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6 O Discurso Bolsonarista e a Constituição Brasileira

No capítulo 2 da presente tese escrevemos um pequeno escorço histórico do constitucionalismo brasileiro. Tomando a Constituição como documento máximo e fundacional do Estado, além de bastião e salvaguarda do Estado Democrático de Direito, buscamos fazer uma aproximação entre a tradição constitucional brasileira e a atual Carta. O capítulo em si, olhado isoladamente poderia, com justa razão parecer fora de um contexto. Mas o objetivo, além de dar uma visão geral da História do Brasil que se fazia necessária pela natureza de nosso estudo era a preparação para uma análise entre o discurso bolsonarista e a atual Constituição da República Federativa do Brasil.

Aproveito a oportunidade para salientar que em nossos esforços para a construção deste trabalho demos, de uma maneira geral, mais ênfase à busca de sentidos do que a uma expressa linearidade. A escrita linear e um plano de trabalho sistêmico e lógico estiveram sempre entre as preocupações. Não haveria razão para causar prejuízos graves ao texto ao fugir deste imperativo e confundir o leitor. Todavia, em certas ocasiões pensei mais na amplitude e coesão da tese, e nestes casos antecipei alguns tópicos que podiam ser compreendidos em si, mas ganhavam melhores contornos e unidade interpretativa com a leitura do todo.

Procurei impedir todas as eventuais “pontas soltas” do trabalho, e ao escrever um ponto já sabia de antemão que ele necessitaria, ou poderia necessitar de ulterior complementação, curiosamente, esta mesma advertência poderia estar nas páginas preliminares, mas encontra-se no início do último capítulo. Só a leitura integral do texto conduz à sua plena compreensão. Entendi que em trabalho de natureza acadêmica e de tese doutoral assim ficaria melhor, ao contrário de uma obra sobre temas diversos que podem ser lidos com alternância de capítulos e mesmo assim mantendo a plenitude de seus sentidos. Aqui busquei algo que só perpetrasse seus objetivos em sua unicidade, os sentidos não se produziriam em fases, mas no todo.

A Carta Política promulgada no dia 5 de outubro de 1988 dedica seu Título I aos

Princípios Fundamentais que devem cogentemente reger o Estado Brasileiro.

Enfatizamos que a nossa proposição não se trata em hipótese alguma de estudo de Direito, e sim de Análise de Discurso. Aqui estamos no ponto em que a discursividade percorre o jurídico.

A Constituição apresenta dois aspectos a ela indissociáveis: um é o de documento

jurídico, que funda o Estado e estabelece suas regras basilares de funcionamento. Por

outra mão é documento linguístico, fruto de uma textualização que está relacionada a uma série muito grande de fatores que expressam uma produção discursiva de dado período histórico. Uma Constituição acentuadamente analítica como a brasileira padece do excesso de normatividade, o que já foi tratado em outro capítulo e recebe no âmbito jurídico a nomeação de "inflação normativa”, por esta razão ela acaba por ter a necessidade de passar por mudanças constantes que a atualizem em face das novas necessidades.

Uma constituição não pode se pretender eterna, mas quanto mais sintética ela é menos mudanças sofrerá. Não é o caso da nossa. Temos no momento em que escrevemos, uma Carta bem diferente daquela promulgada há mais de seis lustros. A exceção é feita àquelas que são denominadas “cláusulas pétreas”, e que por sua natureza não podem ser objeto de Emenda Constitucional, o Texto nasceu com elas e com elas irá até o final. As cláusulas pétreas estão elencadas no parágrafo 4° do artigo 60 da CF-88:

§ 4o Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais

Para fins deste estudo, que mais uma vez realçamos não é de índole jurídica, não vamos lançar mão da vasta doutrina constitucional produzida ao longo dos anos, também não recorreremos à jurisprudência129, e principalmente nos afastaremos da

hermenêutica do Direito, que possui características muito peculiares de interpretação. Estes aparatos, fundamentais para o exercício do Direito, são plenamente dispensáveis para os processos de leitura e interpretação na área da Análise de Discurso, que dotada de aparatos próprios é capaz de realizar uma leitura muito apropriada do arquivo jurídico, inclusive por muitas vezes, jogando sobre a norma luzes que não são disponibilizadas pelo aparato jurídico.

129 No Brasil, assim como nos países que adotam o Sistema Romano-Germânico a jurisprudência é o conjunto de julgados sobre determinado assunto, podendo também ser um específico julgado que por sua natureza paradigmática opere um rompimento com julgados anteriores e passe a ser seguido. Já nos Estados Unidos, por exemplo, jurisprudência é tomada na acepção de Ciência do Direito.

Para justificarmos nossa posição citamos Orlandi:

Pela ideologia, se naturaliza assim o que é produzido pela história: há transposição de certas formas materiais em outras, isto é, há simulação (e não ocultação de “conteúdos”) em que são construídas transparências (como se a linguagem não tivesse sua materialidade, sua opacidade) para serem interpretadas por determinações históricas que aparecem como evidências empíricas. (ORLANDI, 2007. p. 31)

Este trecho retirado de Interpretação – Autoria, leitura e efeitos do trabalho

simbólico130, permite ao leitor a compreensão da diferença entre a análise de conteúdo e da Análise de Discurso. A hermenêutica e a exegética jurídica primam por uma análise conteudista, que mesmo quando menos afeiçoada ao positivismo jurídico acaba, necessariamente, restrita ao textualizado, não considerando a ideologia, que é ente fulcral na Análise de Discurso.

A exegese do Direito se prende a uma série bem diversa de fatores e aparatos instrumentais, busca inclusive a compreensão segundo o que seria a vontade do legislador, o mens legislatoris, que advém do mens legis, ou espírito da lei, primado introduzido por Rudolph von Ihering. Esta construção do jurista tedesco é de grande valia para o Direito, mas perde-se na Análise de Discurso, pois não está calcada na

ideologia, e sim na intencionalidade. A ideologia é afetada pelos processos históricos e

de memória, atingindo a todos e transparecendo na língua, distante do conteudismo e do psicologismo. Ao contrário, a intencionalidade é preponderantemente psicológica e conducente ao conteudismo.

Estabeleceremos, desde já, apenas uma dicotomia: a linguagem técnica e a

linguagem instrumental para fins de um estudo analítico, o que vale também para

textos acadêmicos em outras áreas. A linguagem “técnica” é aquela que se refere aos aparatos consagrados para uso em Análise de Discurso, já a instrumental é aquela que aponta para textualizações em geral, muitas das vezes com espírito aclarador, explicativo ou posicional. Esta distinção é feita para que o uso da linguagem instrumental não seja tomada por mero conteudismo.

130 Esta obra que se insere entre as mais importantes da Análise de Discurso será utilizada como referência máxima para a elaboração deste capítulo.