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A peste acordou e enviou seus ratos para matarem um país infeliz.

No ano de 1997 a Casa de Valentino Bompiani publicou Cinque Sccrtti Morali, ensaios do filósofo; semioticista e linguista italiano Umberto Eco, que no Brasil foi editada pela Record. O segundo dos ensaios contidos na obra é denominado O Fascismo

Eterno. Neste, Eco, com sua peculiar agudeza, tece considerações sobre alguns regimes

totalitários, como o Nazismo e o franquismo, para chegar à conclusão de que de todos aqueles, o que mais se adapta, na verdade o único que se adapta a condições culturais mais diversas é o fascismo.

Fatores diversos, dentre os quais realçamos essa capacidade de adaptação a uma grande gama de diferentes culturas favorecem o ressurgimento do fascismo. Segundo Eco a palavra “fascismo” foi transformada em uma sinédoque para movimentos totalitários diversos. (ECO, 2000. p. 37). Compreendemos que na visão de Eco, a razão da eternidade do fascismo, reside no fato dele não ser, ao contrário de outros, um movimento totalitário canônico com regras absolutamente fechadas. Retirando um ou outro elemento do fascismo, ou alocando a ele mais um ou dois, ele continuará sendo

fascismo. Eco exemplifica que se retirarmos do fascismo o imperialismo, teremos

Franco ou Salazar. E assim explica outras possibilidades. O fascismo é uma espécie de

ampla plataforma para regimes totalitários, um campo aberto, que a partir de algumas

pequenas modificações está sempre apto a despertar, e criar regimes de repressão e imposição ilegítima da força.

Essa situação talvez explique a razão de muitos estudiosos, das mais diversas áreas, serem comedidos para utilizar o termo nazismo, atentando, muitas vezes, para o perigo de sua vulgarização. Na verdade, não seria exatamente vulgarização o termo correto, mas sim uma utilização inapropriada. Quando judeus atentam para este fato são muitas vezes acusados, muito injustamente, de querer monopolizar os sofrimentos causados pela doutrina de Hitler. Uma iniquidade contra um povo que sofreu em todos os regimes totalitários. Muito provavelmente, o que a grande maioria dos judeus que assim se enunciam, tem como escopo atentar para as mesmas reflexões feitas por Eco. O nazismo possui especificidades, que se retiradas, o mutilam, deixa de ser “nazismo”. Todavia, o mesmo não acontece com o fascismo, ele tem o dom de se adequar, quase darwinisticamente, a ambientes; culturas e épocas diversas. Ele desperta e envia seus ratos. Ele ronda escondido a espreita de novas vítimas, e com sua capacidade de se amalgamar a diversos sítios e situações, ele nunca morre.

Possui a aptidão de se instalar, mesmo sem ser a princípio assim reconhecido, e causar todo o mal que sempre causou. Todo o seu poder destrutivo retorna com forças ainda maiores e difíceis de serem combatidas. O idiota feliz e pacífico pode amar o fascismo, da mesma forma que o fazem os imbecis violentos e amargurados.

Com base em suas reflexões Eco criou o que chamou de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo

eterno”, que pode, segundo ele ser identificado a partir de 14 características. Nas

palavras de Eco:

A despeito dessa confusão considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista. (ECO, 2000. pp. 42-43)

Por motivos óbvios não farei aqui a transcrição ipsis litteris de todas elas, que estão bem definidas entre as páginas 43 e 52 da citada obra, assim, liberto-me de um vão esforço de copismo e poupo aquele, que ainda não leu o ensaio, de algo a que pode muito facilmente ter acesso por fonte direta. Mas, não vou me furtar a elencar as características dada a grande importância que vejo para o presente trabalho. E fazer as considerações que julgo adequadas partindo das próprias premissas de Eco.

Desta forma, em linhas gerais, são as seguintes as características do “Ur-Fascismo”:

1 – O culto da tradição, entendido como a ânsia de retomar um passado perdido. Eco

exemplifica com o sincretismo tradicionalista de Julius Evola, o principal mentor intelectual da nova direita italiana, que: “Misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sion, a alquimia com o Sacro Império Romano.”.

2 – O tradicionalismo é uma consequência natural da característica anterior. Implica,

fundamentalmente, na recusa da modernidade.

3 – O irracionalismo. Esta característica, por tudo que nos envolve necessita sua

transcrição em sua totalidade:

O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada antes de nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) O uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais

fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. (ECO, Ob. Cit. p. 45) (Grifo nosso)

Este trecho está, preocupantemente, muito marcado na contemporaneidade brasileira, em todos os aspectos. Quase uma descrição exata daquilo que vivemos. A parte grifada, que muito diz respeito a todos nós, e ao momento brasileiro mostra a visão de Eco sobre o “intelectual fascista”. Isto é, tal intelectual não está preocupado em produzir, mas em cercear. Não são, na verdade, intelectuais, mas sim inspetores oficiais da intelectualidade. Sua missão é evitar a produção intelectual. Atualmente agem de duas maneiras: a primeira é atacar todo e qualquer genuíno intelectual que não pense exatamente conforme os ditames estabelecidos. A segunda é criar uma “falsa produção intelectual”, que confira ares de verdade a um punhado de ideias desconectadas do saber científico e de qualquer epistemologia que possa ser honestamente acatada. Com este artifício buscam a seu turno dois claros objetivos, que são respectivamente, instalar nas mentes menos letradas (e aqui vão ao encontro de grande parte das classes médias), ideias que, muito embora não tenham o devido suporte, são facilmente aceitas e digeridas como verdades absolutas. O segundo é desacreditar, pela inflação de pensamentos e ideias rasas a verdadeira intelectualidade.

Este segundo tópico é fundamental, pois está de acordo com um pressuposto basilar da Teoria da Comunicação, segundo o qual, o excesso de informações retira o poder das melhores informações.

4 – Nenhuma forma de sincretismo pode ser criticada, pois o desacordo é traição.

5 – O desacordo é banido, pois representa a diversidade; o fascismo se manifesta pela

tentativa de monopolização da verdade. Prepondera o medo pela diferença, o que torna, segundo Eco, o Ur-Fascismo “racista por definição”.

6 – Aproveitamento das frustrações individuais ou sociais. Esta característica é

fundamental para a cooptação de uma classe média ressentida. Quando a classe média se vê assolada por uma grave crise ou pressionada por “um poder subalterno”, ela tende a cerrar fileiras com o ideário fascista.

Mais um ponto muito visível no período bolsonarista. As classes médias empobrecidas pela crise, e pressionadas pelo surgimento de novos vetores, como a

maior acessibilidade de pobres aos cursos superiores, se sente humilhada. Um bom exemplo é a já citada baixa empregabilidade e menores salários causados por aquilo que Bourdieu denominou “inflação de diploma”, que não apenas atinge aos mais fracos economicamente, mas também aos filhos da classe média “tradicional”.

7 – Arregimentação daqueles que se vêm sem privados de qualquer identidade social. Evidentemente para chegar ao poder, muitas vezes pelo voto, como em nosso

país, ou para mantê-lo a partir de um golpe, o fascismo vai depender de um apoio das camadas populares, sobretudo, em um país como o nosso em que elas são a grande maioria. Hipertrofiadas pela opressão histórica.

Aqui surge como ponto central a ideia de pertencimento, isto é, somos todos nascidos em um mesmo país. Essa ideia de nação como identidade maior para suprir a privação da genuína identidade social aparece pelas marcas do nacionalismo. Valorização das “cores nacionais” (“o vermelho não está em nossa bandeira”), símbolos nacionais e qualquer objeto que possa servir ao fetiche do nacionalismo populista. Para Eco, este é um processo que conduz à xenofobia, mais que isso: “Faz apelo a ela.”.

8 – Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo

Nesta característica, também recorreremos à citação direta de Umberto Eco:

Quando eu era criança43 ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres, mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que devem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos

demais. Os fascismos44 estão condenados a perder suas guerras, pois são constitucionalmente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo. (ECO, Ob. Cit. p. 47).

Existe a necessidade, também, de se criar um inimigo45, o fascismo não subsiste a ausência de inimigos. Evidentemente, oposição sempre haverá na política, mas aqui

43 Nascido em 1932, a referência de Eco é à sua infância passada sob o domínio do fascismo de Mussolini.

44 Importante notar que Eco pluraliza fascismo, pois, ao contrário do nazismo ou do salazarismo, não é um só. Isso enfatiza a ideia de política totalitária multifacetada e eterna.

45 O próprio Eco escreveu um belíssimo ensaio denominado Costruire il Nemico, originalmente uma conferência proferida na Universidade de Bolonha, no dia 15 de maio de 2008, tendo sida publicada em coletânea de diversos artigos políticos no ano seguinte e em um livro de coletâneas de Eco em 2011. No

falamos da criação, ou invenção do inimigo. Por excelência, já são inimigos todos aqueles que discordarem do regime. Mas é preciso ir além. Não se trata de uma mera questão de lutar contra opositores, mas também contra causas conspiratórias, ou grupos que supostamente possam colocar em risco o poder centralizado pelos fascistas. No golpe de 1964, um inimigo forjado foi a “ameaça comunista”; hoje também faz parte das discussões extremistas de direita a “questão comunista”, mas, hoje, distante do que Raymond Aaron denominou “Guerra Fria”, isto não pode ser tratado como era há mais de cinquenta anos.

A “ameaça comunista” é a “venezualização do Brasil.”, curiosamente um país que adota um regime político criado pelo coronel do Exército Venezuelano Hugo Chaves, doutrina conhecida como chavismo, e que teve sua gênese em uma tentativa de golpe de estado de direita46.

O inimigo comunista também está “presente” no meio acadêmico; em movimentos sociais, e em manifestações por Direitos Civis, pois são inseridos genericamente na nomenclatura que abarca o discurso construído sobre a palavra comunismo. É muito mais fácil arregimentar adeptos quando todos os “inimigos” podem ser chamados por um só nome. Assim, tudo aquilo que incomoda o ideário fascista não precisa ser categorizado e individualizado, o que poderia gerar, até, certa cizânia entre os adeptos, então é criado sob um aspecto vastamente polissêmico a ideia do perigo comunista, que de acordo com os interesses vai ser deslocado para o campo a ser combatido.

Ao contrário da direita tradicional, ou direita formalmente democrática, que ganha, muitas vezes contornos de “centro”, ou mesmo de social-democracia, pregando abertamente o ideário neoliberal e não só admitindo como encorajando a formação de riquezas ostensivas, o fascismo mascara essa realidade. Ele não se preocupa em contê- las, ao contrário se alimenta dessas riquezas, mas não permite que isso chegue ao conhecimento de seus cooptados. Então temos a fala de Hitler na Alemanha ao dizer que “iria colocar o empresariado alemão de joelhos”, quando “empresários” alemães

qual tece com sua elegância e erudição a forma histórica de se construir um inimigo. O livro tem tradução para o Português Europeu, pela editora Gradiva. (ECO, 2011. pp. 11-35)

46 É importante atentarmos para esse fato. Inicialmente Chaves era um líder de direita, com suas pregações do ideário nacionalista venezuelano, posteriormente, já depois do insucesso de sua tentativa de golpe, e fora da prisão, ele chega ao poder e cria um “bolivarianismo” que ganha matizes, fracos é verdade, de esquerda. Em nenhum momento até a sua morte Chaves deixou de ser o que sempre foi: um homem em busca do poder e da glória pessoal.

faziam fortunas utilizando-se, dentre outras coisas, da mão de obra análoga a de escravo que estava nos campos de concentração. Assim, no Brasil de hoje ouvimos que “grupos

poderosos impedem as reformas que reerguerão o Brasil”.

O discurso acima alcança quatro objetivos com um único enunciado: satisfaz às classes médias que se sentem aviltadas e humilhadas pelos ricos, pois a riqueza ostensiva as ofende, muito embora, a miséria lhes pareça natural. Em segundo lugar cria uma desculpa que é francamente aceita pelos fracassos do governo; em terceiro fomenta mais um inimigo, mesmo intangível, a ser combatido, por fim, oculta suas verdadeiras intenções, que são justamente o favorecimento do grande capital.

9 – Não há luta pela vida, mas “vida para a luta”, que conduz à ideia de uma guerra

permanente. Não é difícil perceber que a militarização do governo, a linguagem de caserna, e as constantes comparações com meios militares, estão associadas à guerra. O inimigo já foi definido, agora, terão de atacá-lo.

10 – O Elitismo – O elitismo é uma característica central das ideologias reacionárias, há

o desprezo pelos fracos. No Ur-Fascismo é criada uma elite das massas, pois segundo Eco cada um do povo nasceu na melhor das pátrias, integram “o melhor povo do mundo” o que em suas palavras cria um “elitismo popular”. Todos podem e devem se

filiar ao partido, mas o líder sabe que sua força, seu poder se baseia fundamentalmente

na fraqueza das massas, e na medida em que o tempo passa, essas massas vão necessitando de um “dominador”. Passa a ser utilizado um sistema hierárquico

militarizado (ou em modelo militar), para Eco, reforça o sentido de elitismo de massa,

o fato de que “qualquer líder subordinado despreza seus subalternos, e cada um deles despreza por sua vez os seus subordinados”.

A ideia central, já clara na atual governança do país é a de que todos devem se unir em

torno dos projetos do governo para criar um país melhor, isso já é um tipo de filiação

partidária, mesmo que não formalizada, por seu caráter de filiação ideológica. Quem não o faz está contra o Brasil.

Muito mais se pode falar, acerca da hierarquia militarizada. Na verdade, estamos tratando de um governo que já nasce militarizado, na medida em que grande parte de pessoas que ocupam cargos públicos são militares, e estes, de um modo geral têm vos e são acatados. O próprio presidente e seu vice são originários do Exército Brasileiro.

11 - A formação de uma mitologia em torno do herói. Cada um passa a ser educado para tornar-se um herói – O herói já é fantástico na mitologia, mas nela é

excepcional, para Eco, no Ur-Fascismo, o herói é a norma.

O próprio presidente é literalmente chamado de “mito”, não em um sentido conotativo, mas um mito de significado denotativo. A ideia do mítico redentor da pátria. Também ocorre o mesmo com o Ministro Sergio Moro, retratado, inclusive por seus apoiadores em vestimentas de Super-Homem. E todos aspiram a dar essa heroica contribuição à pátria, são assim instados e perseguem esse ideal.

Umberto Eco também identifica no herói Ur-Fascista, o ideal de morte. A facada levada por Bolsonaro em Juiz de Fora, no dia 6 de setembro de 2018, ajudou muito em sua campanha47, pois foi tratada como uma “exposição voluntária à morte”, o que foi

realçado por ele mesmo, seus filhos e seguidores próximos, que se aproveitaram do fato isolado, causado por uma pessoa que foi diagnosticada como portadora de doença mental, como um ato planejado. Mais que isso, que o então candidato já sabia que “estava colocando sua vida em risco”.

Também Moro foi tomado como o “herói” que na sua “implacável luta contra a corrupção”, teria colocado em risco não só a sua vida como a de sua família.

12 – O machismo – No eterno fascismo o machismo tem um lugar destacado, segundo

Eco: “O Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação

intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade.)”. (Grifo nosso)

No governo Ur-Fascista brasileiro, são muito claros os traços desse machismo, consubstanciado em abjeto desprezo pelas mulheres, que são tratadas como seres inferiores. Há um aviltamento das mulheres, que vai desde a apologia ao estupro (como no caso da Deputada Maria do Rosário, no qual o então deputado e hoje presidente disse que não a estupraria, pois ela não merecia48); Na própria composição do ministério com

apenas duas mulheres, e entre outros graves acontecimentos a emergência de uma

47 Além da mitificação heroica, Bolsonaro também ganhou ao ficar de fora dos debates, e assim bem resguardado daquele que seria, para seus oponentes, seu ponto mais vulnerável: sua fragilidade intelectual e incapacidade de concatenar ideias.

doutrina de extremismo cristão que aplica interpretações arcaicas do Velho Testamento para enfatizar a supremacia do homem sobre a mulher, e a necessidade de submissão desta àquele.

A perseguição aos homossexuais atinge um nível que possivelmente nunca foi visto com tamanha intensidade em nosso país. A ponto do reeleito Deputado Federal Jean Willis ter que renunciar ao cargo e ter que se exilar na Europa, por estar sofrendo risco de ser alvo de atentados, até com risco de sua própria vida.

13 – Existência de um “populismo qualitativo” – No Ur-Fascismo o indivíduo não

tem direitos enquanto indivíduos. “Os “direitos” são apresentados ao povo como um todo, visto monoliticamente. Necessitando da presença e participação do líder para ser o “seu intérprete”. Na concepção de Eco, o povo passa a ser “uma concepção teatral”.

Um ponto fundamental deste “populismo qualitativo”, e que está presente de forma bastante forte em nosso país, que é o populismo qualitativo TV ou Internet, “no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como “a voz do povo””.

Este aspecto conduz a um fato muito evidente do eterno fascismo, que são os ataques ao parlamento. Uma vez que dentro do “populismo qualitativo”, os anseios populares só podem ser realizados pela liderança fascista, desconhecendo a legitimidade dos representantes eleitos pelo povo. Eco faz um severo alerta: “Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do parlamento por não representar mais “a voz do povo”, pode-se sentir o cheiro do Ur-Fascismo.”.

Esta característica é, em todas as suas nuances claríssima no bolsonarismo. Um evento exemplar foi a chamada para as “manifestações de 26 de maio”, em apoio ao já combalido governo. A convocação parte de pequenos grupos de Internet, que agem maciçamente, como “voz do povo”. O ato de “manifestação” é, sobretudo contra o Congresso, que “não estaria em compasso com as vozes das ruas”.

14 – O Ur-Fascismo fala a “neolíngua” – Pela importância que essa característica

possui dentro de uma tese de Linguística com ênfase na Análise de Discurso voltaremos a ela no campo de análise.

Aqui, em linhas gerais, podemos apontar a neolíngua como uma criação de George Orwell, em sua obra 1984. Eco complementa:

Todos os textos escolásticos nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém, estar prontos a identificar outras formas de neolíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular. (ECO, Ob. Cit. pp. 50-51).

Devemos atentar para o fato de o texto ter sido escrito no ano de 1997, quando as possibilidades, por exemplo, de uso de difusão do pensamento pela Internet49 serem muito menores que em fins da segunda década do século XXI. No entanto, ele é de uma atualidade desconcertante ao vislumbrar as possibilidades de utilização dessa “nova mídia”.

Finalizamos aqui esta introdução, para passarmos ao campo analítico em si. Devemos, entretanto, fazer algumas observações. A primeira é que a análise das características enumeradas por Eco foram feitas, por nós, fora da Análise de Discurso. Notoriamente a análise foi conteudista, mas entendemos como importantes para o