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Relação de ajuda – profissional de saúde e doente

CAPITULO I – OS CUIDADOS DE SAÚDE E A ÉTICA

1. CUIDADOS DE SAÚDE: CONCEPÇÃO

1.2. DIMENSÃO RELACIONAL NOS CUIDADOS DE SAÚDE

1.2.1. Relação de ajuda – profissional de saúde e doente

A relação ideal profissional de saúde e doente deve ser constituída numa «genuína amizade», isto é, nela há uma verdadeira participação «pessoal» e não só uma cooperação externa «objectiva»353. Significa uma vinculação inter-humana, baseada na afectividade.

351 LAÍN ENTRALGO, P. – «El momento afectivo de la relación medica». p. 466.

352 LEVINAS, E. – Éthique et Infini. Dialogues avec Philip Nemo. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1972, p. 69. 353 LAÍN ENTRALGO, P. – «El momento afectivo de la relación medica». p. 470.

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Da mesma maneira, a relação com qualquer pessoa doente nunca poderá ser superficial, distante e despromovida de interesse e de afecto. Pelo contrário, deverá ser uma relação entre pessoas, baseada na compreensão e calor humano, na capacidade de saber ouvir e escutar, onde o diálogo esteja sempre presente. Até porque a pessoa doente está normalmente mais frágil, pode ter reacções e atitudes que não são as habituais e necessita de compreensão e ajuda.

Esta necessidade de compreensão por parte da pessoa doente torna-se, regra geral, mais intensa quanto mais grave é a doença, pelo que, quando já não existe a possibilidade de curar, cuidar torna-se ainda mais fundamental e assume uma relevância especial, como proclama M. González Barón:“[…] quando estamos perante uma situação de deterioração física com uma perspectiva de vida muito curta, e compreendemos que o doente está em fase terminal, toda a actuação e esforços do pessoal de saúde devem centrar-se no cuidar o doente” 354. Existem, de facto, situações em que se deve deixar que a doença siga o seu curso natural, sabendo reconhecer a nossa condição de mortais. Neste contexto particular, podemos dizer que o cuidar é o corolário da acção dos profissionais de saúde. Uma vez que a tendência é ainda, por parte de muitos, a de que os progressos científicos se sobrepõem ao homem, esquecendo que em primeiro lugar deve estar sempre a pessoa, torna-se urgente recuperar o verdadeiro cuidar e promover a humanização dos cuidados de saúde.

Podemos, pois, afirmar que a «relação» é o elemento primeiro no ser dos cuidados, isto é, a relação é a essência dos cuidados de saúde, já que sem a «relação» eles deixam de existir.

175 A relação com outrem deve ser baseada numa reciprocidade simétrica, o que nem sempre acontece. Mas a relação profissional de saúde/doente é uma relação que se impõe como condição que torna possível a resposta ao apelo daquele que sofre. Compete ao profissional de saúde garantir que ela estabeleça uma ajuda efectiva à pessoa doente. Como refere Jean Watson, que produza «resultados terapêuticos»355. Por outras palavras, existe sempre uma intenção prévia na relação que se estabelece entre o profissional de saúde e o doente — que é ajuda para com a pessoa que sofre. De facto, ajudar quem sofre é o que move os profissionais de saúde, é o fundamento do agir profissional.

A relação de ajuda é acima de tudo uma relação genuína, baseada no respeito mútuo e centrada na escuta daquele que sofre. É de salientar que o espaço relacional tem o seu início no momento em que o doente pede ajuda e o profissional de saúde demonstra disponibilidade356 para o ajudar. Deste modo, está construído o «ambiente» no qual o doente será ajudado a mobilizar todos os recursos que lhe permitam lidar com a doença e o sofrimento.

É de salientar que a forma como o profissional de saúde se mostra presente é a chave da qualidade deste espaço relacional. Por outras palavras, o profissional de saúde deve ser-para-o-outro, isto é, deve envolver-se numa relação genuína, desinteressada, na qual o outro aparece não como um «eu», mas como um «outro» diferente de um «tu». Segundo Etelvina Nunes, “Na expressão de Lévinas, ir ao encontro do infinito, é ir ao encontro dos outros, pôr-se ao seu serviço”357. De facto, para compreender o outro e o seu

355 WATSOM, Jean – Nursing: the Philosophy and Science of Caring, United States of America. Colorado: Associated University Press.

1985.

356 Disponibilidade significa que o profissional de saúde se abre à subjectividade da pessoa doente, isto é, à sua forma particular de ser-

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apelo, é necessário que quem cuida se desconcentre da preocupação consigo próprio, é doar-se ao outro, é servir o próximo — é responsabilidade358.

Esta abertura ao outro não é um acolhimento359 passivo; pelo contrário, é um acolher dirigido num movimento que respeita o espaço e os tempos do doente. Assim, cuidar do outro é ajudá-lo não invadindo com furor o seu espaço. Cuidar é contribuir para que o outro realize o seu projecto pessoal e não aplicar regras de conduta que lhe são estranhas.

Impõe-se, por conseguinte, no cuidar a compreensão, que “é um processo de abertura que constitui quem cuida e quem é cuidado como parceiros da acção de cuidar”360. Por outras palavras, compreender é abraçar e partilhar atitudes de simpatia, é a forma mais dignificante de doação, porque “eu descubro a minha vocação como pessoa, quando percebo a solicitação que vem do outro […]”361.

Neste sentido, só podemos compreender a pessoa que está diante de nós quando olhamos a sua doença e o seu sofrimento no âmbito de um ser envolvido na existência. Podemos, por isso, dizer que “na relação do cuidado, o mais desejável é a perseverança na existência”362. Ora, é no reconhecimento do outro que somos reconhecidos e é nesta relação interpessoal que se constrói uma relação de sujeito a sujeito que alicerça a prestação de cuidados de saúde personalizados e individualizados.

357 NUNES, Etelvina. - «Que É Ser Pessoa». In: Cadernos de Bio-Ética. 1998, p. 37.

358 O termo “responsabilidade” é usado por Lévinas para exprimir a minha doação ao outro. E pelo vínculo da responsabilidade torno-me

irmão dos homens. Ibidem. No vocabulaire de Lalande, a solidariedade da pessoa com os seus actos é condição prévia de qualquer responsabilidade.

359 “O acolhimento refere-se habitualmente à recepção feita a alguém, àquele que chega como um desconhecido […] O acolhimento é

então abertura a formas não pré-fabricadas do outro, num re-acolher, num registo de si mesmo. É a verdadeira recepção e não uma permissão”. HONORÈ, Bernard – Cuidar - Persistir em conjunto na existência. Loures: Lusociência, 2004, pp. 214 - 216.

360 Ibidem, p. 226.

361 Cf. MARCEL, Gabriel, em NUNES, Etelvina. - «Que É Ser Pessoa». p. 37. 362 HONORÈ, Bernard – Cuidar - Persistir em conjunto na existência. p. 225.

177 Com efeito, é nesta abertura ao outro e no respeito pela sua singularidade, identidade, que o profissional de saúde encontra a pessoa e a sua circunstância. É olhando o outro como sujeito, como um Eu em sentido pleno, que se estabelece uma relação de abertura e respeito pelo outro. Ao contrário, quando olhamos o outro desprovido da sua singularidade, privámo-lo da sua história pessoal e ficamos perante um sujeito universal, ou melhor, ficamos perante um indivíduo vago e intemporal.

Olhar o outro como um objecto é simplesmente obter, de uma forma abstracta, a sua exterioridade manifesta; é adquirirmos um conjunto de dados objectivos; é, muitas das vezes, obtermos uma lista de sintomas. Porém, escapa-nos a sua interioridade, a sua subjectividade, porque esta não é da ordem das coisas. De facto, a qualidade da relação com outrem depende intrinsecamente da posição existencial daquele que cuida do seu ser aí. Como diz Etelvina Nunes,

“Abrir-me e dar-me ao outro, ao desconhecido, ao primeiro que chega, pressupõe uma relação mais pessoal, com um tu, com quem se partilha a vida, relação que pressupõe uma maior intimidade, que podíamos chamar, diferentemente de Levinas, uma relação de amor. Relação marcada pela gratuidade da qual se explicita a identidade e a unicidade, que poderíamos chamar àquela marca pessoal, que cada pessoa traz consigo, marca de irrepetibilidade, que em si já está inscrita no rosto de cada homem”363.

Sou enfermeira e, infelizmente, sinto muitas vezes que existe um envolvimento relacional entre o doente e os enfermeiros puramente instrumental (relação sujeito- objecto), no qual não é permitido ao doente existir por si próprio na sua singularidade. Esta relação instrumental reduz o doente e os enfermeiros a uma função pragmática, isto é, ao

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doente compete simplesmente enumerar a sua sintomatologia e ao enfermeiro transformá- la em diagnósticos e estabelecer as intervenções tecnológicas que a elimine. É neste ambiente relacional que a pessoa doente é “coisificada” — o enfermeiro deixa de se centrar na pessoa para se centrar na doença e o doente transforma-se efectivamente num simples caso. Parafraseando Collière, diríamos que os cuidados aos doentes passam a ser simplesmente técnicos. É a doença que os determina, os orienta.

Com experiência de facto, podemos afirmar que o insucesso na relação profissional de saúde/doente é o problema mais comum no contexto dos cuidados de saúde. Neste momento, ressalta uma questão importante: por que motivo a relação profissional de saúde/ doente falha tantas vezes? Talvez seja porque conhecer compreendendo o outro é uma descoberta morosa que põe à prova a nossa capacidade de investimento no outro e que nos confronta muitas vezes com os nossos limites.

Efectivamente, se queremos ajudar profissionalmente o outro que está diante de nós, é necessário colocarmos um pouco de lado todas as teorias e preconceitos e colocarmos no centro da nossa atenção a sua vida vivida — a sua história.

Neste sentido, o profissional de saúde tem que se mostrar presente aos seus doentes, ou seja, tem que demonstrar: Disponibilidade, escuta, respeito, autenticidade, consideração, aceitação, confiança e compreensão empática. Só assim é possível estabelecer uma relação que ajude o doente, porque permite ao profissional de saúde tomar consciência das emoções, sentimentos e comportamentos do doente.

É de salientar que as formas de comunicação, neste campo, têm uma função muito importante, uma vez que é através da comunicação verbal e não verbal que a pessoa vai crescendo num espaço cultural, espiritual, próprio e historicamente determinado.

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