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Ao discorrer sobre a origem divina da poesia e o conhecimento poético, algumas referências foram feitas à figura do poeta: a maneira como é educado pelas Musas, a inspiração que o capacita a transportar-se para o mundo superior dos eventos descritos, a confusão de sua voz com a voz das próprias divindades do canto etc. Esta seção trata desse assunto de forma mais pormenorizada, a fim de mostrar em que medida já havia na épica grega a ideia de que a pessoa do poeta interfere no processo de “criação” literária, ideia essa que constituirá o cerne da poética secularizada de Aristóteles. Para tanto, examina-se a maneira como poeta se relacionava com o conteúdo tradicional conservado nos mitos e nas fórmulas poéticas, bem como a noção grega de inspiração.

A ideia de que o poeta seja inspirado pelas Musas teve grande repercussão na história do Ocidente, tendo sido vários os escritores e artistas que dela se aproveitaram. Ela permeia o conceito romântico de gênio, ainda que não faça referência às Musas, mas a uma naturalidade da qual decorre o talento do verdadeiro artista. Tal como na Grécia o poeta é movido pelas Musas para expressar enredos e histórias divinas, na Modernidade é a própria Natureza que expressa suas leis, seus modelos e seus segredos por meio da poesia genial. Em sua versão secularizada, o verbo “inspirar-se” continua a ser empregado nos dias de hoje de forma generalizada, sempre que sucede alguma circunstância em que haja a necessidade de ideias novas, de intuições, de insights, de criatividade para lidar com problemas etc. Desde a composição de uma música ou poema – ocasiões que mantêm ligação evidente com a arte – até a decoração da casa ou a escolha do vestuário para uma festa, a inspiração se faz presente na atualidade e conserva resquícios do conceito grego original, principalmente a ideia de que a pessoa que é inspirada recebe algo de “fora”, sobre o qual ela não tem total controle. É claro que hoje esse “algo” pode ser motivado a manifestar-se por eventos cotidianos que não têm nenhuma ligação com o divino, como, por exemplo, uma conversa empolgante, uma boa nova, uma bebida alcoólica ou um estado emocional mais pronunciado. A aplicação do método fenomenológico à circunstância em apreço tornaria patente, porém, que houve tão-somente um deslocamento a propósito da causa da inspiração, não obstante remanescerem seus traços característicos.

Entre os gregos, pois, não parece haver qualquer possibilidade de que a inspiração seja desvinculada do âmbito divino e compreendida como mera manifestação da personalidade do indivíduo, pelo menos até que os embriões da ideia de criação artística fecundem o espírito dos pensadores, um processo histórico lento que começa a sobressair-se em Simônides e,

como teoria, em Aristóteles153. Alguns estudiosos chegaram a defender que

eles nem ao menos podiam conceber tal ideia, pois a sua versão da origem do cosmo, ao contrário da versão judaico-cristã, não apela a uma criação ex nihilo e pressupõe a eterna pré-existência de algo, por mais indefinido que seja. Ergo, também o poeta não poderia extrair suas obras do nada, mas

apenas de algum material prévio que lhe era disponibilizado pelas Musas154.

A tese tem o mérito de assinalar que a compreensão da subjetividade se aprofundou na história do Ocidente a partir da hegemonia da cultura judaico-cristão, como se sabe desde Hegel. Contudo, não é preciso supor especulações tão globais quanto essas para ver que ela está correta no que toca à compreensão dos gregos, cuja noção de subjetividade só apareceu aos poucos e talvez nunca tenha exercido supremacia sobre sua civilização. Embora seja errôneo afirmar que eles não tiveram nenhuma noção de subjetividade – de fato, bastaria o “movimento sofista” e algumas frases soltas de outros pensadores para contrabalançar tal extremismo155 – a sua

153 RITOÓK, 1989, p. 343. Os fragmentos de Simônides que mais atestam isso

ligam-se ao fato de ele receber pagamento por seus poemas e ter inventado um sistema mnemônico, que via os poemas, por tanto, como obras humanas, como farão depois os sofistas. SIMÔNIDES, 1924, p.249; 267.

154 SPERDUTI, 1950, p. 220-221.

155 Cf. MONDOLFO, 1968. O trabalho de Schmitt tem mostrado, igualmente, que

essa posição já não se sustenta, ainda que vários filósofos continuem a partilhar dela. SCHMITT, 1990. Estudando como as personagens agem em Homero, Schmitt conclui que apenas em algumas ocasiões elas se deixam determinar por eventos alheios à sua vontade (Fremdbstimmheit). Porém, tanto a Ilíada como a Odisseia tratam de destinos individuais, de heróis que buscam seus próprios interesses e agem por conta própria, não obstante entrem em relação direta com vários deuses. Os retratos caracterológicos de Homero, centrando-se na faceta geral do indivíduo, respeitam as exigências de verossimilhança e necessidade postas por Aristóteles, isto é, eles descrevem as ações do indivíduo como resultado de sua formação ética e de suas escolhas, não apenas como evento externamente determinados pelos numes. SCHMITT, 2004, p. 10-11; 16. Em outro livro, Schmitt ressalta como Homero demonstra interesse pelo lado humano dos heróis, os quais, via de regra, são pessoas excepcionais que agem de modo individual, muitas vezes contra as normas e os valores geralmente prezados pela religião ou por outra forma de autoridade.

intrincada dialética entre o todo e o indivíduo sempre pendeu para o primeiro polo: no Estado, na arte, na religião, nos entretenimentos etc. Daí que nos possa ser difícil o entendimento da inspiração poética e dos graus de subjetividade que ela comporta. Como visto nos trechos citados acima, tanto Homero quanto Hesíodo afirmam que aprenderam diretamente com as Musas o enredo das histórias que cantam, já que estas divindades estão presentes em todos os lugares e conhecem a tudo. A Musa trata o poeta primariamente de forma didática e ensina aquilo que ele canta; portanto, não é o poeta quem inventa originalmente suas histórias, como ocorre no nosso caso. O poeta grego do tempo de Homero e Hesíodo recebia tanto a trama quanto a estrutura das histórias de uma matriz alheia ao seu engenho; a sua parte consistia em tratar desse material – muitas vezes já conhecido pela audiência – por meio das fórmulas poéticas que ele dominava por profissão. Mesmo nesse ponto o trabalho de sua subjetividade parece ser mínimo, porquanto as fórmulas que emprega estão conservadas num corpus prévio que, conquanto possa ser aumentado ou levemente modificado, não é de nenhum modo inventado pelo bardo, senão que pertence a uma tradição

imemorial e coletiva156. Nas passagens em que fala de Demódoco, Homero

deixa claro que é a Musa quem “implanta” no menestrel esses entrechos. A tradução citada acima não menciona, porém, a palavra específica que se

encontra no original grego: a Musa ensina (e)di¿dace) a Demódoco o canto,

seu enredo ou estrutura (oiãmaj) (Od, VIII, 74; 481). Por conseguinte, o que

resta ao poeta é tratar desses temas (oiãmaj) segundo cânones pré-

estabelecidos pela tradição épica157.

Nesse sentido, mesmo quando são incitados por um deus para iniciar uma ação, eles mantêm sua autodeterminação. SCHMITT, 2013b, p. 11; 19; 22. Ao analisar a falta trágica de Édipo, por fim, Schmitt lança mão do conceito aristotélico de hamartía, mostrando como a personagem se precipita no destino trágico por sua própria conta e risco, precisamente ao confiar cegamente em suas capacidades, um fato que é percebido pelo coro. SCHMITT, 1988, p. 17-19. Isso mostra, por exemplo, como o herói trágico está próximo do conceito de liberdade individual, que normalmente se supõe exclusivo da Modernidade.

156 WEST, 1997b, p. 46.

157 “Isso pode ser observado no caso da palavra oiãmh, que significa ‘o curso de um

canto’, a estrutura das cenas típicas. Poetas (e obviamente também a suas plateias) eram completamente conscientes dessas estruturas; eles nunca perdiam a ordem dos elementos, mas eles não as conheciam como fórmulas abstratas como se, digamos, fossem conscientes de regras métricas. Oiãmh significa o tema apresentado, o tema que o menestrel sabia numa variedade de formas particulares, cujo sucesso

A ânsia de originalidade que atravessa a concepção moderna de criação literária não raro dificulta a compreensão da situação grega. No entanto, é preciso lembrar que a audiência do poeta geralmente conhecia as histórias cantadas e as fórmulas utilizadas, se bem que em menor grau e como menos detalhes do que o aedo, e parte de seu prazer consistia em

julgar como o poeta tinha “adaptado” a história158. É impensável na poesia

épica a existência de um spoiler que estrague o final da história. Decorre daí o caráter contemplativo ou intelectual envolvido na recepção da poesia, como será comentado na próxima seção. Havia na épica grega aquilo que John Miles Foley chamou de “referencialidade tradicional”, isto é, o poeta dispunha de um sistema de fórmulas tradicionais que compreendia cenas típicas, epítetos, adjetivos, versos, palavras e temas. Em determinada cena típica (type-scene) – armar-se para a batalha, por exemplo – há a recorrência de palavras que são conhecidas de antemão pela audiência. Dá- se o mesmo quando o poeta emprega um adjetivo cujo significado primordial já havia sido estabelecido em um contexto prévio. Desse modo, a cena remete-se ao coração da tradição épica e adquire um significado inerente que é apreciado imediatamente pelo público159. Algo parecido acontece no interior da estética de Hollywood, que também se orienta por cenas padronizadas; insólito é o filme hollywoodiano que, por exemplo, apresenta um funeral em que não esteja chovendo, ou um final feliz de amor, nas comédias românticas, que não tenha sido iniciado por antipatia mútua e afirmações de individualidade entre os futuros cônjuges160. Os espectadores são capazes de perceber o que está em jogo desde o primeiro instante, mesmo que não pensem nisso de forma conceitual ou discursiva. Como o roteirista de Hollywood, portanto, o poeta grego apenas maneja padrões que estão disponíveis desde longo tempo. Entretanto, ainda assim parece haver alguma subjetividade envolvida nesse processo, como exemplificado pelas palavras de Fêmio, o aedo que vive em Ítaca. Ao dependia, porém, de sua habilidade em apresentá-las diante de uma audiência específica. Assim, a habilidade (faculdade de cantar) e o canto (particular) apresentado eram inseparáveis. Diz-se expressamente que em alguma medida a

oiãmh, o tema apresentado em um canto particular, é dado (implantado) pela Musa:

é ela quem impele o aedo a cantar”. RITOÓK, 1989, p. 342 (tradução minha).

158 WEST, 1997, p. 12-13. 159 READY, 2009, p. 118.

160 Naturalmente, há diferenças entre ambas as formas artísticas. Aqui se enfatiza,

implorar por sua vida a Ulisses, depois da matança dos pretendentes, ele declara:

Aqui me tens de joelhos, Odisseu. Suplico-te piedade. Assassinar um cantor te trará aflições. Canto para deuses e homens. Sou autodidata (au)todi¿daktoj), mas um deus implantou (e)ne/fusen) em meu coração

(e)n fresiìn) temas e enredos os mais variados

(oiãmaj pantoi¿aj). Acolhe, portanto, meu canto

como voz divina. Não me decapites. Teu filho poderá confirmar que exerci minha profissão nesta casa contra a minha vontade. Os pretendentes me obrigavam a comparecer. Eram mais numerosos e fortes (Od. XXII, 344-353, tradução modificada). O poder persuasivo desta súplica sustenta-se na honra e na admiração de que desfrutavam os menestréis, os quais possuíam atributos divinos e eram prezados pelos deuses. A afirmação de Fêmio sobre a parcela de subjetividade com que aprendeu sua profissão, estudando por conta própria, não abarca os múltiplos temas e enredos (oiãmaj) que ele canta, os quais foram originariamente implantados (e)ne/fusen) em seu coração por um deus. O verbo em questão transmite mesmo a ideia de um talento natural inato, isto é, algo com que o bardo foi agraciado pelos deuses desde a infância. Por conseguinte, não há dúvidas sobre a origem de seu conhecimento e de sua inspiração: ele não inventa suas histórias nem as aprende sozinho, senão que as recebe de um deus. Parece quesua subjetividade fica restrita a dois pontos: à forma como foi instruído nos aspectos técnicos de sua profissão, isto é, a memorização das fórmulas, a prática da recitação, a habilidade de tocar a lira etc.; e a forma como adapta

uma narrativa pronta a cada situação específica161. Quanto ao primeiro caso,

Fêmio pode estar relatando uma peculiaridade de sua história pessoal a fim de aumentar ainda mais o seu prestígio aos olhos de Ulisses. Ao contrário de outros bardos que, por pertencerem a uma família ou a uma guilda, tiveram a sorte de ser educados por mestres, Fêmio foi obrigado a virar-se sozinho na hora de aprender o saber tradicional das fórmulas, das cenas típicas, dos epítetos etc. Quanto ao segundo, ele se reflete na fala que Telêmaco apõe a uma das recitações do menestrel, dizendo que sua mãe,

161 “Fêmio parece dizer que ele ensinou a si mesmo como fazer versos, mas ele

Penélope, não deveria interromper o bardo, mas deixar que ele seguisse o canto conforme fosse incitado (oÃrnutai) por seu nçov (Od. I, 347)162. Aqui, a utilização de uma palavra que designa uma faculdade mental não é suficiente para provar que Fêmio não seja inspirado pelos deuses e componha seus poemas com o próprio engenho. Como se dá no caso acima, trata-se tão-somente do reconhecimento de que os poetas dispunham de tal ou qual liberdade para contar uma história com o nível de detalhe

apropriado a uma situação, sem que fossem os seus legítimos inventores163.

É até aí que vai sua personalidade; no restante ele se porta como verdadeiro eleito das divindades do Parnaso.

A subjetividade adquire novos contornos em Hesíodo, porque, como assumido desde Hegel164, ele é o primeiro poeta a “reivindicar” a autoria de seus poemas, usando do próprio nome no corpo da Teogonia.

Elas [as Musas] um dia a Hesíodo ensinaram (e)di¿dacan) belo canto (kalh\n a)oidh/n)

Quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra (mu=qon) primeiro disseram-me as deusas Musas olimpíades, filhas de Zeus Porta-Égide: “Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

Sabemos (iãdmen) muitas mentiras (yeu/dea polla\)

dizer (le/gein) símeis aos fatos (e)tu/moisin o(moiÍa) E sabemos, se queremos, dar a ouvir (ghru/sasqai) revelações (a)lhqe/a)”. (Th. 22-29).

162 No período homérico, a palavra nçov não tem o significado mais definido que

há de adquirir depois com os filósofos. Embora já transmita a ideia de uma faculdade intelectual com base cognitiva e responsável por pensamentos claros, não há equivalente preciso para traduzi-la, uma vez que Homero dispõe de outros substantivos com sentido similar, como frÐn ou qumçv. Em geral, todos esses termos denotam a capacidade de perceber diferenças (Unterscheidungskraft). SCHMITT, 2004, p. 20. De resto, mesmo que se entendesse o nçov como uma faculdade psicológica, isso não excluiria sua contraparte divina, porque os deuses homéricos agiam até mesmo nas disposições de ânimo das pessoas, motivando-as, dissuadindo-as ou sugerindo-lhes pensamentos, como se vê também no gênio de Sócrates. Cf. REALE, 2003, p. 45; 67-8.

163 SCODEL, 2006, p. 45.

164 “With its roots in Hegelian philosophy and Romantic literary theory, the

traditional account places Hesiod in a broader history of Greek consciousness, as the first poet to express awareness of himself as a distinct personality and self”. LEDBETTER, 2003, p. 55.

Comentando o poema, Jaeger afirmou que a individualidade poética já aparece em Hesíodo com plena consciência, o que o leva a usar dos mitos de forma criativa165. A afirmação está correta, sem dúvida, porque Hesíodo já apresenta um pensamento mais definido que Homero em vários pontos, como, por exemplo, na relação do poeta com as Musas. Desde Willamowitz supõe-se que ele teria sido tão ousado em seu gênio poético a ponto de criar os nomes de várias divindades166. Seria exagero, todavia, derivar de tal opinião a ideia de que em Hesíodo já se faz presente a consciência da criação literária tal como compreendida nos dias de hoje, tão-somente porque ele “assinou” seus poemas. Em primeiro lugar, ele não rompe efetivamente com a tradição por um anseio de singularidade, embora introduza novos temas e personagens, como o camponês oprimido pelas penúrias da vida no campo; no fundo ele continua a mover-se no horizonte

homérico adaptado à sua realidade na Beócia167. Ademais, nada impede que

em sua declaração de autoria Hesíodo esteja a imitar a passagem citada de Fêmio, como faz com tantos pensamentos de Homero168. Refletindo sobre essas passagens, concluíram alguns eruditos que, caso o poeta mantenha a consciência de sua personalidade, então resultam duas consequências: contrariando a passividade pressuposta no conceito de inspiração, ele não pode ser visto como mero veículo das Musas169; e sua poesia tampouco pode ser o resultado de um estado de transe ou possessão espiritual, como

165 JAEGER, 2003, p. 96. 166 SOLMSEN, 1995, p. 39.

167 Burnet comenta que o pronunciamento das Musas sobre sua capacidade

simultânea de mentir e revelar verdades seria, pois, a constatação de Hesíodo de que seu próprio espírito se diferencia do de Homero. Para Burnet, a ruptura entre os autores é enorme. BURNET, 1994, p. 18. Embora haja certamente inovações – como a introdução da história mitológica, que explica a penúria da época e sua diferença com a idade dos Heróis – as obras de Hesíodo só se iluminam graças à luz que ainda emana de Homero.

168 Jonathan Ready supõe que Hesíodo possa estar usando de uma persona literária.

READY, 2009, p. 130. Embora a hipótese soe demasiado moderna, não é de todo improvável. Hauser reconhece que os poetas não concebiam seus poemas como criações próprias e que a ideia de propriedade intelectual, nascida a partir de mudanças econômicas que valorizam a subjetividade, apenas começa a apontar com a poesia lírica posterior a Hesíodo, quando se assinam as primeiras artes plásticas, como o vaso de Aristonoto. HAUSER, 1998, p. 73.

ocorre na conhecida imagem que junta o poeta e o adivinho170. Afinal, tanto Hesíodo quanto Demódoco não parecem ter sido tomados por algum furor poeticus enquanto recitam os poemas, senão que conservam sua consciência ao longo desse processo. É a influência do pensamento de Demócrito e de Platão que nos faz ver o entusiasmo na épica grega e atribuir a uma época ideias que são oriundas de outra171.

Ora, não parece difícil rebater tais opiniões. A consciência que o poeta parece manter de sua personalidade ao longo da recitação, ao contrário de provar que ele não é mero veículo das Musas, prova justamente que ele o é, pois ele só pode afirmar que recebe algo de fora se continuar capaz de distinguir as fronteiras entre o externo e o interno. A preservação dessa tênue subjetividade é o que lhe permite saber que seu canto é fruto da intervenção dos deuses e não de seu ingenium. Quanto ao segundo ponto, Hesíodo não está em estado de transe durante a narração da Teogonia pela simples razão de que a teofania das Musas é algo que lhe sucedeu no passado, conforme evidenciam os tempos verbais utilizados. É certo que ele lhes pede que apareçam novamente agora e sustentem sua poesia; contudo, deixa absolutamente claro que o dia memorável em que aprendeu seu “belo canto”, tendo descoberto sua vocação para a poesia e sua missão de glorificar os deuses, já ficou para trás. Nesta ocasião, é razoável supor que ele tenha passado por uma experiência numinosa que deixou marcas indeléveis em sua vida, pois não é todo o dia que, em meio às agruras do trabalho mais humilde, os deuses resolvem interromper nossa rotina diária e nos revelar uma série de histórias maravilhosas, histórias essas que nem sequer existiam de maneira plena antes desse momento. Numa ocasião dessas, é plausível crer que o jovem pastor tenha sentido o frêmito de uma experiência numinosa sublime. Do mesmo modo, Demódoco pode estar narrando algo que lhe foi revelado em outro momento, quando talvez a novidade do fato e sua exuberância o tenham deixado em um estado visionário; agora apenas canta os eventos para os convivas com uma inspiração mais calma, já abrandada em sua fulgência por fórmulas e demais elementos técnicos. A propósito, o restante dos versos de Hesíodo frisa justamente a experiência de passivo recebimento de algo que acontece à revelia de seu controle. Hesíodo fala literalmente que as Musas o inspiraram (e)ne/pneusan) a glorificar os deuses. Ele precisa com essa expressão os contornos da inspiração que haviam sido toscamente

170 TIGERSTEDT, 1970, p. 168.

trabalhados por Homero, o qual dissera, porém, que a poesia acontece através de um processo em que a Musa incita, move ou anima o poeta, como nas passagens citadas. Ou seja, já está em Homero a ideia de que o poeta sai de sua vivência cotidiana – onde é costumeiramente guiado por