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CAPITULO II CORPOREIDADE

1. CORPOREIDADE: CONCEPTUALIZAÇÃO

1.4. CORPO E MUNDO

O meu corpo não é só um modo de me impor no mundo mas a condição imprescindível para habitá-lo e viver a minha experiência singular e irrepetível228. Waelhens, citado por Isabel Renaud, define o corpo nestes termos: “o corpo não é nada se não a própria maneira como acedemos ao mundo e, ao mesmo tempo ou correlativamente, um certo modo de aparição do próprio mundo”229. Por outras palavras, o meu corpo é esta contradição: torna-se ao mesmo tempo tão próximo e distante de mim porque o meu corpo abre-se e constitui o mundo subjectivo. Mas «ser um corpo aberto ao mundo e projectando um mundo» só é possível porque esta noção da proximidade e da distância nos revela que existe algo de fundamental, quer no meu corpo quer no meu mundo que me escapa, por falta de poder sobre ele. É esta ausência de poder sobre o corpo e sobre o mundo que permite ao meu corpo abrir-se ao mundo e projectar-se no mundo230.

Continuando a nossa reflexão, não poderemos deixar de referir mais uma vez Merleau-Ponty. Para este filósofo, o corpo é «veículo do ser no mundo», «potência de um certo mundo», «pivô do mundo». Assim, mais uma vez, o corpo marca o enraizamento do nosso-ser-no mundo, e a consciência é «ser no mundo», o meio no qual o corpo não cessa de dirigir-se e projectar-se no mundo. O corpo vive com o mundo, quer dizer, o corpo próprio e o mundo revelam-se interdependentes. Dirá Merleau-Ponty: “o corpo próprio e o mundo revelam-se como correlativos”231.

228 ROCCHETTA, C. – hacia una teologia de la corporeidad. Madrid: Ediciones Paulinas, 1993, p. 73. 229 RENAUD, Isabel - «O Corpo Vivido». p. 82.

230 Ibidem.

119 A minha encarnação é como participação, faz-me sentir o mundo, «não é um facto, mas a condição de possibilidade de todo facto». Assim, «ser-no-mundo» é sentir o corpo próprio, é actividade, acto, “o acto pelo qual é possível minha participação em toda a possibilidade de sentir, e mediante o qual eu estou aberto à minha existência e ao mundo…”232. O sujeito não constitui a aparição, mas ele regula-a, e esta reenvia ao sujeito, porque aparecer é sempre aparecer na correlação consciência-mundo. O mundo

“não é um objecto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”233.

Está claro que existe uma unidade complexa sujeito/mundo onde um e outro se co- constituem a simultâneo. O mundo é “portanto inseparável da subjectividade e da intersubjectividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. […] A racionalidade não é um problema, não existe detrás dela uma incógnita que tenhamos de determinar dedutivamente ou provar indutivamente partir dela: nós assistimos, a cada instante, a este prodígio de conexão das experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como ele se dá, já que nós somos este laço de relações”234. O corpo é o veículo do ser no mundo e, neste sentido, torna-se o centro do mundo:

“o corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projectos e empenhar-se continuamente neles. […] Pois se é verdade que tenho consciência do meu corpo

232 Gabriel Marcel, citado por LAÍN ENTRALGO, P. – El cuerpo humano – Teoria actual. pp. 253 - 254. 233 MERLEAU-PONTY, M. – Phénoménologie de la Perception. Avant Propos, V.

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através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo não percebido para o qual todos os objectos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo”235.

Dizer que o homem é ser-no-mundo é transpor o dualismo do em-si e para-si porque, ao considerarmos o homem como objecto ou como consciência pura, ele deixa de ser no mundo. A este respeito, Waelhens diz-nos que “a coisa coexiste com outras coisas, ela não as transcende, ela não tem horizonte, e o mundo, pelo contrário, não está nas coisas, mas no horizonte das coisas”236.

A deiscência, o quiasma, a reversibilidade, o entrelaçado são termos utilizados por Merleau-Ponty que traduzem a dinâmica estesiológica, o imparável movimento de diferenciação e articulação entre o sujeito encarnado e o mundo. É no entrelaçado corpo- consciência-mundo que se constitui o ser que eu sou e o ser que é para mim o mundo, porque

“o mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projecto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projecta. O sujeito é ser-no-mundo, e o mundo permanece “subjectivo”, já que sua textura e suas articulações são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito”237.

A subjectividade do sujeito manifesta-se pela encarnação; por este motivo, podemos afirmar que o corpo é sempre corpo de um sujeito. É pelo corpo que somos com

235 Ibidem, p. 97.

236 WAELHENS, A. – Une philosophie de l`ambiguité – L´existentialisme de Merleau-Ponty. Louvain: Publications Universitaires de

Louvain, 1951.

121 os outros num mundo, do mesmo modo que o corpo sujeito não seria corpo sem os outros — ser com os outros implica uma coexistência de seres corpóreos.

O esquema corporal permite uma relação com o mundo que não passa pela consciência ou pela representação, mas confirma a intencionalidade do corpo humano, a sua abertura originária ao mundo; mas é pelo nosso envolvimento no mundo que o esquema corporal é definido: “É dentro do mundo que nos comunicamos, através daquilo que nossa vida tem de articulado”238. E, como refere Lefort, “É no diálogo com os outros, o mundo e ele próprio que se dá o milagre da animação do corpo humano”239. Efectivamente, é no diálogo com os outros que o corpo humano se manifesta intencionalmente, e é no entrelaçado das diferentes intencionalidades que emerge o sentido do mundo.

O mundo perceptivo não é um mundo «em-si», objectivado, mas um mundo de «sentido de ser» (Seinssinn). Deste modo, o mundo existe porque todo o fenómeno humano só se dá em acto, enche o mundo de sentido, é impregnado pelo sentido que está no mundo, é vivido, portanto, corporal. A este respeito, Merleau-Ponty afirma: “à consciência, precisamos de concebê-la não mais como uma consciência constituinte e como um puro ser-para-si, mas como uma consciência perceptiva, como um sujeito de um comportamento, como ser no mundo ou existência, […]”240. É pela nossa encarnação que nos inserimos no sensível, e é neste sentido que a percepção surge como facto central da inclusão do homem no mundo.

Mas a percepção não é a percepção de coisas, ela é sempre percepção a partir de uma posição real, num tempo e num espaço, no aqui e agora. A percepção “não é

238 MERLEAU-PONTY, M. – Le visible et l’Invisible. p. 22. 239 LEFORT, C. – O olho e o espírito. p. 7.

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percepção das coisas, mas de “dimensões” ou “raios do mundo” […]. Neste contexto, a percepção, mais do que ao corpo, reenvia ao Mundo ou ao ser”241. A percepção é a operação fundamental que permite o encontro homem-mundo porque constitui “a ligação entre a consciência a natureza de onde nascem as significações”242.

Nesta relação homem-mundo, podemos definir a consciência como ser no mundo e o corpo como veículo desse mundo — a consciência perceptiva, que é a percepção de um mundo, é existência corporal, sendo o sujeito da percepção apenas um «eu posso»243. Como afirma Merleau-Ponty,

“A consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo. Um movimento é apreendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu “mundo”, e mover o seu corpo é visar as coisas através dele, é deixa-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação”244.

Podemos então dizer que é a partir deste mundo comum que o meu corpo percebe o corpo de outrem, “formam em conjunto um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenómeno, e a existência anónima da qual meu corpo é a cada momento o rasto habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo”245.

Acresce referir que a relação homem-mundo é uma relação de mútuo envolvimento. Merleau-Ponty descreve a relação de reciprocidade entre o sentinte e o sensível, dizendo: “o sentinte e o sensível não estão um diante do outro como termos exteriores e a sensação

241 MATOS DIAS, I. – Uma Ontologia do Sensível – A aventura filosófica de Merleau-Ponty. p. 77.

242 MADISON, G.B. – La Phénoménologie de Merlau Ponty une recherche des limites de la conscience. Paris: Éditions Klincksieck,

1973, p. 43.

243 MERLEAU-PONTY, M. – Phénoménologie de la Perception. p. 160. 244 Ibidem, p. 161.

123 não é uma invasão do sensível no sentinte […]. Sem a exploração do meu olhar ou da minha mão e antes que o meu corpo se sincronize com ele, o sensível é apenas uma solicitação vaga”246.

Podemos dizer que existe entre o meu corpo e o mundo uma complementaridade, que une também o meu corpo e o corpo de outrem. É este mundo comum que Merleau- Ponty chama intersubjectividade — é no mundo sensível que comunicamos.

O meu corpo não está fechado sobre si mesmo, o meu corpo está aberto sobre o mundo, e é esta abertura que o constitui. O mundo não está em mim e eu não estou no mundo, eu habito o mundo. Esta certeza de habitar o mundo constitui a fé perceptiva247.

Em suma, para compreendermos o ser-no-mundo do homem é necessário contemplar o homem como ser encarnado; é através da encarnação que se abre ao mundo, numa relação entrelaçada e reversível, onde o perceber se faz percebido, onde o tocado toca e onde o que sente e o sentido se envolvem mutuamente. É pelo seu corpo que o homem fala e se expressa ao mundo e, simultaneamente, é o lugar que fala o mundo, isto é, é através do corpo que se faz, não só o acolhimento do mundo no homem e expressão do mundo pelo homem mas também o acolhimento do homem no mundo e expressão do homem pelo mundo. É por isso que, como diz Santo Agostinho acerca do tempo, “este é perfeitamente familiar a cada um, mas que nenhum de nós pode explicar aos outros”248. O mesmo é preciso dizer do mundo. Este nunca me é totalmente estranho nem totalmente conhecido, porque a linguagem que me fala é também minha, mas, ao mesmo tempo, esta palavra é uma palavra que não pára de se modificar e de desvendar novos sentidos.

246 Ibidem, pp. 248 - 249.

247 MATOS DIAS, I. – Uma Ontologia do Sensível – A aventura filosófica de Merleau-Ponty. p. 49. 248 MERLEAU-PONTY, M. – Le visible et l’Invisible. p. 16.

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