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5.2 – A Posse e seu Discurso

A partir de 1° de janeiro do ano de sua posse, Bolsonaro não poderia mais se colocar como “sujeito-franco atirador” da produção de discurso, não bastaria tangenciar, ou menos que isso, ignorar questões fundamentais de Estado. O discurso do ódio e da perseguição, do anticomunismo e da segregação não cessaria, mas teria que vir acrescido de reais enfrentamentos de questões de natureza política; econômica; educacionais, e de infraestrutura, dentre outras, pois agora sua posição era a de sujeito- presidente.

Desde o início, até mesmo antes da posse, Bolsonaro, ao contrário do que alguns esperavam não fez concessões. Continuou o discurso de campanha, que foi naturalmente amplificado pela posição que agora ocupava. Era um discurso das elites contra os pobres, dos opressores contra os oprimidos, como analisaremos.

O discurso bolsonarista era um discurso de colonizador, a começar pelo estreitamento político das relações com Donald Trump, em detrimento de nossos próprios e próximos vizinhos da América do Sul. A aproximação atendia muito mais aos interesses estadunidenses do que aos do Brasil. Tudo era colocado no âmbito da “ideologia política”, entendida como a supressão das relações com qualquer manifestação de esquerda e em prol do fortalecimento de laços com a direita internacional. Essa relação

106A pesquisa ocorreu entre os dias 20 e 23 daquele mês e ouviu duas mil pessoas de 126 municípios. Com índice de confiança de 95%, e margem de erro de 2 pontos porcentuais para mais ou para menos.

que afetava discursivamente o Brasil duas vezes. No nível externo para o interno a submissão do país ao colonizador externo, e dentro do próprio país o reforço do discurso histórico que colocava o colonizado sob o domínio do colonizador interno. O discurso nacionalista ruía, e se por um lado seus sentidos morais eram de extrema direita, por outro, o discurso da política internacional e econômica era neoliberal e de enfraquecimento do país. Ilustramos com uma importante passagem de Orlandi em

Terra à Vista:

Nosso objetivo não é falar sobre a “constituição da identidade”, mas antes do imaginário que se constrói para a significação do brasileiro. Qual é a concepção de brasileiro desses textos e como essa concepção vai trabalhando tanto a exclusão como a fixação de certos sentidos, efeitos de sentidos que produzem um imaginário que coloca no brasileiro uma marca de nascença que funcionará ao longo de toda a história: o discurso colonialista. O que significa “ter sido” colonizado em um discurso que funciona para que seja essa uma marca a-histórica de essência.

Por aí vemos que a ideologia não “aparece” em um passe de mágica. Ela tem uma materialidade, e o discurso é o lugar em que temos acesso a essa materialidade.

Processos de discurso vão provendo o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginário da sociedade brasileira.

O efeito ideológico – colonialista – não nasce do nada. Sua materialidade específica é o discurso. (ORLANDI, 2008. p. 55)

Já evocamos os processos de colonização na obra de Jessé Souza, em uma visão sociológica, e na de Fanon, uma visão antropológica. Agora, e é fundamental, recorremos a Orlandi para estabelecer o colonialismo e seus processos na língua, mais precisamente na Análise de Discurso.

Assim foi feito por entendermos que a questão central do discurso bolsonarista, ao empunhar a bandeira da extrema direita, se dá no espaço do discurso colonizador. O discurso neoliberal é um discurso colonizador, ou para seguirmos o seu estatuto e sentidos, “neocolonizador”. É um discurso que interpela especialmente o sujeito- colonizado, e busca sua recolonização. A colonização como vimos em Fanon, interfere no presente e no futuro, mas também reescreve o passado. Na medida em que o tempo passa vão surgindo outras formas de leitura, outros gestos do colonizado em relação ao colonizador, quando se instaura a luta e há, ou ao menos pode haver, uma ressignificação.

Em um mundo cujo sentido globalizante é o da perpetuação dos processos de colonização, seus agentes não podem parar, pois ressignificado pela luta, pelo combate e pelo amor próprio, o colonizado pode fugir ao controle do colonizador, e não são dias ou anos, mas séculos de um projeto baseado em riquezas, poder e sangue, que pode ser destruído. Os elos da corrente devem ser de tempos em tempos fortificados, pois a quebra de um é o desacorrentamento.

E aí, ingressamos em nossos domínios, pois é acima de tudo pela língua que esse processo se protrai no tempo. Há uma necessidade, e aqui falamos de Brasil, de recriar o imaginário do brasileiro. É por meio do discurso que esse processo simbólico acontece. É necessário de tempos em tempos “colocar o colonizado nos eixos”, só assim ele estará pronto e disposto a uma plena dominação.

O discurso direitista se presta muito a isso. No âmbito religioso, por exemplo, ele sufoca as religiões africanas ou afro-brasileiras, do negro e da mestiçagem para apoiar o protestantismo branco e europeu, mesmo em detrimento da origem colonizadora católica. Pois o mesmo catolicismo que colonizou foi se “afrouxando” abrindo espaços simbólicos que podiam deixar escapar outra significação.

Ele se tornou polissêmico, aberto as correntes de esquerda, como a Teologia da Libertação, e as visões dos oprimidos, e adquiriu um tom mais pacífico em relação à nossa multiculturalidade, não abrindo-se ao sincretismo, mas sendo mais condescendente com ele. Havia aí a pressão exercida por intelectuais católicos de esquerda, que viam nessa “tendência ao sincretismo” uma manifestação social, antropológica, e podemos dizer, mais que tudo linguística, na necessidade do expressar sentimentos. Mas o colonizador não permite que o colonizado volte a seu estado de origem. O pentecostalismo chega com força ao Brasil, não coincidentemente, a partir da década de setenta, auge da ditadura, por meio de missionários estadunidenses. Esse “protestantismo dos opressores” está hoje na pauta de cada dia. Bolsonaro ao reagir a decisão do STF, que em junho, criminalizara a homofobia disse que “precisávamos de um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal”. O “evangélico” aqui tem que ser entendido em dois sentidos, um de antecipação, pois Bolsonaro atua linguisticamente antes do interlocutor-conservador, para dar o recado de que essa “imoralidade” não pode continuar. E tem, também, o efeito de deriva, no qual “evangélico” é o elemento de repressão contra a liberdade sexual.

Os aparelhos repressores do colonizador são operacionalizados nas mais diversas áreas. O espelho posto defronte do brasileiro são os Estados Unidos de Trump, a terra em que as coisas dão certo, em oposição a um Brasil liberto, no qual nada frutificará. A língua então vai produzir, por meio da discursividade, o engrandecimento estadunidense, em face da pequenez brasileira. O discurso que produz efeitos é algo como: “para sermos grandes precisamos ser como a América”. Dá mesma forma que no processo linguístico de catequização, onde para se ser “salvo” é necessário “ser cristão”.

Essas associações discursivas que vão da religião à política externa, e de relações internacionais, são o assujeitamento a que é exposto o sujeito-colonizado. O discurso totalitário exerce uma repressão absoluta a qualquer possibilidade polissêmica, ele controla todos os sentidos: a religião do progresso, a economia (neoliberal) do progresso, a moral instituída e controlada do desenvolvimento, o cerceamento político pelo silenciamento que conduzirá a prosperidade da nação, etc. São essas as formulações, que para citarmos Cazuza faz com que “assim nos tornemos brasileiros”, e concluo em intertextualização “nos tornemos brasileiros na concepção que o colonizador dá a brasileiro”, ou seja, “deixamos de ser brasileiros”, pois o colonizado não tem pátria nem nacionalidade, é um ente, muito antes de ser humano.

Em seu discurso de posse no Congresso Nacional como 38° Presidente da República Bolsonaro falou por 9 minutos e 53 segundos. Analisaremos alguns trechos de sua textualização oral. Os recortes serão numerados a partir de 1, precedido pela letra R, em maiúsculo. Serão colocados entre aspas e em itálico, todos os eventuais grifos são nossos:

R1 -

”Brasileiros e brasileiras. Primeiro, quero agradecer a Deus por estar vivo. Que,

pelas mãos de profissionais da Santa Casa de Juiz de Fora, operou um verdadeiro milagre. Obrigado, meu Deus!”

Após as citações protocolares Bolsonaro inicia seu texto com um bordão que foi popularizado por José Sarney: “Brasileiros e brasileiras”. Era assim que o primeiro presidente civil após a ditadura militar, vice de Tancredo Neves eleito pelo Colégio Eleitoral, iniciava seus discursos. No inconsciente, Bolsonaro simbolizava Sarney, ao reproduzir os sentidos de seus discursos pela marca distintiva.

Após o vocativo que era textualizado por Sarney, Bolsonaro agradece a Deus. Segue assim o lema de sua campanha “Deus acima de todos”, e reforça o efeito de sentidos de um Estado que deveria se guiar pela deidade, pela religião. No discurso religioso uma deidade invisível ocupa o lugar do ser humano, que sofre um apagamento, essa formação discursiva, produz efeitos de rebaixamento do humano perante o imaginário, o que o torna anti-humanista. Não foram os cientistas (médicos) que salvaram a vida de Bolsonaro após o atentado de 6 de setembro de 2018, mas sim o Deus cristão, que “operou um milagre pelas mãos dos médicos”, o conhecimento científico e a habilidade cirúrgica são apagados, quem “opera” é Deus.

A criação imaginária que se simboliza no sagrado é utilizada desde os mais primevos tempos para diminuir o homem, não em face de uma deidade, mas em relação ao representante da deidade. O líder político, os detentores do poder são historicizados (um bom exemplo, bem mais recente são as monarquias absolutistas) como os legítimos representantes dessa deidade, são os “eleitos”, os “escolhidos”, e a eles temos de nos curvar. Bolsonaro utiliza Deus como ponto de apoio de poder, inicia seu discurso dizendo ao povo que o ouvia que “era um dos escolhidos”.

R2 – “Aproveito este momento solene e convoco cada um dos Congressistas para me

ajudarem na missão de restaurar e de reerguer nossa Pátria, libertando-a,

definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade

econômica e da submissão ideológica.”

O presidente textualiza a expressão “reerguer nossa pátria”, o efeito de sentidos produzido é de índole totalitária, lastreada em uma espécie de “liderança messiânica”, que também produz, portanto, sentidos do religioso no político. Palavras como “restaurar”; “reerguer”, e “reconstruir” simbolizam o mítico no discurso político, são apelos ao salvacionismo. Não se trata de administrar, governar, “fazer o país progredir”, estes termos produzem sentidos de continuidade, o líder totalitário e extremista não se coloca no papel enunciativo de sujeito-continuador. Para ele deve ser simbolizada a destruição, para que seja operado o ato heroico pelo sujeito-reconstrutor.

Bolsonaro nomeia o que para ele seriam os quatro males primordiais do Brasil, do qual deveria ser “libertado definitivamente”, também caracteriza o discurso político- totalitário o sentido de “definitividade”, pois o líder e sua obra devem ser eternos. “O Reich de mil anos”.

São elencados a corrupção, a criminalidade, a irresponsabilidade econômica e, por último a “submissão ideológica”. Esta última é a que mais importa. As outras três poderiam ser substituídas por centenas de problemas de índole histórico-social que se perduram no Brasil. Mas a ideologia é o centro da produção discursiva, que diz: “Reerguer nossa pátria, libertando-a da submissão ideológica”. Estamos todos assujeitados por uma ideologia, no caso, a produção dos efeitos do discurso são: “libertar a pátria de ideologia diferente da nossa”.

A palavra ideologia é afetada por deslizamentos de sentido, os pontos de deriva estudados pela Análise de Discurso Pêcheux-Orlandiana107, ela é ressignificada como “pensamento de esquerda”, “ideário marxista”, ou “comunismo”. Sempre estaremos assujeitados por uma ideologia, não é diferente com Bolsonaro e seus seguidores, que o fazem a partir a uma “submissão” à ideologia de direita. No discurso de Bolsonaro, o que deve deixar o Brasil para que este se torne “liberto” é a ideologia de esquerda.

O alcance de produção de sentidos é ainda maior, uma vez que a ideologia não é um ente por si próprio, mas sim um ideário que afeta e assujeita o humano. Assim ao dizer que “devemos libertar a pátria da submissão ideológica (ideologia diversa da nossa)”, Bolsonaro também diz: “Devemos libertar a pátria de pessoas que pensem diferente de nós”. É o primeiro passo para a perseguição e o extermínio. Vamos reerguer a pátria libertando-a definitivamente de nossos adversários/inimigos políticos. É o discurso supressor da democracia, em seu discurso de posse, Bolsonaro já instaura, ao menos no nível discursivo, e simbolicamente, a “ditadura”, regime que apaga os adversários pela exclusão daquilo que é mais caro à humanidade: a capacidade de reflexão e projeção de seu pensamento. A libertação da “submissão ideológica” que prega Bolsonaro se dá por um “ideólogo”, ou seja, aquele que “produz uma ideologia”, que é o astrólogo Olavo de Carvalho.

107Enfatizamos em nossa tese essa nomenclatura, que trata a nosso ver com maior rigor científico a nossa ciência, na medida em que, a chamada “Escola Francesa de Análise de Discurso”, expressão refutada por Pêcheux, é uma criação do intelectual francês, com base nos três grandes campos do conhecimento surgidos no século XIX. A saber: o Marxismo, a Psicanálise e a Linguística de Saussure. Com uma filiação ao pensamento althusseriano. Morto precocemente em 1983, Pêcheux nos deixou um magnífico legado, que a partir do Brasil, pelos estudos e propostas de Eni Orlandi ganhou um considerável aprimoramento e engrandecimento. Não se trata da apropriação e estudo, mas sim da continuação da construção científica. Por essa razão, nos referimos à Análise de Discurso que nos esforçamos para por em prática como “Pêcheux-Orlandiana”, e não como “Pêcheuxtiana” ou “Pêcheutiana”, pois seria, claramente, um reducionismo, que pela importância da produção pessoal de Orlandi para a Análise de Discurso, consubstanciaria verdadeiro apagamento histórico. Assim, utilizamos e propugnamos pelo uso dessa terminologia.

R-3 - “Temos, diante de nós, uma oportunidade única de reconstruir o nosso País e de resgatar a esperança dos nossos compatriotas.”

Na análise do recorte 2, já estabelecemos o que é simbolizado por determinadas palavras, aqui, Bolsonaro retoma a “reconstrução”, e textualiza “resgate”, que produzem o mesmo efeito de sentidos salvacionista, que é muito acentuado nos discursos de direita, sobretudo de natureza fascista.

R-4 - (...) “pelo exemplo e pelo trabalho, levaremos as futuras gerações a nos seguir nesta tarefa gloriosa.”

No discurso Ur-fascista, “exemplo” e “trabalho” são palavras de uso recorrente e que se ressignificam a partir de pontos de deriva. “Exemplo” é seguir o líder e sua ideologia, sem pensar ou refletir, e “trabalho” é uma antecipação, pois se joga com os sentidos da “indolência das esquerdas”, o “trabalho” tem seus sentidos monopolizados pela direita, só ela trabalha, e deve fazer com que os outros trabalhem, afinal, Arbeit macht frei, ressoa o discurso hitlerista.

Como analisado, “seguir o líder e sua ideologia”, no mesmo recorte é complementado “a nos seguir nesta tarefa gloriosa”. O discurso convoca no sentido de “ser seguido”, ele se explicita para reforçar os sentidos já produzidos. E utiliza a expressão “tarefa gloriosa”, o líder fascista não se contenta em realizar tarefas, essas clamam por adjetivações poderosas, de engrandecimento, pois ele tem uma missão, então, não se trata de tarefa, mas de “tarefa gloriosa”, a textualização “gloriosa” surge da necessidade de se simbolizar na eternidade da glória. Não é uma tarefa feita para o povo, é uma tarefa feita em “honra ao líder”.

Também importante para análise é o enunciado “levaremos as futuras gerações”, existe no discurso de extrema direita uma preocupação constante de inserir “novas gerações”, o efeito de sentidos é, mais uma vez a de eternização. Algo é levado de geração a geração para se eternizar na missão gloriosa, é a simbolização da traditio, necessária para a estabilização de sentidos alvejada pelo fascismo, que se fecha à polissemia e retém os efeitos de sentido, assim, galvaniza, monopoliza as atenções.

R5 –

“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição

judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um País livre das amarras ideológicas.”

Aqui é retomado, por meio de recorrente reforço, o discurso já analisado sobre “ideologia”. Outros efeitos de sentidos onipresentes no discurso Ur-fascista estão aqui, como a “união do povo” e “valorização da família”. O povo não se une, ele “é unido”, isto é, a união não se faz pela vontade popular, mas pelos desígnios do líder. O processo, como na colonização, se dá de “fora para dentro”, e não no âmbito popular. O povo “necessita” ser guiado. A função de guia é do líder, e assim o povo é manipulado para cumprir os interesses aos quais se assujeitará, na falsa impressão de que o “grande pastor de ovelhas” o conduzirá pelos melhores caminhos. A palavra “povo” sofre deslizamento de sentidos, em trabalho de produção metafórica, deixa de ser “o conjunto de habitantes de um país”, para se tornar “uma única cabeça a ser guiada”. Única

cabeça vai encontrar sentidos na célebre frase de Calígula, segundo o qual, “O povo

deveria ter uma cabeça só, para ser decapitado de uma só vez”.

A supremacia do cristianismo, ferindo o constitucionalizado Estado laico, é significado por “nossa tradição judaico-cristã”, e antes, o “respeitar as religiões” se perde discursivamente pela colocação do conectivo “e”, que passa a significar “respeitar as religiões desde que elas reconheçam a superioridade de nossas tradições judaico- cristãs.” Grifamos um trecho especialmente importante para nossa análise: