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Dado que o diálogo Íon seja a base das conclusões aqui desenvolvidas, convém apresentar algumas reflexões gerais sobre ele, que já encaminham o entendimento de temas como a origem da poesia para a direção esperada. Nesta seção, assim, expõem-se um panorama do diálogo e algumas de suas principais características, sublinhando o fato de que não se trata de obra aporética. Em seguida, apresenta-se sua visão sobre a origem da poesia e sobre o conhecimento poético, utilizando para tanto o tema do

dom divino (qei¿a moi¿ra), que também aparece em os outros diálogos

brevemente estudados: o Mênon, a Apologia e o Fedro. Como será visto, Platão mantém-se fiel à tradição épica neste quesito, não obstante trate de maneira filosófica o mesmo tema que ela tratara poeticamente.

O Íon é um diálogo memorável por diversos fatores. Além da pequena extensão, que torna fácil lê-lo com certa rapidez, veicula algumas

268 Apesar de sistematizar o que Platão diz sobre o assunto, em nenhum momento

Gaudreault menciona esse fato. GAUDREAULT, 1989.

269 Como dito, trata-se de uma opção teórica consciente seguir os diálogos menores

e não entrar em discussão pormenorizada com a República, por exemplo. Naturalmente, isso faz com que o trabalho não atinja aquela sistematicidade desejada pela exegese estruturalista. Porém, a opção se justifica se pensarmos que permite ver todo o problema com novos olhos, sem aceitar as conclusões já impostas por uma longa tradição de pensamento que, como ficou mostrado, sequer era atenta ao fato de Platão conceber sua filosofia como a mais alta forma de poesia.

ideias que, por assim dizer, foram internalizadas na psique do Ocidente graças a noções como talento e dom artístico. Ele possui beleza inegável, mormente nos discursos arrebatados de Sócrates, e é difícil que um leitor genuinamente platônico não se empolgue ao estudá-lo. Seu tamanho e a discussão explícita de um só tema, a questão da poesia, faz com que se sobressaia em relação a outras obras que exploram a mesma problemática; com exceção do Íon, a poesia sempre é escrutinada no interior de problemas mais abrangentes, como a essência da justiça ou do belo, e em diálogos mais longos e elaborados, como a República e as Leis. Ademais, ele descreve uma personagem que, quem sabe por sua ingenuidade, desperta nossa simpatia e traça a versão ideal de um artista tomado pelo entusiasmo e sem muito domínio de suas faculdades racionais; o rapsodo Íon é, como

reconhecem muitos intérpretes270, ingênuo e ardoroso, com pouca

capacidade para a reflexão filosófica, conquanto recite Homero com fervor e perfeição. Longe de confinar-se a detalhes históricos, mais cogentes e limitadores quando se trata de imitar pessoas reais, Platão pinta nessa personagem o modelo do artista tocado pelos deuses; a exaltação com que Íon fala de Homero, acrescida de sua personalidade ao mesmo tempo lépida e crédula, cega para filigranas argumentativas, lembra artistas como Mozart ou Balzac, que viviam embriagados por sua arte e exsudavam ideias advindas de uma entrega tirânica e irrefletida às suas produções. Em resumo, o Íon é um diálogo adorável e deleitoso, que facilmente deixa impressões indeléveis em seus leitores.

Em parte, tais impressões permanecem também em virtude de seu cariz didático, que pode soar repetitivo para algumas pessoas271. De fato, depois de curto proêmio (Ion. 530a-b), que serve para certificar a premiada habilidade rapsódica de Íon, Sócrates introduz ex abrupto o vocabulário da técnica e o aplica à poesia, fato que por si só gera todos os problemas que serão investigados no diálogo (Ion. 530, c-d). Daí se segue uma conversa em que se esquadrinham as fronteiras cognitivas de técnicas como a aritmética e a pintura, assim como a dificuldade que Íon apresenta na hora de recitar outros poetas (Ion. 531c-533c). Colocados os problemas que precisam ser resolvidos, surge então o clímax da obra, quando são proferidos os dois imponentes discursos de Sócrates, os quais, intercalados pelas reações de Íon, também se repetem e enfatizam didaticamente suas conclusões (Ion. 533d-536d). Nesse ponto, o leitor poderia esperar pela

270 WOOLF, 1997, p. 193.

introdução de novos temas que procederiam como consequências das soluções dispostas nos discursos. Por exemplo, eles poderiam perguntar qual é a influência dos deuses na vida humana ou por que apenas a poesia deve ser concedida pelos deuses, ao passo que a aritmética, que também parece pressupor qualquer dom, é uma técnica humana que pode ser aprendida e ensinada. Entretanto, o que ocorre é a recapitulação do mesmo leque de problemas com que o diálogo se iniciou, malgrado haja certo aprofundamento dos exemplos utilizados anteriormente (Ion. 536e-541c). A cena final do diálogo põe Íon contra a parede e lhe aplica a conclusão que haviam admitido sobre o fato de que a poesia e recitação poética não são técnicas, mas concessões divinas (Ion. 541d-542b): Íon é alguém divino, que carece de uma técnica. Por conseguinte, seu trajeto argumentativo é assaz translúcido e mostra como sua mensagem deve ser encontrada nos longos discursos de Sócrates, os quais são exigidos pelas dificuldades com que se deparam na discussão preambular sobre a técnica e a poesia. Esses discursos são exemplares puríssimos da poesia socrática, como será argumentado, e devem ser levados a sério pelos intérpretes.

Esse tom didático fez com que o diálogo fosse encastoado na fase inicial de Platão, tempo em que ele ainda não dominava, supõe-se, a arte do diálogo como fará depois, em obras clássicas como o Banquete ou o Fédon272. Em que pese a solidez dessa opinião, compartilhada talvez por todos os estudiosos, é inegável que o Íon se diferencie dos outros diálogos da mesma fase. Há pelo menos uma diferença substancial que não pode ser ignorada em sua exegese, da qual provêm outros fatos importantes que fundamentam a interpretação aqui proposta. A diferença é a seguinte: o Íon

não é aporético nem irônico273. Ao contrário de diálogos como o Cármides

272 Autores do século XIX defenderam sua inautenticidade e Willamowitz chegou a

considerá-lo a primeira obra de Platão, argumentando que o diálogo era desprovido de intenção séria e, sustentando teses estapafúrdias, desejava provocar o riso como se fora uma peça de Aristófanes, como visto na introdução. Outros autores também pensaram o mesmo da República. GOULD, 1964, p. 72; STERN-GILLET, 2004, p. 171; VERDENIUS, 1943, p. 233; 238.

273 Stern-Gillet nota a loquacidade de Sócrates, e Verdenius sublinha como o

filósofo possui fortes convicções, sugerindo talvez que não se trate de obra aporética. STERN-GILLET, 2004, p. 177; VERDENIUS, 1943, p. 234. Por razões estilométricas e de conteúdo, Penner toma o Íon como um diálogo socrático. PENNER, 1996, p. 124. Todavia, seu caráter não aporético faz como que infrinja de modo gritante aquela que é presumivelmente a característica principal de tal grupo de obras, a saber, seu final inconclusivo. Ele carece também de outras características distintivas dos diálogos da primeira fase, como o fato de que não é

e o Laques, cujo exame dialético não conduz as personagens a nenhuma resposta derradeira, contentando-se em evidenciar os deslizes e as insuficiências das soluções aventadas, o Íon assume doutrina positiva sobre a questão que examina: quem o lê, descobre efetivamente o que Platão pensava da poesia, sem que isso seja contestado por contra-argumentos finais que deixem o leitor novamente em suspenso. Por consequência, é errônea a opinião de Diógenes Laércio, para quem o Íon se enquadraria na mesma categoria de método tentativo (peirastiko/j) que define diálogos como o Eutidemo, o Cármides ou o Mênon (Vitae,III, 51). À inversa, os dois discursos de Sócrates são tomados como uma solução que não é revogada em nenhuma circunstância, e sua natureza literária destoa de modo flagrante dos diálogos aporéticos, que normalmente são reduzidos ao estilo taquigráfico de pergunta e resposta (eÃlegxov). Aqui, Sócrates não apenas entretece dois discursos que permanecem sem escrutínio, porém afirma em mais de uma ocasião que diz a verdade, um privilégio que ele claramente não possui quando se abriga atrás da couraça de sua ironia (Ion, 532d8-e; 535a). Como Flashar notou, a imagem do ímã possui todas as características dos mitos pertencentes ao período maduro do pensamento platônico, acenando para a positividade da doutrina ali preconizada274. É certo que as afirmações de Sócrates poderiam ser entendidas como ironia; contudo, no contexto do diálogo elas parecem sugerir que o próprio Sócrates está inspirado pela verdade como se fora um autêntico poeta, um fenômeno que também acontece no Fedro, como assinalado.

Há dois argumentos para comprovar tal interpretação. Em primeiro lugar, ao invés da típica aporia que o limita a levantar perguntas a seus oponentes, já que ele mesmo seja estéril e não possua nenhum ensinamento (Tht. 157c7-d5), Sócrates discursa sem nenhum embaraço (eÈporov) sobre a essência da poesia, jorrando uma série de argumentos que nascem como que prontos e que, na anfidromia final do diálogo, não são enjeitados. Os exclusivamente ético, não trata do cuidado da alma, não apresenta teoria intelectualista das virtudes etc. Ele concorda com tais diálogos em quatro pontos menos decisivos: possui curta extensão; adota tom divertido; usa da aritmética e da geometria como técnicas comuns e isentas do estatuto epistemológico especial que terão em diálogos como a República; por fim, quando lido sob certo aspecto, pode parecer que ele critique a retórica, embora seja um erro tomar esta característica como própria dos diálogos socráticos, já que há neles uma tentativa sub-reptícia de fazer de Sócrates um orador. Sobre este ponto: ENGLER, 2013b. Reunidos esses pontos, por conseguinte, não há como enquadrar o Íon entre os diálogos aporéticos.

novos rebentos são nutridos para que vivam e não há sequer uma hesitação elêntica ante o que fazer com eles, não obstante fosse possível testá-los racionalmente e, por assim dizer, abandoná-los na roda. Além disso, a inspiração de Sócrates pela verdade é comunicada diretamente a Íon, de modo que o filósofo assume o papel de um poeta que, como Homero, está em pleno contato com a divindade e com a verdade. Este é um ponto fulcral que ainda não recebeu o devido valor. No entanto, ele se deixa ver nas respostas entusiásticas que Íon dá a Sócrates, bem como no fato de que, no lugar de sua reação corriqueira diante de outros poetas, Íon não pega no sono ao escutar os discursos e a discussão, senão que se torna ainda mais eletrizado (Ion, 532b8-c4). O pormenor não pode ser reduzido ao prazer que Íon sente ao ouvir os sábios, pois Sócrates declara que não passa de um leigo que se preocupa com a verdade (Ion, 532d4-8), o que vale certamente para uma série de ocasiões apresentadas em outras obras, como no Hípias Maior, por exemplo. Agora, entretanto, esse detalhe dramatúrgico serve para associar a natureza de Sócrates e da filosofia com a poesia. Afinal, se a

poesia inspirada é eÈporov, e se Sócrates assim discursa, então ele

também está inspirado. Na verdade, esta é a hora em que se faz necessário usar do relato do Fédon com que a seção passada terminou. Por tal relato, os discursos entusiastas e verdadeiros de Sócrates podem ser vistos como respostas àquele sonho que o visitava com tamanha frequência e exigia-lhe que se consagrasse à poesia. Noutras palavras, a significativa revelação biográfica do Fédon permite lançar a vista a outros diálogos e dizer: eis que Sócrates faz aqui seu tipo especial de poesia! Tal parece ser a situação do Íon e de outros trechos inspirados que se encontram nos diálogos.

Sócrates: (...) Ou não te parece que falo a verdade,

Íon?

Íon: Sim, por Zeus, a mim certamente. Pois, de algum

modo, tu me tocas (aÀptei), com essas palavras, a alma, Sócrates, e a mim os bons poetas parecem interpretar essas coisas dos deuses junto a nós em virtude de uma concessão divina (Ion, 535a1-5). Destarte, a teoria da inspiração enquanto corrente magnética é atestada pelo próprio diálogo, que também torna patente como Sócrates comunga de alguns privilégios dos poetas. Se ele não fala tão bem quanto Homero, é ao menos capaz de transmitir a Íon parte de seu entusiasmo para com a verdade, mantendo desperto o exigente rapsodo e fazendo-o reagir aos discursos de forma arrebatada e convicta (Ion, 535c4-8). Esta é mais

uma maneira de reconhecer as similaridades entre poesia e filosofia. A poesia vai deixando de entusiasmar com a verdade à medida que é trancafiada na prisão da autonomia estética, um processo para o qual a filosofia contribuiu já na Grécia Antiga, ao exigir para si o direito exclusivo de investigar e proclamar a verdade. Antes disso, como foi demonstrado anteriormente, era a poesia quem servia de veículo para a revelação da verdade. Platão sofre na pele esse dilema e sua posição pode variar entre a antipatia racionalista e a paixão declarada. Sem embargo, a singularidade de sua postura reside precisamente em que, embora o mais das vezes pareça querer alijar-se da poesia, ele a conserva no interior de uma filosofia dramática, cujo sentido primordial só se deslinda por meio da consideração de eventos cênicos como este. Aliás, as outras ocasiões nos diálogos aporéticos onde Sócrates discursa de forma abundante e inspirada

representam, igualmente, lampejos de honesta eu)pori¿a que devem ser

tomados a sério, dado que quebrem o silêncio protréptico de tais diálogos –

coisa de que já se reclamava no Clitofonte, por exemplo275 – e anunciem as

ideias mais positivas de diálogos como a República e o Banquete. Trata-se de outros momentos em que Sócrates compõe poesia e revela o que pensa. O desenvolvimentismo apregoa, como se sabe, que as aporias dos diálogos da juventude são resolvidas na fase da maturidade276; no caso do Íon, isto não se verifica de todo, pois não obstante ele forneça um aglomerado de temas que ressurgem em outras obras, suas aporias parecem apenas subterfúgios para discursos doutrinais positivos que as resolvem. Alguns

estudiosos tomam esse fato como uma prova de sua inautenticidade277; isso

acontece, porém, porque eles não percebem fatos dramatúrgicos como aquele citado acima, a saber, que a condição necessária para que Íon não adormeça está na inspiração do próprio Sócrates, doravante elevado à posição de poeta. Assim, a reconhecida singularidade do diálogo prova que Platão expressa nele sua visão sobre a essência da poesia, e não que tenha falhado ao produzir uma obra dentro daqueles parâmetros estilísticos por que se orientava no mesmo período.

***

Feitas essas reflexões iniciais, que já deixam entrever a extrema riqueza do diálogo, convém estudar agora o que ele diz sobre a origem da

275 Para a análise da quebra do silêncio no Clitofonte: ALTMAN, 2012b, p. 29ss. 276 JAEGER, 2003, p. 416-417; REALE, 1997, p. 41-47.

poesia e sobre o conhecimento poético. Ambos os temas se elucidam pelo conceito de dom divino278. Tal conceito não é empregado em abundância por Platão, e o Íon é significativamente o lugar em que mais aparece, recolhendo quase metade dos registros279; no entanto, sua relevância é notória, haja vista ele se preste para destrinçar a natureza de fenômenos como a missão apolínea e o gênio de Sócrates, as loucuras divinas do Fedro e a definição de virtude no Mênon. Qualquer leitor reconhece a centralidade desses fenômenos para a compreensão dos Diálogos. Ora, o fato de que a poesia também entre nesse espectro conceitual sugere a maneira positiva com que Platão a compreendia. E o fato de que o Íon traceje o tratamento mais rico desse conceito, por seu turno, indica a proeminência que o diálogo assume na exegese das outras obras em que a doutrina também se faz presente.

De fato, a concessão divina é o modo como Sócrates explica a fonte donde abrolham os poemas, entre outras coisas não menos importantes. Já no início de seu discurso, Sócrates menciona essa força divina: “Pois isso existe, não sendo, todavia, uma técnica, em ti, de falar bem acerca de Homero, como acabei de dizer, mas um poder divino (qei¿a du/namij) que te move (kineiÍ) (...)” (Ion. 533d1-3). No decurso da cena, Sócrates declara que as Musas criam os poetas, os quais vão buscar seus poemas nos jardins dessas divindades, como se fossem abelhas a colher o mel (Ion. 534b). Noutras palavras, eles não são os responsáveis reais pela existência dos poemas, mas os encontram como que a existir autonomamente no jardim a que a inspiração os transporta; em sua impessoalidade, os poemas são dotados de objetividade parecida com a de

278 A palavra mo²ra significa “parte, porção, pedaço”, e liga-se ao verbo me°romai:

dividir, partir, compartilhar. Assim, ela significa concretamente “parte, lote de terra, porção de pessoas (num partido, por exemplo) e, por extensão, o quinhão ou a parte que nos foi concedida pelos deuses, o nosso destino”. Daí que nomeie as Moiras, divindades responsáveis por selar o destino dos mortais. Em algumas ocasiões significa também “morte”. Para o caso do Íon e do uso platônico em geral, “dom, quinhão, destino ou concessão divina” são igualmente aptos. CHANTRAINE, 1968, p. 678-9. Fique aqui registrado mais um pensamento: a leitora notará que, em vários casos, usam-se traduções diversas para um mesmo termo grego, como, por exemplo, quando se traduz lógos. Isso ocorre para que, em cada ocasião, a palavra grega receba o sentido equivalente em português; é praticamente impossível verter um termo grego apenas com uma palavra vernácula, dado o amplo espectro semântico que ele normalmente cobre.

um ente natural, como se fossem uma flor que atrai as abelhas. O tema surge mais duas vezes no prosseguimento da conversa e chega a soar repetitivo, tamanha é a ênfase que Platão lhe confere; ele justifica a existência dos diversos gêneros poéticos e a total passividade dos poetas ante a possessão divina (Ion. 534c-d), dois assuntos que serão discutidos nas próximas seções. Nessa altura, Sócrates introduz uma comparação que aparece nas outras ocasiões em que o dom divino é nomeado: os poetas são como adivinhos e profetas por meio dos quais os deuses comunicam suas vontades aos homens. Por meio dessa comparação recorrente ele deixa claro que, assim como o adivinho recebe o oráculo do deus, o poeta recebe seus poemas das Musas, sem que ele jamais seja a origem da poesia.

(...) e também os cantores de oráculos e os adivinhos divinos, para que nós, os ouvintes, saibamos que não são eles – aqueles nos quais o senso está ausente – os que falam essas coisas assim dignas de valor, mas o próprio deus é quem fala, e através deles (dia\ tou/twn) se faz ouvir por nós (Ion. 534d1-4)

No próximo discurso de Sócrates, encenado depois da conversa que encerra a reação entusiasta de Íon, o dom divino é de novo mencionado de forma quase obsedante, para reiterar que não é por técnica nem por ciência que Íon pode falar de Homero com tanta beleza, mas por virtude do dom

divino (qei¿# moi¿r#) e da possessão poética (katokwxv=) (Ion. 536c2).

E a causa disto – pela qual tu me perguntas – e em função da qual tu, acerca de Homero, és desembaraçado (eÈporov), mas acerca dos outros não, é que não é em virtude de técnica, mas de uma concessão divina, que és terrivelmente hábil em louvar Homero. (Ion. 536d1-3. Trad. modificada). Como se essa transparência quase didática não bastasse, Platão ainda repisa a origem divina da poesia na última conversa do diálogo, quando Íon admite em definitivo que não possui nenhuma técnica e recita Homero por pura concessão divina (Ion. 542a4). A confirmação de tal origem, porém, é dada pela significativa historieta que Sócrates conta sobre Tínico de Calcídia. De acordo com a historieta, Tínico compusera inúmeros poemas, talvez na tentativa de tornar-se poeta afamado; no entanto, suas composições premeditadas eram de tal modo ruins, que o público nunca se

deu ao trabalho de cantá-las. Há somente um poema que todo o mundo conhece e recita: um peã que Sócrates acredita ser quiçá o mais belo poema lírico, e que o próprio Tínico descrevia como um achado das Musas (euÀrhma/ ti Moisa=n), querendo dizer com isso, provavelmente, que o poema lhe surgira de forma espontânea e alheia a sua vontade, como se fosse uma flor que tivesse ajuntado. Para Sócrates, os deuses aproveitam-se de casos como este para provar que eles são os verdadeiros criadores da poesia, e não os seres humanos. Se a poesia tivesse origem humana, afinal, até mesmo os poetas medíocres poderiam compor bons poemas, com tal que se empenhassem nisso e se tornassem mestres dos artifícios poéticos. Porquanto ela seja algo doado pelos deuses, o poeta pode esforçar-se inutilmente a vida inteira sem que nada de belo saia de sua pena, e pode, de repente, receber “do nada” um belo poema que todos irão apreciar, como