessoa, quando em contacto consciente com o «outro», desenvolve o seu

27 “Saca al indivíduo de sí mismo. […] Abnegación creadora, […] para afirmar la persona”. MOUNIER, Emmanuel – Revolución

Personalista y Comunitaria. Obras Completas. I, Salamanca: Edições Sígueme, p 318.

28 MOUNIER, Emmanuel – El personalismo. Obras Completas. III, Salamanca: Edições Sígueme, 1990, p. 476. 29 VERGÉS RAMÍREZ, Salvador – Dimensión transcendente de la persona. p. 46.

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ser, o seu «eu», para que esse encontro seja algo de novo, de original, relativamente a outros encontros passados, a outras relações anteriores. O seu «eu» é uma multiplicação constante de relações originais com o «outro». Só neste sentido o «eu» se reconhece a si mesmo como «pessoa», enquanto descobre a sua capacidade de se relacionar com o «outro», para que o desenvolvimento do próprio «ser pessoa» se faça de modo gradual, fundado na consciência da relação «eu-tu».

Todavia, isto não significa que o «eu» alcança uma compreensibilidade perfeita de si mesmo, mas que o elemento da relação é inerente ao próprio eu, pertence à sua estrutura mais profunda. Assim, esta relação pessoal diz respeito, em primeiro lugar, à realidade cósmica em que o homem se conhece a si mesmo como inserido entre as coisas diversas, entre as diversas realidades. No segundo momento, e em simultâneo, o «eu» da pessoa diferencia-se do outro «eu», ao tomar consciência de si mesmo relativamente ao «outro». Neste sentido, a principal característica do eu é a descoberta de si próprio, na doação total ao outro e, citando Emmanuel Lévinas, “é somente abordando outrem que assisto a mim mesmo”30.

Mas o homem pode potencializar, de forma consciente e reflexiva, a sua dinâmica de relação pessoal, porque a diferença de níveis na relação do «eu» relativamente a si mesmo é a chave da interpretação da capacidade de relação pessoal do homem. Neste sentido, a capacidade «radical» do homem em se auto-relacionar consigo e com os outros é o afecto, fundamental no seu ser, não podendo reduzir-se a uma simples característica acidental. A estrutura deste próprio ser «é uma parte constituinte da identidade da

49 pessoa»31. A partir daqui, somos remetidos para a seguinte questão: como chegamos ao conhecimento dessa identidade?

Segundo Vergés, a resposta parece estar na consciência do homem. Na verdade, cada um apreende a sua maneira íntima de ser mediante a consciência. Entre a consciência e o pensamento existe uma relação tão estreita que se poderá afirmar, segundo Sciacca, citado por Vergés, que “o primeiro acto do pensamento é a consciência que o sujeito pensante possui de si mesmo como ente que pensa”32. Separar estes dois aspectos da pessoa significaria a negação desta mesma pessoa.

Podemos então dizer que a noção de pessoa, constituída pelo «eu em si mesmo», nos leva a uma segunda perspectiva, a relação desse «eu» com o «outro». É perante o encontro com o outro que o «eu em si mesmo» se manifesta na sua maneira de actuar perante o «outro». Isto permite concluir que a relação do «eu» com o «tu» tem as suas mais profundas raízes na estrutura do «ser relacional» desse «eu».