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No que toca ao segundo quesito da topologia aqui utilizada, o Íon e o Fedro continuam a manter impressionante fidelidade à tradição épica, ao

292 “Or, c'est ce que le rhapsode ne saurait faire, ayant acquis ses connaissances par

des moyens irrationnels. I1 ne peut pas fonder l'exactitude de sa vision sur des arguments objectifs mais seulement sur la grâce de l'inspiration. Cette grâce repose sur les rapports personnels entre le poète et sa Muse; elle est donc de nature subjective. Le savoir du possédé reste arbitraire parce que la méthode scientifique,

l’e)pisth/mh, lui fait défaut”. VERDENIUS, 1943, p. 244. Dorter e Partee concluem

algo similar: “Socrates had initially shown that art is not a skill or science (which may imply that it is therefore non-rational, i.e., "mad") by showing that the artist cannot apply his principles wherever he chooses, as the technician or scientist can”. DORTER, 1973, p. 69. “(…) the poet in the act of creating loses conscious control of his art; he must stand outside of his particular human existence in order to grasp the general truths. Lacking knowledge, this poet like the poet in Republic II can produce only one type of poetry”. PARTEE, 1971, p. 91.

mesmo tempo em que radicalizam a crítica aos componentes técnicos da poesia e enfatizam a completa passividade do poeta na hora de compor. Trata-se de um assunto à roda do qual não pairam grandes dúvidas, uma vez que Platão apresente certa unidade doutrinal baseada na ideia de que a poesia acarreta a perda da razão pragmática e, por conseguinte, um estado de loucura inspirada. Deste modo, excetuando as referências ao poeta que foram feitas até agora, examina-se nesta seção como ele se porta ao acolher a mensagem que os deuses lhe comunicam através da inspiração. Depois de comentar as passagens do Íon onde tal tema é evocado, evidencia-se sua relação cerrada com a loucura poética do Fedro, a qual implica igualmente a libertação do modo de ser costumeiro dos poetas.

O primeiro vestígio de subjetividade que surge no Íon é, do ponto de vista dramático, o sustentáculo para toda a indagação do diálogo. Isso porque sua pergunta geral só faz sentido se a situação particular de Íon é considerada. Afinal, a questão condutora do diálogo parte do fato pessoal de que Íon, mesmo sendo comprovadamente capaz de recitar Homero à perfeição, não consegue recitar direito nem dizer belas coisas sobre outros poetas, como deveria fazer caso fosse detentor de uma técnica poética294. Nos primeiros parágrafos, assim, Platão precisa traçar um perfil da técnica para salientar o caso específico de Íon e, em seguida, lançar mão do conceito de dom divino como alternativa à posse de uma técnica. O dom divino elucida como Íon pode discorrer tão bem acerca de Homero sem que possua conhecimento racional e sistemático. Em primeiro lugar, a técnica atua dentro de um horizonte preciso, como Íon conclui ao concordar que Homero, Hesíodo e também outros poetas trabalham com os mesmos temas (Ion. 531a6). Conforme se sucedem os exemplos da aritmética, da pintura e da medicina, o leitor descobre que a segunda característica de uma técnica consiste em versar sobre o todo da área a que se aplica; como Aristóteles dirá da ciência – que é tratada no Íon como sinônimo de técnica (Ion. 532c6) – ela abarca um domínio do real que é conectado por uma definição genérica. Platão não emprega nesta ocasião vocabulário tão rigoroso, afirmando apenas que é próprio da técnica possuir o mesmo campo de investigação (Ion. 532e3); todavia, o que ele diz é assaz similar à noção de Aristóteles. Desta segunda característica provém a capacidade que o

294 Discorda-se aqui de Ladrière, que pensa que o sucesso e a técnica de Íon não são

relevantes para o diálogo. LADRIÈRE, 1951, p. 28. Pelo contrário, o fato de ele ter sido premiado faz com que Platão analise um exemplo máximo de rapsodo, pelo menos segundo a opinião dos Gregos. Seria como analisar Homero para falar da poesia.

experto possui de explicar e interpretar ( cjgeiÍsqai) todos os assuntos relativos ao seu campo. Esta capacidade habilita-o a julgar as criações e os atos de seus “concorrentes” e apontar quais são bons e quais são ruins. Ele controla esta habilidade e pode valer-se dela quando o desejar; não lhe acontece de dizer belas coisas acerca de um pintor, por exemplo, e de pegar

no sono (nusta/zein), de ficar embaraçado (a)poreiÍn) ou sem que nada lhe

ocorra (ou)k eÃxei oÀti sumba/lhtai) quando instado a falar acerca de

outro (Ion. 532e7-533a5). Embora Platão não mencione o ensino, é facilmente dedutível do perfil acima que um perito seria também capaz de passar seus conhecimentos adiante, haja vista ele seja consciente dos meios pelos quais elaborou seu julgamento295. Na discussão sobre a virtude no

Mênon, a questão da aprendizagem e do ensino é colocada de modo explícito, o que permite realizar tal dedução. Dessa discussão inicial emerge a silhueta da técnica, à qual Platão contrapõe o caso particular de Íon:

Íon. Mas então qual é a causa, Sócrates, de eu, quando

alguém discorre acerca de outro poeta, nem prestar atenção, nem ser capaz de contribuir com algo digno de ser dito, mas simplesmente cair no sono (nusta/zw), ao passo que, se alguém faz menção de Homero, eu acordo imediatamente e presto atenção e sou desembaraçado (eu)porw½) para falar (Ion. 432b8- c4)?

A insistência na situação específica de Íon é o que provoca os dois discursos de Sócrates. Sobre Homero, Íon pode falar coisas muito belas sem que seja interrompido pelo sono ou pela falta de ideias. A quem o observa, ele deve dar a impressão de possuir uma técnica acabada e talvez onisciente que o torna terrivelmente hábil (deino/j) em todas as questões de que seu autor preferido tratou. Porém, acontece que Íon só pode discorrer com fluência (eu)por°a) acerca de Homero, o que não é suficiente para que possua uma técnica poética; caso ele a possuísse, sentir-se-ia eletrizado e desperto ao ouvir também o nome de outros poetas, podendo avaliar suas composições de modo sistemático e objetivo.

Íon. Não tenho como te contradizer acerca disso,

Sócrates; mas isto, comigo mesmo, sei: acerca de Homero digo as coisas mais belas dentre os homens e

sou desembaraçado (eu)porw½) e todos os outros afirmam que eu falo bem, mas acerca de outros poetas, não. De qualquer modo, vê o que é isso (Ion. 533c4-8).

Como resposta a tal sorte de questões, Sócrates profere seus discursos, que serão depois seguidos por nova discussão da técnica, como explicado acima. O cerne da solução socrática consiste em dizer que Íon é agraciado por uma concessão divina que o habilita a falar fluentemente sobre Homero. Esta concessão é, ex expositis, um evento arbitrário que não pode ser desfraldado conscientemente pelos poetas e rapsodos; mais do que isso, porém, ela acarreia a perda da racionalidade de quem a recebe e um estado de transporte divino.

Sócrates. (...) Pois todos os poetas de versos épicos,

os bons, não em virtude de técnica, mas estando entusiasmados (eÃnqeoi) e possuídos

(katexo/menoi), é que dizem todos aqueles belos

poemas, e os poetas líricos, os bons, do mesmo modo. Assim como os coribantes não dançam freneticamente

(o)rxou=ntai) estando em seu juízo

(ou)k eÃmfronej), assim também os poetas líricos

não fazem aquelas belas melodias estando em seu juízo, mas, quando eles embarcam na harmonia e no ritmo, eles se tornam bacantes e possuídos

(kaiì katexo/menoi); como as bacantes retiram dos

rios mel e leite quando estão possuídas, mas não estando em seu juízo, também a alma dos poetas trabalham assim, como eles mesmos dizem. Pois os poetas nos dizem – não é? – que, colhendo de fontes o mel corrente de certos jardins e vales das Musas, eles nos trazem as melodias; como as abelhas, também eles assim voam (peto/menoi). E dizem a verdade (a)lhqh=). Pois coisa leve é o poeta, e alada e sacra (i¸ero/n), e incapaz de fazer poemas antes que se tenha tornado entusiasmado (eÃnqeo/j) e ficado fora de seu juízo (eÃkfrwn) e o senso (o( nou=j) não esteja mais nele (mhke/ti e)n au)t%½ e)nv=). Enquanto mantiver esse bem, o senso, todo o homem é incapaz de fazer poemas e de cantar oráculos (Ion. 533e5-534b7).

A longa citação condensa os principais tópicos desta seção. Primeiramente, Platão enfatiza a diferença entre bons e maus poetas e afirma que são apenas os primeiros que compõem seus poemas sob o influxo dos deuses; os maus poetas assemelham-se a Tínico de Calcídia em suas tentativas baldadas de compor apenas com ajuda de suas forças. Ao lado de tal diferença, o caráter eminentemente artístico dos Diálogos e outras de suas passagens sugerem que Platão acreditava na existência de

dois tipos de arte: uma boa e verdadeira e uma má e falsa296. Muitas de suas

críticas voltam-se apenas à segunda, e é compreensível que ele desdenhe os artistas medíocres que deviam existir aos montes em seu tempo, os quais

visavam apenas a fama e o dinheiro297. Afinal, Platão era um grande autor

que escrevia por uma questão de destino mais próprio, não para matar o tempo ou fazer nome. Em segundo lugar, o trecho repete as alusões ao universo religioso já frisadas anteriormente. A fim de aclarar o que sobrevém aos poetas no momento de inspiração, Platão enfoca fenômenos

296 Cavarnos nota essa diferença nos Diálogos. Para ele, a arte má não é falsa por

causa de seu caráter mimético – fator constitutivo de toda a arte – mas porque imita objetos impróprios. CAVARNOS, 1953, p. 487. O autor não trata da questão da origem da arte como critério de sua veracidade; pelo contrário, elaborando um perfil final da arte legítima – que seria consciente, racional e verdadeira, além de implicar conhecimento dos universais – ele nega os diálogos que dependem da inspiração (Íon, Mênon e Fedro), dizendo tratar-se de um evento irracional que faz com que os poetas criem por hábito. Do mesmo modo, para ele as alusões aos deuses e às Musas seriam produtos da ironia de Platão, como visto acima. CAVARNOS, 1953, p. 492-3. De acordo com as teses aqui defendidas, apenas a diferença entre a arte verdadeira e a falsa está correta, apesar de serem outros os critérios que deveriam ser usados para estabelecê-la. Verdenius possui saída engenhosa para esclarecer por que há poemas ruins e censuráveis. Concordando com a ideia apresentada acima, de que um poema verdadeiramente inspirado não pode ser ruim, já que provém de uma divindade – “Sócrates faz da possessão do poeta uma condição formal da boa poesia” –, ele afirma que o problema recai sobre o poeta, o qual continua a ser humano ao expressar, imitar ou interpretar o resultado da inspiração que momentaneamente o elevou ao patamar divino. Neste momento, assim, ele pode enganar-se, como atesta a sua dificuldade de explicar aquilo que compôs. VERDENIUS, 1943, p. 258-260; IDEM, 1944, p. 136. Janaway concorda que a inspiração é condição para a arte verdadeira. JANAWAY, 1992, p. 47. A mesma solução aventada por Verdenius foi utilizada para explicar por que os profetas podem enganar-se. WILCOX, 1895, p. 174.

297 Freeman assinala a irritação de Platão para com os maus artistas do seu tempo.

como a possessão e o frenesi espiritual, os oráculos, a dança dos coribantes, os séquitos báquicos e o entusiasmo em sentido amplo. É preciso notar que tais fenômenos não se enquadram no registro legalista da religião grega, senão que contemplam seus componentes mais pessoais e pressupõem a experiência direta do deus vivo, a mesma experiência que os românticos alemães pretenderão evocar. Com tais alusões fica evidente que Platão trata de um evento poderosíssimo que se entranha na esfera do numinoso. Isso adianta, por sua vez, o terceiro tópico da citação: a completa concordância com a tradição épica. De fato, Platão não somente solfeja as mesmas notas que Homero e Hesíodo, como também apoia seu argumento na vivência desses poetas e diz ipsis verbis que eles falaram a verdade sobre a origem da poesia e a relação do poeta com os deuses298. É como se ele tivesse percebido os principais traços da poética implícita à tradição épica e, em sua minuciosa resposta no Íon, mais não fizesse do que apresentá-los em roupagens filosóficas. Para manter a metáfora musical, afirmar que Platão solfeja as mesmas notas que Homero e Hesíodo significa salientar a notável concordância de conteúdo que eles apresentam. As diferenças entre os autores é antes uma diferença de timbre, dado que os instrumentos que tocam não sejam exatamente os mesmos: apesar de tudo o que absorve do rico veio épico, Platão é um spalla da filosofia, instrumento diferente da poesia popular, como ele mesmo afirma. Os jardins e vales das Musas, por fim, realçam a ideia de que os poetas colhem passivamente seus poemas como se eles, os poemas, se encontrassem prontos (impessoalidade); a condição para isso é a perda da racionalidade costumeira e o transporte para outra realidade.

Este é o tópico mais importante da citação para os presentes objetivos, e novamente ele parece aludir à discussão do Mênon. Neste diálogo, uma das hipóteses é que a virtude seja uma compreensão ou algo que envolve pensamento (Men. 98d-e). A palavra grega utilizada,

fro/nhsij, é um importante conceito na ética de Aristóteles e já em Platão denota racionalidade e consciência. Normalmente ela é traduzida por

298 Sobre a reinterpretação que Platão fez de Hesíodo, escreve Most: “For example,

when Hesiod told of his poetic initiation, he surely did not have in mind the meaning that Plato was to attribute to it three centuries later; but from Plato’s point of view, this philosophical interpretation of his is exactly what Hesiod must have really meant, a set of ideas that might well not have been clear to him when he composed his Theogony but that he would have had to acknowledge as being his true meaning if Plato could have had an opportunity to question him obstinately enough”. MOST, 2011, p. 17.

“sabedoria prática” ou “prudência”, implicando com isso aquele tipo de saber que faz com que se julguem adequadamente os meios para atingir determinado fim. O homem prudente, em Aristóteles, é alguém capaz de pesar as circunstâncias que envolvem uma ação e atuar de maneira que mantenha a justa medida e exerça aquela disposição ou comportamento (œciv) que caracteriza a virtude; noutras palavras, o frçnimov é uma espécie sábio que, sem deliberar sobre os fenômenos imutáveis que são objetos da ciência, consegue organizar a multiplicidade empírica e levar a cabo uma boa ação (EN. 1113a29-30). Em Platão, tal conceito não é tão rigoroso e delimitado; como usado no Mênon, ele sugere o domínio consciente de um assunto, uma compreensão geral que torna possível ensinar aquilo que se sabe. Mas aqui no Ion, sendo usado na forma de adjetivo e com duas preposições diferentes, ele parece indicar a mente, o senso prático ou a inteligência, como também atesta a menção conjunta do

nou=j. O vocábulo frone²n significa “pensar, conceber ou entender alguma coisa”. É um verbo de fortes componentes intelectuais provenientes

da palavra frÐn, que denota tanto o diafragma e o coração como sede das

paixões, quanto o espírito, a vontade e o lugar de onde promanam os

pensamentos e as decisões do homem299. Como se vê, trata-se de um termo

cujo sentido é amplo e difuso, não obstante sempre remeta a um contexto que acarreta compreensão. Ao jogar com as ideias similares de não estar em seu juízo (ou)k eÃmfronej) ou de perder o siso (eÃkfrwn), pois, Platão pretende demonstrar que o poeta não é o verdadeiro responsável pelos poemas e que não pode explicar como eles surgiram e o que gostariam de

dizer; ele é um instrumento passivo nas mãos das Musas300. Essa

incapacidade de explicação – já notada por Sócrates no contexto da Apologia e do Mênon, como visto acima – não só revela como a poesia não pode ser reduzida aos seus elementos técnicos, como também assinala a

perda da subjetividade do poeta (aÃneu nou=), pois só podem ficar cheio do

divino (eÃnqeoj) aqueles que se esvaziam do humano que trazem em si. Sócrates retoma essa tese ainda no primeiro discurso:

Sócrates. (...) o deus retira deles [dos poetas] o senso

(to\n nou=n) e se serve deles como servidores

299 CHANTRAINE, 1968, p. 1227-8.

300 Sobre a passividade do poeta: AVNI, 1968, p. 36; 61; GONZALEZ, 2011, p. 94;

PARTEE, 1971, p. 87 (Contém as demais referências à passividade nos Diálogos); SCOTT, 2011, p. 137; STERN-GILLET, 2004, p. 181; WOOLF, 1997, p. 193.

(u(phre/taij), e também dos cantores de oráculos e dos adivinhos divinos, para que nós, os ouvintes, saibamos que não são eles – aqueles nos quais o senso está ausente – os que falam essas coisas assim dignas de tanto valor, mas o próprio deus (o( qeo\j au)to/j) é quem fala, e através deles (dia\ tou/twn) se faz ouvir por nós (Ion. 534c7-d4).

Logo depois dessa declaração, ele conta a anedota sobre Tínico de Calcídica, que se presta nesta altura para provar como a tentativa consciente de compor poemas de valor pode ser frustrada de antemão. Esta anedota oferece nítido contraste com a noção moderna de criação, no interior da qual a intensificação das faculdades mentais do artista e a exaltação de sua personalidade são os verdadeiros responsáveis pelo vir a ser das obras, em especial por sua originalidade. Raiando o extremo de negar aos poetas o uso

do próprio nou=j, Platão endossa a perspectiva épica e deixa claro outra vez

que são os próprios deuses os responsáveis por doar os poemas aos seus bem-aventurados acólitos. Os aspectos religiosos ínsitos a tal perspectiva estão também presentes na doutrina das loucuras sagradas que aparece no Fedro. Este rico diálogo é mais uma fonte preciosa para pensar a subjetividade do poeta em relação à teopneustia. Na palinódia de Sócrates, onde se retrata por haver falado mal do amor, Platão elenca quatro loucuras divinas que trazem grandes benefícios aos homens: o amor, a purificação ritual, a profecia oracular e a poesia. Seu argumento inovador consiste em dizer que, ao contrário do que Lísias e Sócrates defenderam em seus discursos prévios, melhor é para o amado que se entregue ao amante possesso pela loucura erótica, uma vez que este abdicou das limitações

impostas por sua temperança (swfrosÀnj) meramente humana e está

entregue à mais sublime possessão divina. Foi dito na seção anterior que tais loucuras são consideradas concessões divinas, o que está de acordo com a visão do Íon sobre a poesia; é fácil de perceber como elas são também eventos arbitrários e sem método, que não se conformam ao perfil de nenhuma técnica. A correspondência dos diálogos, portanto, dá-se também quando se trata da subjetividade do poeta e sua relação com preceitos técnicos. Eis o que Platão escreve:

A terceira manifestação de possessão (katokwxh/) e de delírio (mani¿a) provém das Musas: quando se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de

poesia que, celebrando os numerosos feitos do passado, servem de educar seus descendentes. Mas, quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio

(aÃneu mani¿aj) das Musas, convencido de que apenas

(i¸kano\j) com o auxílio da técnica (e)k te/xnhj) chegará a ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado (tou= swfronou=ntoj), pela dos poetas tomados do delírio (mainome/nwn) (Phdr. 245a1-8).

Além de retomar o Íon através da oposição entre racionalidade prática e loucura/possessão, bem como pela equiparação entre poetas e adivinhos, Platão acrescenta outro dado importante com a doutrina das loucuras: elas libertam os indivíduos de sua disposição costumeira. Já no conceito de dom divino isso parecia estar incluso, pois todos os eventos que ele cobre são singulares e ocasionais: a inspiração, o feliz acerto da opinião correta, o gênio e a missão de Sócrates. Agora, isso se patenteia quando Sócrates define as loucuras como libertação divina dos hábitos:

Sócrates. Mas, há dois gêneros de loucura: a

produzida por doenças humanas e a que por uma revulsão divina (qei¿aj e)callagh=j) nos tira dos hábitos cotidianos (tw½n ei¹wqo/twn nomi¿mwn).

Fedro. Perfeitamente.

Sócrates. Na loucura divina distinguimos quatro

espécies: a Apolo atribuímos a inspiração mântica; a Dioniso, a teléstica ou de iniciação nos mistérios; às Musas, a poética; e a quarta, a erótica, considerada a melhor de todas, a Afrodite e a Eros (...) (Phdr. 265a9-b5).

A loucura é um fenômeno anti-intelectual e antitécnico por excelência. Quando ensandecido, o indivíduo perde sua personalidade rotineira e não é capaz de explicar nem coordenar seus pensamentos e ações, muito menos de sistematizá-los e ensiná-los. Ele age como que por impulso e é raptado por forças externas que costumam ir contra os preceitos

de sua razão pragmática301. Nem mesmo o hábito cotidiano resiste a isso. No dia-a-dia, a reflexão prática (fro/nhsij) trabalha para arrumar o