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De fato, o racionalismo de Aristóteles e sua manobra teórica de redução de vários fenômenos antes divinos à esfera humana, com a consequente exclusão de causas insondáveis ou fatalistas, podem dar a

72 AUBENQUE, 2008, 113-114. 73 WEBER, 2007, p. 38; 46.

impressão, à primeira vista, de que seu pensamento seria de todo alheio aos temas elevados da filosofia do trágico, que se caracteriza por interrogar abertamente o destino, a situação desamparada do homem no cosmo, sua frágil autonomia ante o fado, a efemeridade de seus bens mais preciosos etc. Nada disso parece enodoar a serenidade clássica da filosofia de Aristóteles, e em nenhuma página da Poética encontra-se alguma reflexão mais explícita, por exemplo, sobre a vã tentativa humana de transgredir sua condição de mortalidade, como ocorre nos fragmentos teóricos de Hölderlin. Contudo, seu iluminismo possui neste caso efeito contrário, fazendo com que ele veja as questões colocadas pelos trágicos e pelos filósofos anteriores como problemas relativos à ação do homem no mundo, sem tentar bani-las de uma vez por todas, como se julga que seria o caso de Platão74. Noutras palavras, ele não elimina completamente a herança dos tragediógrafos, admitindo muitas de suas considerações sobre a vida e o mundo em geral, senão que a humaniza e laiciza75

.

Naturalmente, ele tampouco a subscreve em sua totalidade, cedendo a uma visão de mundo trágica em que a luta do homem com a objetividade do mundo esteja fadada ao fracasso. Ao contrário, suas respostas para tais problemas traem um otimismo muito maior, que lhe permite crer na possibilidade da felicidade e da realização humanas, sem menosprezar com isso os conflitos do homem ou a existência de situações que, por vários motivos, podem ser chamadas de trágicas.

Se essa discussão não é evidente na Poética, isso acontece porque a análise da ação humana em relação ao destino e aos eventos que não estão sob nosso controle, por uma questão de fidelidade disciplinar, é levada a termo na Ética a Nicômaco. O sentido de “ética” não implica aqui, como se sabe, as conotações deontológicas que o conceito tem na Modernidade, mas antes o estudo das capacidades morais e intelectuais que o homem emprega

em sua ação no mundo a fim de realizar sua excelência (‡retÐ) e

conquistar seu florescimento vital (eÇdaimon°a). Este é significado

74 Para autores como Nietzsche ou George Steiner, por exemplo, o iluminismo e as

suas consequências (democracia, racionalidade, desencantamento do mundo etc.) causam a morte da tragédia clássica. EAGLETON, 2013, p. 49. O caso de Aristóteles mostra como tal dialética é mais sutil do que se imaginou.

75 “Nesse sentido, o “acaso” que Aristóteles reconhece no mundo, e que tem por

corolário a imprevisibilidade do futuro, liberta o homem ao mesmo tempo em que torna sua existência precária e ameaçada. A tÀxj da tragédia se humaniza e laiciza, abrindo-se à deliberação”. AUBENQUE, 2008, p. 168.

principal da ética das virtudes76. Como a ética aristotélica defende que tal excelência deva ser encontrada em ações e não em estados de caráter, ela

precisa revolver todos os aspectos e questões relacionados com a pra/cij,

de forma similar ao que acontece na Poética. Aristóteles assinala que a

palavra pra/cij é sinônimo de dr‚ma, palavra usada preferencialmente no

linguajar dos Peloponésios (Poet. 1448b); mantendo em vista o sentido original grego, e não o sentido posterior dado pelas línguas modernas, pode-se dizer que tanto a Poética quanto a Ética constituem, portanto, análises da praticidade ou dramaticidade da vida, isto é, análises da estrutura das ações humanas tanto em seu aspecto objetivo quanto subjetivo. O aparato teórico desse tratado, com efeito, pode ser reconhecido nas páginas da Poética, sem falar que ele mesmo se elucida e enriquece por meio de exemplos literários. O caso de Príamo, personagem trágica da Ilíada, é a prova derradeira da iluminação recíproca de ambas as obras; no interior de discussões éticas, o monarca de Troia torna-se o paradigma de

mutação da fortuna (metabolÐ), um conceito que é parte central da

tragicidade de uma ação.

Os trabalhos de Pierre Aubenque e de Martha Nussbaum já recuperaram esse aspecto da reflexão aristotélica e, ainda que de forma alusiva, mostraram a possível relação entre esses escritos, relação essa que costuma ser negligenciada, sintomaticamente, quando se propõe que Aristóteles não tenha uma filosofia do trágico. Na presente tese, será feito igualmente um esforço de ler os conceitos da Poética não como termos advindos de uma análise literária strictu senso – como eles são lidos no interior da história da teoria literária – senão como conceitos derivados da análise da ação do homem no mundo, que é o que eles parecem ter sido em sua fase de gestação. As palavras, as emoções e as ações imitadas no palco são apenas os meios que os poetas utilizam para reproduzir num registro mais universal, conforme a necessidade e a verossimilhança, os mesmos eventos que encontram encenados de forma confusa e particular no burburinho da vida. Do ponto de vista filosófico, não é de somenos importância o fato de se chamarem as peças de teatro “drama” e os

personagens, pra/ttontaj ou drw½ntaj. A própria palavra personagem

está aí para falar da caricatura de uma “pessoa” real. Neste ponto, não se deve deixar o significado posterior desses termos interfira na originalidade da experiência grega, que está apenas nomeando, com palavras absolutamente cotidianas, as ações, as tarefas e os demais quefazeres dos

homens. Na atualidade, a palavra drama possui sentido eminentemente literário, mesmo quando aplicada a eventos do cotidiano; hoje não se poderia dizer, por exemplo, que todas as nossas ações são dramáticas, ou que comprar pão na padaria seja um drama, senão em sentido figurado77. Em grego, entretanto, isso seria algo perfeitamente natural. Em relação à Poética, o mesmo deve ser dito sobre a palavra ação (pra/cij), que, como dito, é escolhida em virtude do dialeto falado por Aristóteles. A ação tratada na Poética é a mesma ação tratada na Ética, ou seja, ela é também a ação que acontece na vida. Ora, como Aristóteles humaniza a herança dos trágicos através do conceito de ação e liga a ele a falta do herói, sua definição do trágico caracteriza-se pela praticidade. Este é o conceito que dirige a segunda parte desta tese. Através dele pretende-se evidenciar que o trágico aristotélico brota do interior da própria estrutura das ações humanas, o que caracteriza uma definição bastante original, se comparada com os demais autores modernos.

Sem a investigação maior do conceito de ação, com efeito, não é possível compreender o horizonte especulativo da Poética; privada de seu lado teórico, ela se torna o amontoado de regras e preceitos que nela se viu ao longo da história78. É com base em tal limitação que se afirma, igualmente, a diferença fundamental entre poética e estética, também pressuposta por Szondi e Machado. É correto dizer que a filosofia do trágico seja uma inovação teórica, quando se compreende que ela nasce no interior da “estética”, um termo que só começou a ser discutido na segunda metade do século XVIII e que possui sentido estrito no bojo de uma tradição advinda do racionalismo de Wolff. As preocupações e os objetivos teóricos, o pano de fundo argumentativo e a própria forma de desenvolver tal discussão são, pois, produtos tipicamente modernos. Não há como atribuir a Aristóteles a tentativa de fundar um discurso capaz de dar conta dos objetos artísticos como meios-termos entre as percepções sensíveis e os conceitos; do ponto de vista programático, assim, nada há que se lhe equipare na Poética. Entretanto, seria exagero supor que tal forma de

77 Düring crê, aliás, que Aristóteles teria sido responsável por introduzir esta

palavra como termo técnico. DÜRING, 1976, p. 197.

78 Nas primeiras páginas do seu Curso de Estética, Hegel menciona os principais

autores antigos – Aristóteles, Horácio e Longino – e os descreve como médicos da arte, preocupados que estariam em oferecer “receitas” para a produção de grandes obras. HEGEL, 2001, p. 39. Esta perspectiva parece ter sido opinião comum da época, como se verá. [Fique aqui registrado o agradecimento à professora Dra. Cláudia Drucker, que chamou a atenção para essa importante passagem].

pensamento distancie-se absolutamente da maneira de interrogar a obra de arte que era cultivada na tradição das poéticas, tradição que, em que pese suas inúmeras inflexões teóricas, deriva do aristotelismo. Segundo Kuhn, a primeira fase de discussão da arte na Alemanha, marcada por Winckelmann e por Herder, tinha por objetivo justificar a arte perante a consciência nacional alemã – ainda demasiado utilitária e luterana – tanto do ponto de vista pedagógico quanto social79. Vivendo tardiamente uma situação pela qual os demais Estados europeus já haviam passado, esses autores precisam discutir o que é a arte em si, achar seu lugar no seio das preocupações modernas, justificar sua raison d’être e sua autonomia ante a religião e o Estado. Os seus esforços assumem tons apologéticos e epidíticos e retomam vários recursos discursivos que já eram comuns na tradição das poéticas, sinalizando, assim, o instante decisivo em que o racionalismo da filosofia

vigente encontra o arcabouço secular da ars poetica80. Esse embate assume

importância fundamental para o perfil que a estética assumirá doravante. Quando os intelectuais subsequentes, já convencidos da singularidade tipicamente moderna do projeto estético, erguerem a bandeira romântica e tentarem desvencilhar-se da tradição das poéticas normativas, priorizando temas como a originalidade e a liberdade de criação, eles estarão combatendo não o próprio Aristóteles, que entrementes se lhes tornara inacessível, mas o esmaecido espantalho de seu pensamento que ainda animava os autores do Classicismo e associava-se ao espírito impositivo e retrógrado do Ancien Régime. Essa tradição já havia interpretado Aristóteles através de Quintiliano, de Horácio e de Longino, tendo perdido o horizonte propriamente filosófico da Poética e se contentado com a catalogação de preceitos e regras, algo que é claramente visível em autores franceses e nos dois teóricos que formulam, pela primeira vez, uma poética de índole alemã: Martin Opitz e Gottsched. Esse tema será mais bem discutido ao longo do quinto capítulo. Agora, é bastante dizer que a diferença entre uma poética da tragédia e uma filosofia do trágico pode ser problematizada se a Poética, sendo separada de sua reinterpretação

79 Na segunda carta d’ A Educação Estética do Homem, Schiller reclama, com

efeito, que o espírito do século XVIII era hostil à arte, e isso não apenas na Alemanha. Além de demasiado preocupado com o lucro, com as necessidades imediatas e com o útil (Nutzen), que seria o ídolo do tempo, esse espírito teria gerado uma filosofia excessivamente racionalista, cujo prolongamento nas ciências naturais seria responsável por roubar o lugar da arte. SCHILLER, 1999, p. 252.

classicista, a verdadeira inimiga dos autores abordados por Szondi e Machado, é pensada novamente a partir de seus próprios conceitos.

Como se vê, toda a discussão ainda se movimenta no círculo de influência da Querelle des Anciens e des Modernes, pois trata do que seria específico aos Antigos e aos Modernos, e por isso é compreensível o argumento historial que confina o nascimento de tais temas à época moderna. É apenas neste momento, supõe-se, que as questões em torno da autodeterminação (Selbstbestimmung) dos indivíduos, promovendo a experiência da subjetividade, abrem caminho para pensar o sujeito não apenas como fundamento do real, mas também como princípio criativo autônomo que enfrenta a materialidade do mundo objetivo. Esses são alguns dos assuntos que movem a filosofia de Fichte, de Hegel ou de Schelling, por exemplo, e que são audíveis no programa da filosofia do trágico. Mesmo que o argumento estivesse correto, no entanto, caberia ainda perguntar: por que então os pensadores modernos, tentando expressar esse novum que pela primeira vez se dá a meditar, fazem referência direta a uma forma de arte grega, crendo encontrar nela a exposição dos mesmos conflitos que buscam resolver? Como é que um problema essencialmente moderno poderia ser esclarecido através de uma forma de arte inventada por um povo que, supostamente, ainda não tinha as condições históricas objetivas para vivenciar tal problema?

De uma forma ou de outra, toda a tentativa de definir o trágico deve retornar ao fenômeno concreto da tragédia grega, mesmo que seja fácil demonstrar como tais tentativas pecam, muitas vezes, contra os dados históricos. Com efeito, não há nenhuma definição de trágico, antiga ou moderna, que tenha a fortuna de aplicar-se a todas as peças que nos restaram81. Mais do que isso, porém, a ideia de uma filosofia do trágico sinaliza que se trata de uma utilização metafórica da experiência do teatro grego, experiência que agora deve ser pensada em termos extraídos da filosofia e no bojo de problemas filosóficos. Supõe-se, assim, que essa forma de arte seja capaz de iluminar tais problemas de alguma forma. Movimento teórico semelhante consistiria em fazer de uma arte como o impressionismo, por exemplo, uma filosofia da impressão, retomando o que seria o proprium de tal arte em sentido filosófico. Seja para resolver certos problemas ou para propor nova abordagem da vida e do mundo, argumentar-se-ia, assim, que a captação não linear do real, a ausência de contornos nítidos e a confusão de sensações e cores, todas características

próprias dessa forma de pintura, expressam melhor a maneira como a visibilidade funciona do que a pintura algo mimética do Renascimento. Tal como aconteceu de fato com Merleau-Ponty, a essência do Impressionismo seria usada para combater a metafísica da representação82. É assim que se entende um livro como o de Unamuno, para quem a tragédia grega expressaria um sentimento característico do ser humano que se põe a meditar sobre sua finitude: o sentimento trágico da vida83. No entanto, no sentido de um projeto filosófico, o termo denota uma série de reflexões peculiares à filosofia alemã. É preciso partir para uma reflexão mais geral a fim de perguntar se Aristóteles não teria também uma filosofia do trágico. Este estudo pretende ilustrar como, pelo conceito de praticidade, ele pode prestar contribuição positiva ao problema.

82 Cf. MERLEAU-PONTY, 1980; IDEM, 1980b; IDEM, 2000.

83 “Hay algo que, a falta de otro nombre, llamaremos el sentimiento trágico de la

vida, que lleva tras sí toda una concepción de la vida misma y del Universo, toda una filosofía más o menos formulada, más o menos consciente”. UNAMUNO, 2008, p. 21.

Capítulo II

HOMERO E HESÍODO: A POÉTICA IMPLÍCITA DA TRADIÇÃO ÉPICA

Kaiì ga\r poihtikh\ ti¿ aÃllo hÄ filosofi¿a, t%½ me\n xro/n% palaia/, tv= de\ a(rmoni¿# eÃmmetroj, tv= de\ gn w¯mv muqologikh/; kaiì filosofi¿a ti¿ aÃllo hÄ poiht ikh/, t%½ me\n xro/n% newte/ra, tv= de\ a(rmoni¿# eu)zw note/ra, tv= de\ gnw¯mv safeste/ra;84

Discussões, 4, 1. Máximo de Tiro. Pensador do Platonismo Médio, séc. II d.C.