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No que toca ao efeito da poesia sobre o público, Platão também sustenta que se trata de algo relativo à esfera dos deuses, isto é, que através da intermediação do poeta o público é capaz de tomar parte, ainda que por instantes e em intensidade abrandada, na mesma corrente de inspiração que habilita o poeta a compor. Essa ideia se torna clara na bela metáfora do ímã, discutida abaixo. Antes que isso seja feito, entretanto, convém expor o grande poder que Platão reconhece no efeito da poesia, poder esse que não apenas fundamenta a escolha dessa arte como peça-chave de sua educação idealizada, como também esclarece em grande medida por que ele se ocupa em censurar determinados trechos de diversos poetas. Há dois lugares onde esse poder é claramente referido: nos primeiros livros da República, dedicados aos pilares poético-musicais da educação, e no mito das cigarras, presente no Fedro.

A fim de justificar sua opção pela mousikÐ como um dos

baluartes da educação descrita na República, Platão elabora uma psicologia da arte mimética que explica como as pessoas absorvem a mimese e internalizam os trechos de existência que ela lhes fornece, passando a formar seu caráter através de tais exemplos. Nessas considerações psicológicas já se evidencia a ideia de que o processo imitativo realizado pelo poeta é secundariamente vivenciado pelo público que, como uma esponja, acolhe as exsudações da mimese em sua alma. Noutras palavras, a corrente magnética de que trata o Íon parece estar pressuposta também na teoria da mimese, quando se trata de deslindar a forma como a poesia atua sobre os ouvintes. A despeito de surgir com diferentes aspectos, ela se esconde por detrás da tese de que os poetas necessitam igualmente de moldar a sua alma para poder imitar certo objeto, como discutido na seção seguinte, molde esse que depois é acolhido pelos ouvintes. Aliás, este seria um dos lugares a partir do quais poderiam ser traçadas as similaridades entre a concepção mimética da poesia e a doutrina da inspiração, mostrando como ambas as teorias se relacionam entre si. Por razões de espaço, infelizmente, isso não poderá ser feito aqui de maneira cabal. No entanto, algumas reflexões já deixarão entrever tais pontos de contato.

Na República, tendo em vista o uso da poesia na pólis, a preocupação de Platão reside nos valores, nos padrões comportamentais e nas imagens que são transmitidas pelos poetas, porque são esses elementos que, corporificados nas personagens, nas cenas e nas máximas morais, formam a ambiência espiritual de uma cidade inteira e, por conseguinte, a estrutura moral da alma dos cidadãos. Como a cidade e alma dos cidadãos possuem a mesma estrutura ontológica, esse paralelo vem a ser ainda mais pungente.

Sócrates. Mas então só aos poetas é que devemos

vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos a imagem (th\n ei¹ko/na) do caráter bom (tou= a)gaqou=), ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar também os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício (to\ kako/hqej), a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer obra de arte? E, se não forem capazes disso, não deverão ser proibidos de exercer o seu mister entre nós, a fim de que os nossos guardiões, criados (trefo/menoi) no meio das imagens do mal (e)n kaki¿aj ei¹ko/si), como no meio de ervas daninhas, colhendo e pastando aos poucos, todos os dias, porções de muitas delas, inadvertidamente não venham a acumular um grande mal na sua alma (e)n tv= au(tw½n yuxv)? Devemos é procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem proveito de tudo, onde quer que algo lhes impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas, como uma brisa salutar de regiões sadias, que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar (ei¹j o(moio/thta/), a apreciar e a estar de harmonia com a razão formosa? (R. 401b1-d3).

Esta conhecida passagem da obra não deixa dúvidas sobre o grande poder que Platão atribuía ao efeito da poesia e da arte em geral. Pode ser que ele tenha apenas percebido, ao olhar seus contemporâneos, as diferentes atitudes morais de pessoas educadas pelos elevados padrões da épica, como

era o caso dos melhores atenienses, e, por outro lado, as atitudes de pessoas educadas pelos valores comezinhos e utilitários que a pior parte da sofística pusera em voga. O jovem que provara o néctar inebriante do Iluminismo radical espezinhava os antigos valores e comportamentos que haviam sido prezados pela educação baseada em Homero. A atuação do ambiente moral e intelectual em que vivia, acostumando-o ao cinismo, à licenciosidade das pequenas faltas diárias e à banalidade do mal, levava-o a apascentar sua alma com ervas daninhas, até o ponto em que acumulava nela um grande mal que lhe tornava indiferente, por exemplo, destruir estátuas sagradas ou participar das mais infames conspirações políticas em busca do poder, como aconteceu com Alcibíades e com tantos outros efebos. Para um homem de inteligência como Platão, que possuía raro tino tanto para as questões educacionais quanto para as poéticas, era impossível não notar a influência direta que a poesia e todas as demais formas de discurso e de imagem exerciam sobre a alma dos jovens. Seu ideal era criar uma cidade e um ambiente espiritual em que os efebos fossem alimentados, desde a infância, por influências ideológicas benéficas.

Sócrates. Não é então por este motivo, ó Gláucon, que

a educação pela música (e)n mousikv= trofh/) é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram

(katadu/etai) mais fundo na alma

(ei¹j to\ e)nto\j th=j yuxh=j) e afetam-na mais

fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita, se se tiver educado? E, quando não, o contrário? (R. 401d5-e1).

Embora a passagem frise o papel da harmonia e do ritmo, não está isenta dela a preocupação com aquelas imagens e modelos acima citados, dado que a mousikÐ inclua a poesia, como dito no capítulo anterior. A reiterada imitação de tais imagens, levada a cabo com ritmo e harmonia, predispõe as pessoas a determinados comportamentos. Ou seja, ao imitar gestos, escolhas ou atitudes que veem em personagens ou que justificam por meio de pensamentos aprendidos com os poetas, os cidadãos abrem sua guarda espiritual e se deixam moldar pela poesia, que lhes fornece um padrão de conduta em meio à multiplicidade de ações possíveis. Acaso isso não está pressuposto na ideia hodierna, de acordo com a qual os filmes ou

os jogos de videogame devem ser classificados conforme faixas etárias? Em suma, é nisso que consiste a psicologia da mimese315.

Sócrates. (...) Se imitarem, que imitem (mimeiÍsqai) o que lhes convém desde a infância (e)k pai¿dwn) – coragem, sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie. Mas a baixeza, não devem praticá-la nem serem capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vícios, a fim de que, partindo da imitação (e)k th=j mimh/sewj), passem ao gozo da realidade (tou= eiånai a)polau/swsin). Ou não te apercebeste de que as imitações (mimh/seij), se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza (ei¹j eÃqh te kaiì fu/sin) para o corpo, a voz e a inteligência? (R. 395c3-d3).

Essas considerações já oferecem uma perspectiva sobre o efeito moral da poesia. Elas estão de acordo com a visão da épica, que também depositava grandes esperanças na ação que os atos gloriosos dos heróis podiam exercer sobre o público. Outro lugar em que o efeito da poesia é tratado de modo geral aparece no mito das cigarras, com o qual Platão explica mitologicamente como os primeiros homens reagiram ao poder do canto. Neste ponto, ele frisa os demais efeitos da poesia que já haviam sido constatados por Homero e Hesíodo, em especial o prazer e o esquecimento, e salienta a força colossal que se manifesta através dela.

Sócrates. Não é bonito para um amigo das Musas

declarar que nunca ouviu falar de semelhante coisa. Contam que antigamente as cigarras eram gente, antes de haverem nascido as Musas. Mas, com o aparecimento das Musas, tendo surgido o canto, de tal modo alguns homens ficaram embevecidos ante o novo deleite (e)cepla/ghsan u(f' h(donh=j), que não faziam outra coisa senão cantar, e, esquecidos

(h)me/lhsan) de comer e beber, morreram sem dar

por isso (eÃlaqon). Dessa gente é que provém a raça das cigarras; elas receberam das Musas o privilégio de não se alimentarem e de cantarem sem comer nem beber desde o nascimento até a morte, para depois

irem contar às Musas quem as cultua na terra e como cada uma é particularmente venerada. A Terpsícore dizem o nome dos que as honraram nos coros, o que a deixa benevolente para com eles; a Érato, os que as cultuam nos seus poemas amorosos, e assim com todas, conforme o culto peculiar a cada uma. À mais antiga delas, Calíope, e à que se lhe segue, Urânia, identificam quem passa a vida a filosofar e aprecia a música que lhe é própria. São essas Musas que se ocupam particularmente com os discursos divinos e humanos e as de voz mais agradável. Por tais razões é que não devemos dormir ao meio-dia, mas entretermo-nos a conversar. (Phdr. 259b5-d8). Conforme sublinhado, o mito transforma a filosofia em um tipo de

mousikÐ, o que se coaduna com a autocompreensão que Platão manifesta no Fédon. Além disso, os paralelos que ele mantém com a cena das Sereias saltam aos olhos. Os homens inebriados pelo canto entregam-se a um prazer tão potente, que se esquecem de comer e beber e encontram o mesmo destino dos nautas incautos que se deixam seduzir pelas sereias: a morte por

inanição. O tipo de embevecimento (ākpljciv) de que desfrutam é

expresso por uma palavra que, como conceito estético, retorna no Íon, na Poética (Poet. 1454a4) e no tratado de Longino (de Subl. 1.4) para descrever o efeito da poesia ou de algum fenômeno a ela associado. E o seu esquecimento e descuro para com as atividades mantenedoras da vida lembram a perspectiva de Hesíodo, para quem a concentração nos grandes feitos enarrados pela poesia tem o condão de fazer com que olvidemos por momentos as dores e males que nos afligem. Tamanha é a força desse olvido proporcionado pelo canto, que os homens já não olham sequer por sua alimentação. Embora Platão também recorde em outras passagens o choro, o prazer e reações quejandas, como será visto, aqui ele trata de um fenômeno divino em total analogia com um dos mais poderosos mitos épicos sobre o efeito da poesia. Naturalmente, é provável que tal analogia não passasse despercebida aos leitores da época. Esse fenômeno poderoso interrompe as atividades fisiológicas mais essenciais e, criando espécie de transe, faz com que a pessoa sob seu poder deixe de cuidar da própria vida, ou seja, ele é mais forte que o próprio instinto de sobrevivência. Quando se estudaram as considerações de Hesíodo sobre o esquecimento, ficou dito que hoje em dia ainda podemos sentir algo similar, principalmente naqueles momentos em que nos absorvemos em alguma narrativa – no teatro ou no cinema, por exemplo – e nos sentimos transportados para outro mundo, sem

o peso das aflições diárias. A sedução de diferentes tipos de arte consiste precisamente em que nos fazem esquecer de nós mesmos. O que Platão descreve agora pode talvez ser vislumbrado na entrega absoluta à arte que caracteriza os autênticos gênios. Como nos ensinam as biografias, os artistas de gênio costumam consagrar-se de tal modo à sua arte que,

deitando fora os últimos visos de subjetividade (eÃkfrwn) que lhes

poderiam lembrar do cuidado básico com a vida, tornam-se não raros excêntricos ou loucos, desleixando-se de seu bem-estar e pensando apenas na próxima obra que irão dar à luz. As atitudes extravagantes, as doenças psíquicas ou o vício em psicotrópicos – tão recorrentes ao longo da história – são apenas maneiras de lidar com uma entrega tirânica que lhes consome toda a preocupação sadia com a vida. O mesmo se pode dizer de um filósofo como Sócrates, que Platão parece visar neste mito. Afinal, Sócrates não acabou sendo executado pelos Atenienses porque, contra todas os conselhos prudentes de seus amigos, continuava teimosamente a dedicar-se a seu tipo especial de poesia, conforme o sonho profético que amiúde o frequentava? Essa dedicação está na base do desdém que ele demonstra diante de seus juízes. Ele se recusa a contratar um logógrafo para escrever um discurso que persuadiria o júri. Aferrando-se ao seu gênero de poesia, Sócrates cuida apenas de agradar as Musas da filosofia e a Apolo, a quem está consagrado como se fora um sacerdote. Nem o mais pálido sinal do medo da morte vem abalar sua convicção. Como um cisne que canta seu mais belo canto antes de morrer, ele despede-se dessa vida para tornar-se imortal como os homens do mito, concluindo com fecho de ouro o longo poema de sua vida. Nesse sentido, ele segue como Aquiles e como os guardiões da República aquela melodia heroica, a filosofia, que lhe infunde coragem para realizar sua tarefa.

A fundamentação desse efeito da poesia aparece no Íon, naquela que é uma das imagens ou metáforas mais belas do pequeno diálogo. Para provar que o poeta e o rapsodo perdem sua racionalidade costumeira quando se entregam ao poder da poesia, Sócrates pergunta a Íon se por acaso ele não se sente vagar por Troia ou Ítaca no momento em que evoca tais cenas. Íon não apenas concorda entusiasticamente com Sócrates, como acrescenta que, de cima do palco, é capaz de averiguar os mesmos efeitos agindo sobre o público, efeitos que ele tenta manejar para seu proveito.

Sócrates. Mas, espera aí, dize-me isto, Íon, e não me escondas o que quer que eu te pergunte: quando tu bem recitas versos e arrebatas (e)kplh/cvj)

completamente os espectadores, seja quando cantas Ulisses tomando de assalto a soleira da porta, revelando-se aos pretendentes e espalhando as flechas diante dos seus pés, ou Aquiles lançando-se sobre Heitor, ou uma daquelas passagens que suscitam a piedade (e)leinw½n) acerca de Andrômaca, ou acerca de Hécuba, ou acerca de Príamo, nessa hora, estás em teu juízo ou te tornas fora de teu juízo

(eÃcw sautou=) e a tua alma, estando ela

entusiasmada (e)nqousia/zousa), acredita estar junto das coisas de que tu falas, estando seja em Ítaca, seja em Troia, ou onde quer que os versos se passem? (Ion, 535b1-c3).

Íon aquiesce e descreve o que sente, ao que Sócrates responde dizendo que tal homem não pode estar em seu juízo.

Íon. Quão manifesta é, Sócrates, esta demonstração

que tu me dás. Por isso, falarei não te escondendo nada. Pois eu, quando digo algo digno de piedade (e)leino/n), os meus olhos se enchem de lágrimas; quando algo temível (fobero\n) ou terrível (deino/n), os meus cabelos ficam em pé de medo (u(po\ fo/bou) e o coração palpita.

Sócrates. E então? Afirmaremos, Íon, estar em seu

juízo (eÃmfrona), nessa hora, o homem que, ornado com uma vestimenta multicolorida e com coroas de ouro, chora em sacrifícios e festas, sem danificar nenhuma dessas coisas, ou que sente medo (fobh=tai), estando em maio a mais de vinte mil pessoas amigáveis, embora ninguém o despoje ou prejudique?

Íon. Não, por Zeus, certamente não, Sócrates, se for

para dizer a verdade (Ion, 535c4-d7).

As passagens aludem ao mesmo arrebatamento (ākpljciv) do

Fedro e acrescentam as palavras próprias da experiência da tragédia, o medo e a piedade, que já haviam sido atribuídas à poesia na tradição épica e que serão retomadas por Aristóteles. Elas descrevem, de resto, como o rapsodo se abre ao enorme poder das cenas que recita e se deixa encantar

completamente por elas, a ponto de suspender sua crença no horizonte cotidiano que o circunda e sentir-se em outro tempo e lugar316. O entusiasmo da sua alma e a perda de sua razão, agora entregue à loucura divina (qei¿aj e)callagh=j), são os responsáveis por isso. Em virtude

deles, ele é libertado de seus hábitos diários

(tw½n ei¹wqo/twn nomi¿mwn) e se torna momentaneamente insano, como se vivesse um transe coribântico. No prosseguimento da conversa, Sócrates afirma que o mesmo se passa com o público, um fato de que Íon é consciente e do qual se vale para obter maiores lucros com sua apresentação.

Sócrates. Tu sabes, então, que também na maioria dos

espectadores vós produzis (e)rga/zesqe) os mesmos efeitos?

Íon. Claro, sei muito bem. Pois eu olho para baixo, de

cima do palco, a cada vez, e os vejo não só chorando, como lançando olhares terríveis e seguindo as palavras com estupor. Pois eu também tenho que prestar muita atenção (to\n nou=n prose/xein) a eles: já que, se os ponho a chorar, eu mesmo vou rir, recebendo dinheiro, mas se eles riem, eu mesmo vou chorar, perdendo dinheiro (Ion, 535d8-e6).

Com essas afirmações, assegura-se a atribuição do efeito sentido pelos rapsodos ao próprio público. Tal atribuição está na base da estética da recepção que Platão desenvolve. No entanto, a partir da última citação alguém poderia dizer que, porquanto Íon maneje conscientemente seu efeito, mantendo sua atenção desperta, ele não fica completamente fora de si, como asseverado acima. De fato, parece que Platão relembra nessa

316 “This form of being-present-at-what-is-not-present is madness because it means being besides or outside oneself (exo sautou, 535b7-c1. To have a techne is to have

a power in and through oneself and thus to be self-possessed. In poetic hermeneutics one is moved by things beyond one’s control and beyond one’s experience”. GONZALEZ, 2011, p. 97. Embora enfatize demasiado a noção de imitação, Dorter também capta esse ponto: “If art is a kind of imitation, it is one which does not merely mirror but transports us into another world. So much that, judged by the ordinary standards of the physically present world, our behavior during an aes-thetic experience appears incomprehensible and ‘mad’”. DORTER, 1973, p. 72.

passagem os aspectos práticos e muita vez mesquinhos da profissão dos rapsodos, que não apenas eram vaidosos na escolha de suas vestimentas, como também tinham em grande conta o pagamento que recebiam de seus espectadores. Essa crítica estende-se a sofistas como Górgias e Hípias, os quais, tomando o lugar dos rapsodos e poetas, darão mostras de grande vaidade e preocupação com o dinheiro. No que toca à manutenção da subjetividade do rapsodo, em todo o caso, parece que ocorre aqui o mesmo que já havia sido visto na tradição épica, quando se abordou o caso do transe profético em Hesíodo. A frágil manutenção da subjetividade do poeta não constitui uma negação de seu transe, mas, ao contrário, ela é como que a condição para que ele saiba que recebe algo vindo de fora. Nas primeiras vezes em que sentiu o entusiasmo, é de supor que Íon não fosse capaz de dirigi-lo a seu talante para arrebatar a plateia, pois todas as suas forças mentais haviam como que capitulado diante da possessão que vivia. Isso transparece em sua concordância entusiástica com as afirmações de Sócrates. Com o tempo, entretanto, ele foi desenvolvendo certa habilidade para receber esse transe e usá-lo alguma segurança, ainda que jamais tenha-se tornado capaz de dominá-lo por completo, como comprova sua inabilidade em recitar outros poetas além de Homero. Algo semelhante parece ter acontecido com Hesíodo.

Para concluir sua explanação, Sócrates introduz finalmente a imagem da corrente magnética.

Sócrates. Tu sabes, então, que esse espectador é o

último anel, dos quais eu falava, que recebem o poder (du/namin) uns dos outros pela pedra de Hércules? O do meio és tu, o rapsodo e ator; o primeiro, o próprio poeta; mas o deus, por meio de todos esses anéis, arrasta a alma dos homens (eÀlkei th\n yuxh\n) para onde quiser, fazendo o poder (du/namin) pender entre eles (...) (Ion, 535e7-a3).

A passagem a que Sócrates se refere aparecera um pouco

antes, em seu primeiro discurso sobre a inspiração.

Sócrates. (...) Pois isso existe, não sendo, todavia, uma técnica, em ti, de falar bem acerca de Homero, como acabei de dizer, mas um poder divino (qei¿a de\ du/namij) que te move (se kineiÍ,), como na pedra que Eurípides chamou de magnética, mas muitos chamam de pedra de Hércules. Pois essa pedra

não apenas atrai (aÃgei) os próprios anéis de ferro, mas também coloca nos anéis um poder (du/namin) tal que eles são capazes de fazer isto do mesmo modo