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Seção II. A arbitragem interestatal enquanto mecanismo de solução para as

B. A politização das disputas em decorrência da vedação da arbitragem

A arbitragem direta ou mista, como já visto, se consolidou como uma cláusula padrão nos acordos internacionais de investimentos, constando, por exemplo, nos Acordos de Promoção e Proteção de Investimentos assinados na década de 1990 pelo Brasil.

É, todavia, constantemente criticada sob o argumento de que colocaria o Estado no mesmo patamar do investidor particular, sujeito a um julgamento pouco transparente e caro, conforme também já apontado alhures285.

A Constituição do Equador de 2008, por exemplo, vedou expressamente a arbitragem internacional mista, conforme se verifica através do seu art. 422, de acordo

283 Sobre o tema, válida a seguinte observação de Marcelo Reis e Gustavo Ribeiro: “... no caso dos ACFIs, a política brasileira retém no Estado toda a responsabilidade pelo encaminhamento da controvérsia mesmo nos estágios em que o conflito pode ser prevenido. Além de admitir apenas a arbitragem Estado-Estado, todo o arcabouço voltado para impedir a evolução de uma fricção entre Estado e investidor tem como base o funcionamento de organismos de natureza governamental. Os comitês conjuntos, formados por entidades estatais de ambas as partes do mesmo ACFI, assim como os pontos focais, que servem de primeiro contato do investidor após uma eventual insatisfação com uma medida regulatória33, expressam a posição brasileira em presevar a capacidade do Estado de controlar as estruturas de mitigação das disputas.” (REIS, Marcelo Simões dos; RIBEIRO, Gustavo Ferreira. Revisitando a aversão brasileira à cláusula investidor-Estado: capitalismo de Estado e treaty-shopping. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 16, n. 1, p. 62, 2019) 284 A proteção diplomática consiste em instituto clássico do Direito Internacional que visa tutelar “o particular – indivíduo ou empresa – que, no exterior, seja vítima de um procedimento estatal arbitrário, e que, em desigualdade de condições frente ao governo estrangeiro responsável pelo ilícito que lhe causou dano, pede ao seu Estado de origem que lhe tome as dores, fazendo da reclamação uma autêntica demanda entre personalidades de direito internacional público”. (REZEK, Jose Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 343)

com o qual “no se podrá celebrar tratados o instrumentos internacionales en los que el

Estado ecuatoriano ceda jurisdicción soberana a instancias de arbitraje internacional, en controversias contractuales o de índole comercial, entre el Estado y personas naturales o jurídicas privadas”286.

Identifica-se, sobretudo na América Latina, um conteúdo político-ideológico muito forte em posicionamentos como o equatoriano, embora haja, conforme já mencionado neste trabalho, registros de casos em que muito se questionou as razões invocadas pelos investidores para dar início ao procedimento arbitral e ainda mais os fundamentos das decisões que condenaram os Estados a indenizar aqueles primeiros.

Paradigmático nesse sentido é o caso da Argentina, que teve umas das piores experiências possíveis nessa matéria, tendo sido objeto alvo de mais de quarenta arbitragens no CIRDI em razão do abandono da equivalência da moeda local (peso argentino) com o dólar americano, acarretando prejuízos a investidores estrangeiros com ativos investidos em seu território287.

O exemplo traumático argentino transformou a arbitragem investidor-estado, juntamente com a Convenção de Washington e o CIRDI, nos grandes inimigos dos interesses dos países em desenvolvimento.

Essa corrente se refletiu, naturalmente, nos ACFIs, que, conforme também alhures apontado, vedaram a arbitragem direta.

Não obstante, a escolha desse modelo, ao nosso ver, só é compreensível a partir da política externa do governo da época em se concebeu o modelo, centrada no estabelecimento de relações econômicas com países em desenvolvimento, da África e da América Latina, nos quais investidores brasileiros já detivessem ativos investidos, podendo-se citar como exemplo a Construtora Norberto Odebrecht, com investimentos em Angola, ou a Construtora OAS, atuando em Moçambique e Gana.

286Em tradução livre: “Não podem ser celebrados tratados ou instrumentos internacionais nos quais o Estado equatoriano ceda sua jurisdição soberana em prol de pedido de arbitragem internacional, em disputas contratuais ou comerciais, entre o Estado e pessoas físicas ou jurídicas.”

(ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/newsletterPortalInternacionalFoco/anexo/Con stituicaodoEquador.pdf>.) Acesso em 05 mar. 2019.

287 O referido autor ainda esclarece que a Argentina foi condenada na quase totalidade dos casos, obtendo sucesso em apenas alguns nos quais foi reconhecido o “estado de necessidade” que justificaria as medidas monetárias tomadas pelo governo. (WALD. Arnold. Op cit. p. 1.187-1.188).

É visível, portanto, a intenção estatal de assegurar proteção dos interesses das empresas brasileiras com atuação naqueles países, mas mantendo sob seu controle o exercício desse interesse.

Tal opção, todavia, vai na contramão do que vem sendo desenvolvido em termos de arbitragem internacional de investimentos, na medida em que submete o investidor às vicissitudes das relações diplomáticas interestatais.

Como apontam Marcelo Reis e Gustavo Ribeiro “ao propor esse modelo, o Brasil elege a via que se tornou residual no direito internacional dos investimentos para fins de heterocomposição de conflitos, contrariando a tendência de consolidação da arbitragem direta.”288

Na mesma esteira, Ursula Kriebaum acrescenta que a arbitragem mista foi concebida visando não só conferir autonomia ao investidor privado, como também privar os Estados dos desgastes que eventual intervenção diplomática pode lhes proporcionar na eventualidade de controvérsia entre seu nacional e o Estado receptor289. Ou seja, nem o investidor fica na dependência da proteção diplomática, nem os Estados têm que, diretamente, pôr em risco sua relação, naturalmente ampla do que aquele conflito determinado, em razão daquela única discussão.

Exemplo paradigmático do acima afirmado se verificou em 2006 na Bolívia, quando o governo daquele país decidiu nacionalizar refinarias da Petrobrás, ou em 2008 no Equador, quando a construtora Norberto Odebrecht foi expulsa daquele Estado, sem que houvesse a observância do devido processo legal290.

Comentando os referidos eventos, Arnold Wald expõe que a partir de 2005 se verificaram problemas com os investimentos brasileiros no exterior, destacando os que surgiram na Bolívia e no Equador, que quase acabaram em conflitos comerciais internacionais, citando ainda a opinião de outros juristas acerca do assunto, como o Embaixador Rubens Barbosa, para quem, “estando em jogo o interesse das empresas brasileiras no exterior, não propor a negociação de acordos que protejam os investimentos

288 REIS, Marcelo Simões dos; RIBEIRO, Gustavo Ferreira. Revisitando a aversão brasileira à cláusula investidor-Estado: capitalismo de Estado e treaty-shopping. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 16, n. 1, p. 59, 2019

289 KRIEBAUM, Ursula. Evaluating Social Benefits and Costs of Investment Treaties. ICSID Review. Vol. 33. Winter 2018, p.17.

em nossos vizinhos ou nos países onde a atuação delas seja mais intensa só pode ser explicado por considerações ideológicas”291.

Sob esse prisma, a limitação da arbitragem investidor-Estado acaba por sujeitar os eventuais conflitos aos fluxos político-diplomáticos, o que, não há dúvida, compromete em muito a segurança jurídica pretendida pelos acordos internacionais de investimentos. Dessa forma, embora coerente com o papel central atribuído aos Estados nos ACFIs, a opção pela vedação à arbitragem mista pode inviabilizar um dos principais objetivos desse tipo de tratado, que é a garantia quanto à responsabilização do Estado receptor, na hipótese de violação de algum dos standards de proteção previstos naquele instrumento ou no Direito Internacional.

A questão que se impõe, portanto, é: e se, por razões puramente políticas, o Estado do investidor não quiser levar adiante eventual arbitragem com o Estado receptor, como ficará a situação do investidor? Terá que se contentar, na melhor das hipóteses, com a possibilidade de acionar judicialmente o Estado receptor, e, para tanto, não se faz necessário acordo internacional algum.

Em outras palavras, a politização das controvérsias - caminho provável quando a única alternativa é a arbitragem tradicional, entre Estados – pode tornar letra morta os acordos internacionais de investimentos, já que os investidores, estando na dependência dos humores dos governantes do momento, não poderão invocar, por ato próprio, as cláusulas protetivas previstas no acordo.

Tal situação é ainda mais dramática no caso dos investidores brasileiros, tendo em vista que, dentre todos os signatários dos ACFIs, o Brasil é a maior economia e, junto com o México, aquela cujos nacionais possuem o maior volume de recursos no exterior. Logo, os maiores interessados em não depender dos ventos da política e da diplomacia na hipótese de algum tipo de controvérsia são justamente os investidores brasileiros.

Nesse contexto, chama atenção a ausência de manifestação ou qualquer espécie de protesto por parte dos investidores nacionais acerca da limitação em comento, que, como apontado, afeta de maneira inconteste os seus interesses.

Reis e Ribeiro apontam dois motivos para tal falta de reação.

O primeiro, seria o fato de boa parte desses investimentos serem custeados com recursos do próprio Estado, notadamente através do BNDES, o que reduz a preocupação

dos agentes privados com os eventuais riscos do negócio, já que se tratam de recursos públicos.292

O segundo consiste na possibilidade dos investidores internacionais se valerem do chamado treaty shopping293, acionando outros acordos internacionais a partir de outras

operações coligadas sediadas em países que possuam tratados de investimento com o país receptor, os quais prevejam a instauração da arbitragem. Nesse sentido, Reis e Ribeiro citam o exemplo da controvérsia verificada entre Bolívia e Petrobras em 2006, em que se cogitou a submissão do caso a uma corte arbitral internacional com base no fato da subsidiária boliviana da Petrobrás ser controlada por outra subsidiária do grupo constituída de acordo com as leis holandesas, e, naquele período, ainda estar em vigor TBI celebrado entre Holanda e Bolívia294.

Talvez, a existência da aludida alternativa, uma vez que as empresas multinacionais, em regra, possuem operações coligadas ou subsidiárias em vários outros países, possa realmente ter sido um dos fatores a justificar a omissão dos investidores nacionais acerca da vedação da arbitragem mista, o mesmo podendo ser dito da outra causa suscitada pelos aludidos autores, reativa à natureza pública de parte significativa dos recursos.

§2. Procedimento

Feitas as considerações acima, importa detalhar o procedimento arbitral como se encontra nos Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos.

Em primeiro lugar, importa esclarecer que não há um padrão determinado nas cláusulas que regem a arbitragem nos ACFIs.

292 REIS, Marcelo Simões dos; RIBEIRO, Gustavo Ferreira. Op. cit. p. 64.

293 Treaty shopping é uma expressão muito utilizado no Direito Internacional Tributário, que significa a adoção de procedimentos artificiosos que permitam que o contribuinte, para usufruir de uma tributação mais favorecida, possa se valer de um determinado tratado internacional de bitributação. Como expõe Leal, “o planejamento tributário focado no uso de tratados para evitar a dupla tributação de forma a beneficiar um sujeito não originalmente legitimado é reconhecido pela doutrina sob a expressão treaty shopping. O termo é uma alusão a forum shopping, no qual o objetivo é buscar a jurisdição mais favorável para torná-la aplicável a determinada situação litigiosa. O treaty shopping, de forma similar, procura a convenção sobre dupla tributação que maiores vantagens tributárias traria e estrutura operações para transformar-se em beneficiário da mesma.” (LEAL, Rhauá Hulek Linário. Uso de tratados sobre dupla tributação no planejamento tributário internacional: treaty shopping. Revista do Mestrado em Direito. ISSN 1980-8860 UCB. Disponível em: < https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd> p. 132)

294 Pela sua relevância, válida a transcrição integral do trecho em questão: “Do ponto de vista formal, a subsidiária boliviana da Petrobrás era controlada por outra subsidiária do grupo constituída de acordo com as leis holandesas. Caso ambos os governos não tivessem entrado em um acordo sobre a precificação dos ativos expropriados, estaria aberta a via para uma arbitragem da estatal brasileira, por seu braço holandês, contra a Bolívia.” (REIS, Marcelo Simões dos; RIBEIRO, Gustavo Ferreira. Op. cit. p. 66)

Exemplificando, o ACFI Brasil-Angola trata da arbitragem no número 6 do artigo 15, se restringindo a dizer que “caso não seja possível solucionar uma disputa surgida nos termos do parágrafo 2 deste artigo por recomendação do Comitê Conjunto, as Partes poderão recorrer a mecanismos de arbitragem entre Estados para solucionarem a referida disputa”295. Não há qualquer especificação quanto ao procedimento, tais como

regras aplicáveis, designação dos árbitros, matérias excluídas, dentre outros temas que geralmente são tratados nesse tipo de cláusula. Esse mesmo formato “enxuto” é também encontrado nos ACFIs Brasil-Moçambique e Brasil-Maláui.

Já no ACFI Brasil-México consta cláusula bem mais detalhada – artigo 19 – na qual são regulados diversos aspectos do procedimento arbitral, tais como objetivos, limites temporais à incidência da arbitragem, requisitos para o regular desenvolvimento do procedimento, dentre outros. O número 7 do referido artigo, por exemplo, estabelece que os Árbitros deverão a) ser pessoas de alto nível moral e ter a experiência ou especialidade necessária em Direito Internacional Público e ter reconhecida experiência na área relacionada com a controvérsia; b) ser independentes e não estar vinculados a qualquer das Partes ou aos outros árbitros ou a testemunhas, direta ou indiretamente, nem receber instruções das Partes, e c) cumprir as "Normas de Conduta para a aplicação do entendimento relativo às normas e procedimentos que regem a resolução de controvérsias" da Organização Mundial do Comércio (OMC/DSB/RC/1, de 11 de dezembro de 1996), conforme aplicável à controvérsia, ou qualquer outra norma de conduta estabelecida pelo Comitê Conjunto296.

O mesmo padrão mais detalhado se verifica nos acordos posteriores ao assinado entre Brasil e México, como no ACFI Brasil-Colômbia – Artigo 23 -, cuja cláusula relativa à arbitragem é bem parecida com a daquele primeiro, com alguns traços próprios, como a previsão contida no número 3 do seu artigo 23, segundo o qual não poderão ser objeto de arbitragem o Artigo 13 (Responsabilidade Social Corporativa), o parágrafo 1 do Artigo 14 (Medidas sobre Investimentos e Luta contra a Corrupção) e o parágrafo 2

295 BRASIL. Decreto nº 9.167, de 11 de outubro de 2017. Promulga o Acordo de Cooperação e

Facilitação de Investimentos entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República de Angola, firmado em Luanda, em 1º de abril de 2015. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9167.htm>. Acesso em: 07 mar. 2019.

296 BRASIL. Decreto nº 9.495, de 6 de setembro de 2018. Promulga o Acordo de Cooperação e

Facilitação de Investimentos entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos estados Unidos Mexicanos, Cidade do México, em 26 de maio de 2015. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Decreto/D9495.htm>. Acesso em: 07 mar. 2019.

do Artigo 15 (Disposições sobre Investimento e Meio-Ambiente, Assuntos Trabalhistas, Saúde e Segurança)297. Tal formato é observado nos ACFIs Brasil-Etiópia, Brasil- Suriname e Brasil-Guiana.

É o ACFI-Chile, todavia, o acordo em que o procedimento arbitral é regulado de maneira mais detalhada, tendo sido dedicado ao tema um anexo – Anexo I -, no qual são abordados, de modo pormenorizado, todos os detalhes da arbitragem. Tal diferenciação em relação aos demais acordos talvez se deva à larga experiência do Estado chileno com esse tipo de mecanismo de solução de controvérsia em âmbito internacional, já que, como destaca Rodrigo Polanco Lazo, o Chile se encontra entre as 20 economias com acordos internacionais de investimento em vigor, o que lhe confere significativa experiência no tema298.

Diante disso, é possível identificar 03 formatos de regulamentação da arbitragem internacional no âmbito dos ACFIs: o mais “econômico”, presente em Angola, Moçambique e Maláui; o razoavelmente detalhado, presente em México, Colômbia, Etiópia, Suriname e Guiana; e o mais pormenorizado, o Chile.

Tal falta de uniformidade, todavia, não impede que se faça uma análise geral dos principais pontos referentes ao procedimento arbitral: definição do tribunal e nomeação dos árbitros, autonomia do tribunal na definição do procedimento e seus limites de cognição.