• Nenhum resultado encontrado

O discurso bolsonarista e a desconstrução do Brasil

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O discurso bolsonarista e a desconstrução do Brasil"

Copied!
229
0
0

Texto

(1)

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

FREDERICO ANTÔNIO PEREIRA CAMPEAN

O DISCURSO BOLSONARISTA E A DESCONSTRUÇÃO

DO BRASIL

CAMPINAS

2019

(2)

O DISCURSO BOLSONARISTA E A DESCONSTRUÇÃO DO BRASIL

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi

Este trabalho corresponde à Versão final da Tese defendida pelo aluno Frederico Antônio Pereira Campean e orientada pela Profa. Dra. Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi

CAMPINAS

2019

(3)

Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Campean, Frederico Antonio Pereira, 1971-

C153d O discurso bolsonarista e a desconstrução do Brasil / Frederico Antonio Pereira Campean. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

Orientador: Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Análise de Discurso. 2. Linguística. 3. Governo Bolsonaro. 4. Brasil - Política e governo - 2019-. I. Puccinelli Orlandi, Eni de Lourdes. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The bolsonarista discourse and desconstruction of Brazil Palavras-chave em inglês:

Discourse Analysis Linguistics

Bolsonaro Government

Brazil - Politics and government - 2019-

Área de concentração: Linguística Titulação: Doutor em Linguística Banca examinadora:

Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi [Orientador] Claudia Regina Castellanos Pfeiffer

Débora Raquel Hettwer Massmann

Giuliana Capistrano Cunha Mendes de Andrade Helson Flavio da Silva Sobrinho

Data de defesa: 27-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Linguística

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-3270-8930 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1154051178070965

(4)

BANCA EXAMINADORA:

Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi

Claudia Regina Castellanos Pfeiffer

Débora Raquel Hettwer Massmann

Giuliana Capistrano Cunha Mendes de Andrade

Helson Flavio da Silva Sobrinho

IEL/UNICAMP 2019

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

(5)

Dedico esta tese à Professora Eni Orlandi, minha orientadora no mestrado e agora no doutorado, uma das mais destacadas pesquisadoras e intelectuais brasileiras, internacionalmente reconhecida e aclamada, a quem devo minha trajetória na Análise de Discurso, e na certeza de que exemplos como os seus nos trarão dias melhores.

(6)

AGRADECIMENTOS

Esta Tese é resultado de minhas pesquisas em Análise de Discurso realizadas no IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) da Unicamp. É fundamental agradecer a todos os professores e funcionários da citada instituição, sem os quais ela não seria possível.

Agradeço, especialmente, ao professor Eduardo Guimarães, meu orientador em qualificação de área (Semântica do Acontecimento), ao professor Lauro Baldini e às professoras Edwiges Morato e Sheila Dias de Oliveira que foram responsáveis por importantes ensinamentos.

O brilhante servidor da Unicamp e, posso considerar, meu amigo Cláudio Pereira Platero foi de importância única para que a presente tese existisse, para muito além da necessária tecnicidade acadêmica, Cláudio vivenciou minha trajetória e com sua gentileza e competência me fez ver a importância de prosseguir em alguns dos momentos mais difíceis.

Ao longo de três anos (2016-2018) trabalhei como professor de Ensino Básico da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Agradeço a todos os colegas de lutas diárias, mas prazerosas. Muito em especial a todos da Escola Estadual Sebastião Pereira Machado (SEPEMA) em Piranguinho, único colégio em que lecionei integralmente por estes três anos, e do qual me tornei efetivo. Aos colegas, funcionários e alunos, a minha eterna gratidão.

Ao querido amigo, o colega, professor de matemática e engenheiro civil José Flávio Souza (IN MEMORIAN) com o qual lecionei na Escola Estadual Wenceslau Brás em Itajubá. Um exemplo de vida e de educador, que poderia dizer, literalmente, deu sua vida pela profissão que amava. Saudades grandes, Flávio!

Àqueles que getilmente aceitaram integrar a minha banca de defesa presidida por Eni Orlandi: Professora Claudia Pfeiffer, a quem conheço desde 2013 quando integrou a banca de entevistas para minha admissão no programa. Professora Debora Massmann, fundamental desde os tempos da Univás em Pouso Alegre. Professor Hélson Sobrinho, o que mais recentemente conheci, homem brilhante e de rara sensibilidade. À minha eterna professora Giuliana Capistrano, que embora mais nova que eu, acompanhou toda a minha trajetória nas Letras, sendo minha professora desde os tempos de Licenciatura em Letras na FEPI (Fundação de Ensino e Pesquisa de Itajubá).

Por uma feliz coincidência, em uma tese que tenta falar sobre o Brasil, são representantes de diversas regiões do país. Eni uma paulista de Rio Claro; Claudia é paulistana; Débora, gaúcha de Santa Maria, Hélson trouxe a força e a inteligência inatas a um nordestino das Alagoas, e Giuliana é de Minas Gerais. Muito embora a ciência não tenha pátria ou região, foi bastante simbólica essa representação múltipla de estados e regiões deste país, que posso criticar, mas que amo e amarei incondicionalmente.

(7)

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o discurso e as formações discursivas produzidas a partir do surgimento, campanha, posse e primeiro semestre do governo de Jair Bolsonaro. Utilizando para tal os aparatos teóricos da Análise de Discurso criada por Michel Pêcheux e desenvolvida por Eni Orlandi. Realizamos recortes de textualizações de diversas fases da História do Brasil, principalmente o golpe de 1964, para compararmos com o discurso produzido sobre e pelo bolsonarismo. Nossa hipótese central é analisar discursivamente o fato de estarmos sob um regime de extrema direita, e os riscos e impactos que podem ser produzidos sobre o Brasil. Também se o governo possui natureza fascista ou tendente ao fascismo e como isso afetaria as minorias. Realizamos, também, um cotejamento entre a história constitucional brasileira e a atual Constituição da República Federativa do Brasil e o discurso de Jair Bolsonaro e seus seguidores.

(8)

ABSTRACT

This thesis aims to analyze the discourse and discursive formations produced from the emergence, campaign, inauguration and first semester of the government of jair Bolsonaro. Using the theoretical apparatus of Discourse Analysis created by Michel Pêcheux and developed by Eni Orlandi. We make textual excerpts from various phases of Brazilian history, especially the 1964 coup, to compare with the discourse produced about and by Bolsonaro. Our central hypothesis is to discursively analyze the fact that we are under an extreme right regime, and the risks and impacts that can be produced on Brazil. Also whether the government is fascist or fascist in nature and how it would affect minorities. We also made a comparison between Brazilian constitutional history and the current Constitution of the Federative Republic of Brazil and the discourse of Jair Bolsonaro and his followers.

(9)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ... 10

1 –CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 14

2 – BREVES ANOTAÇÕES SOBRE O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO ... 22

3 – A HISTORICIDADE DA REPÚBLICA BRASILEIRA... 30

4 – CAMPO ANALÍTICO ESPECÍFICO I – A FORMAÇÃO DISCURSIVA DO UR-FASCISMO BRASILEIRO...60

4.1- Uma Breve Introdução...60

4.2 – Referenciação e Apontamentos Sobre a Análise e a Figura do “Ideólogo”. Um Preâmbulo Analítico...71

4.3– O Discurso Bolsonarista e a Ascensão ao Poder...87

5– CAMPO ANALÍTICO ESPECÍFICO II –O Discurso Bolsonarista no Poder.150 5.1 – Aspectos Preambulares...150

5.2 – A Posse e seu Discurso...156

5.3 – Discurso e Atos de Governo...167

5.3.1 - O Discurso do preconceito e da “negação do outro”...171

5.3.2 - O discurso neoliberal em práticas político-econômicas...174

5.3.3 - O Discurso de direita em face do pensamento, das Liberdades Públicas e dos Direitos Civis e Humanos no Governo Bolsonaro – O caricato e o perigoso...180

5.3.4 - O Brasil de Bolsonaro por meio de seu Exército homenageia um oficial nazista e o desfile político do líder em um estádio de futebol...193

6 - O DISCURSO BOLSONARISTA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA...200

CONCLUSÃO...221

(10)

APRESENTAÇÃO

Ao iniciarmos este trabalho não podemos deixar de fazer uma alusão à nossa atual Constituição, afinal, é ela a responsável pelas diretrizes materiais e jurídicas, que abrem espaços de defesa legítima a indevidos ataques àquilo que é mais caro ao Estado brasileiro: as instituições democráticas, os Direitos Públicos e garantias individuais, e a justa manutenção das regras que regem um Estado. Enfim a Constituição mais do que um documento jurídico é uma Carta Política.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988 (CF-88) é um documento construído sob a égide de quase vinte e cinco anos de ditadura militar. Seria ingênuo crer que se trata de Carta Política independente e livre dos resquícios de uma ditadura, que torturou, matou e destruiu a vida de dezenas de milhares de pessoas, sejam elas as vítimas diretas ou indiretas deste período, que bem retrata a nossa História, a de um país que, desde tempos primordiais, luta para ser nação. O Brasil tem, por mais de quinhentos anos, se submetido à condição de ser uma máquina de miséria e despotismo.

A independência do Brasil manteve os direitos feudais conquistados por uma classe dominante plenipotenciária, oligárquica, plutocrática, e, sobretudo, voltada unicamente para seus próprios interesses. Não houve concessões. Uma eventual preocupação com um país independente e voltado para seu povo foi deixada de lado, “esquecida”.

A Proclamação da República em quase nada alterou esse quadro. Desde o dia 15 de novembro de 1889 o que vemos e estudamos é uma das piores concentrações de força e imposição da desigualdade social, da miséria e da corrupção, que estão entre os legados

históricos de um, quase sempre insuperável processo de colonização, dilatado na historicidade do colonizado. Em seus diários Joaquim Nabuco no dia 9 de março de 1891 escreve um texto que se procrastinaria por nossa História Republicana, e é a constatação das práticas que conduziram nosso país e se mostram muito atuais. Transcrevo:

(11)

como presente em caixas de ouro os excrementos secos do Dalai Lama. Os do nosso são esses decretos de concessão distribuídos pelo ministro da agricultura aos parentes, amigos e sócios do governo. Ministérios das Emissões (fazenda), das Concessões (agricultura), das Missões Estrangeiras, das Comissões (interior), das Omissões (justiça). (NABUCO, 2005. pp. 35-36. Vol. 2)

Um país marcado pela falta de comprometimento com a criação de um bem comum. Despreocupação com a formação de um Estado e uma sociedade com justiça social.

A presente tese não tem como objetivo traçar um panorama sociológico, histórico, antropológico de nossa historicidade, mas busca estabelecer uma análise discursiva do descompasso entre o real de um povo e aquilo que está no papel. Um “papel” que tudo aceita, desde o mais profundo ufanismo até o “já-sabido” irrealizável.

E neste momento é propício escrever sobre nossos objetivos. O que intentamos é analisar o discurso bolsonarista, que é aquele proveniente de Jair Bolsonaro e seus seguidores e compreender sua formação discursiva, suas produções de sentido e como elas podem afetar sentidos outros a partir do discurso sobre o bolsonarismo, pois este vai se multiplicando. Devemos entender se o “criador” vai perdendo o controle sobre suas “criaturas”, que vão assim gerando efeitos de sentido cada vez mais extremistas a um discurso que fanatiza.

Para tal necessitamos partir de textualizações e formações discursivas pré- constituídas. Há também, fora do âmbito discursivo em si uma historicidade que precisa ser considerada e entendida, o que para nós justifica a inserção plena dos três primeiros capítulos, que estudam, mesmo brevemente, aspectos que, por vezes estão fora do linguístico e inseridos na História e humanidades, mas que são importantes para guiar o leitor e dar ao trabalho uma unidade cientificamente ampla e que julgamos correta.

Podemos dizer, que a CF-88 é um grande silenciamento, como retomaremos adiante, ratificado pela inflação normativa, que a torna a mais extensa do planeta (perdendo em

artigos para a mexicana, mas ultrapassando em muito a normatividade daquela, graças a inúmeros incisos, parágrafos e alíneas).

A “Cidadã”, como chamada por Ulysses Guimarães gerou seus principais benefícios para uma minoria. Sua riqueza no que tange aos direitos individuais se

(12)

perde em uma proposital exaustão que a torna inexequível. Deixa para muitos a ideia de democracia e interesse da defesa dos desprovidos, no entanto, tantas normas programáticas1 são apenas uma formalidade para uma Carta que mantém privilégios de classes que dominam hegemonicamente o país desde sempre. Ainda cabe importante ressalva. Os Direitos Individuais e Coletivos inscritos em nossa Constituição podem ser juridicamente demandados, o que propicia, a despeito das críticas em relação à sua excessividade, uma possibilidade de defesa do cidadão, de cobrança popular e individual que ampliam espaços democráticos e permitem, mesmo exiguamente, uma expectativa de mudanças, além do caráter simbólico a eles inatos. O que vem sendo deixado de lado com práticas recentes que são contrárias às Liberdades Públicas.

Essa é a tarefa de quem há de debruçar-se sobre a discursividade de nossa Carta Política. É natural que muitas críticas se sobreponham, afinal, nenhuma Constituição garantiu tantos direitos individuais. Todavia, nosso questionamento é se esses “Direitos Individuais” são genuínos, ou se caracterizam, tão somente como uma forma de desviar olhares, ganhar aplausos e no fim enfraquecê-los ao máximo, a ponto de tornarem-se inexequíveis.

Uma das premissas aqui colocadas é: sem que exista uma mudança e conscientização pública, tende o Brasil à sua desintegração, falamos de uma desnaturação capaz de levar até a processos de secessão, na qual brasileiros inconformados com descasos e arbitrariedades sem fim buscariam novos caminhos.

As questões postas ganharam ainda maior relevo com a chegada ao poder de um grupo, liderado por Jair Bolsonaro, uma figura que entra quase por acaso na História do Brasil. Podemos dizer que o governo Bolsonaro mostrou-se, desde antes da posse contraditório, com um discurso extremista em relação a qualquer oposição e aos direitos das minorias, e ao mesmo tempo dizendo-se liberal.

(13)

Seguindo uma linha popular e midiática de redes sociais, adota como “guru” Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo, que abandonou os estudos por vontade própria durante o antigo primeiro ano ginasial (atual sexto ano do ensino fundamental), e que depois criou um curso livre de Filosofia, mesmo sem formação educacional formal e logo recebeu o título de ideólogo. Passa a governar, a exemplo de seu ídolo, o presidente estadunidense Donald Trump, por meio de tuites que são em sua esmagadora maioria provocações e ofensas, quando não toma ares de “Diário Oficial”. Concomitantemente cria uma espécie de república familiar, dando poderes desmedidos a seus três filhos que desestabilizam o governo e provocam quase uma comoção pública.

Por fim, nomeia aquele que é um Ministério controverso, que vai desde uma Damares Alves, capaz de iniciar uma cruzada contra os direitos mais íntimos e legítimos do cidadão até Sérgio Moro, o juiz federal paranaense que foi implacável com seu principal adversário político.

(14)

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O texto a seguir está relacionado a acontecimentos discursivos, de um lado a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988, do outro a chegada ao poder do grupo político encabeçado pelo capitão reformado do Exército Brasileiro e ex-deputado Jair Messias Bolsonaro.

A partir destes momentos procuramos analisar as práticas eleitorais e governamentais à luz da Análise de Discurso filiada à denominada Escola Francesa, que preferimos chamar de Escola Pêcheux-Orlandiana.

Pedras angulares do Estado Democrático de Direito são afetadas, como a clássica tripartição de poderes de Montesquieu. Curiosamente parece não haver ou ser capaz de ser percebida outra finalidade que não seja a mera desconstrução de um país, mas

não do país, estamos nos referindo a “um país”, e este um é o que eles atribuem à

esquerda, aos “comunistas”; esse inimigo invisível contra o qual falam, agem e lutam vem de um imaginário distorcido por convicções políticas, religiosas e moralistas que produzem enorme equívoco e que serão exploradas por nós. Ao contrário do golpe civil-militar engendrado em 1964 e agravado consideravelmente pelo AI-5 de 13 de dezembro de 1968, que possuía como nítidos objetivos alinhar o Brasil a necessidades e interesses do bloco estadunidense, o que vemos agora é um movimento e conjunto de gestos que partem de dentro para fora. Impulsionados inicialmente pela ojeriza da população pelas práticas políticas postas, o grupo de Bolsonaro logrou chegar à presidência da República, trazendo a reboque um número expressivo de políticos, incluindo governadores de muitos estados, ao poder.

Um aparente vazio de lideranças políticas, ampliados por interesses de expressivas corporações jornalísticas conduziu a política brasileira ao descrédito por parte do eleitorado. Essa massa crítica abriu um vácuo nas relações de poder, permitindo assim que parcela grande de pessoas ignorasse o futuro e os anseios do país para alcançar postos de poder. Todos com uma quase sincronia de pensamentos, pois não representam o mesmo grupo político; mas se juntam. O PSL não é o MDB; são diferentes, apresentam matizes “liberais”; mas há muitos sentidos para liberais, desde o estilo de governar até as formas de aproveitamento do poder; o que têm em comum é, sobretudo, a denominação. Evidentemente que a crônica despreocupação com a

(15)

distributividade de renda, a Educação, e a desigualdade social, além da ausência de noções básicas de governança conduziram a este conjunto de ocorrências que gerou um ideário quase hegemônico de ideias alastradas por todos os quadrantes do Brasil. O povo ao ir às urnas no mês de outubro de 2018 não tinha em sua maioria a consciência plena das consequências de sua escolha.

Muitas são as obras que dos mais diversos pontos de vista tentam explicar este processo de autodestruição, mas poucas são tão compatíveis com este momento quanto o opúsculo de Ortega y Gasset (1883-1955) España Invertebrada, no qual o filósofo analisa a desintegração da Espanha de seu tempo, colocando em relevo a crise gerada pela inexistência de um projeto comum de país. Gasset tratava ali, de forma quase premonitória, das questões latentes de movimentos separatistas na Espanha, e apontava as causas históricas, filosóficas, sociais e, sobretudo políticas e governamentais que conduziam a este fenômeno. Hoje com o fortíssimo movimento catalão, capaz de gerar um efeito dominó nas relações internas espanholas podemos ver os acertos de Gasset, e como eles podem ser aplicados, das mais diversas formas, ao Brasil de hoje.

A inexistência de um projeto comum de país, que respeite a ordem democrática e a Constituição, mesmo que ela padeça de vicissitudes, e que não atenda a todos os diversos setores da população. Unindo e não desintegrando; respeitando e não afrontando, é primordial não apenas para o bem comum, razão da existência do Estado, mas também para a sua própria sobrevivência. São esses os primados ausentes no Brasil de quando escrevemos. As consequências são graves e podem ser incontornáveis. E em linhas gerais é disso que trata a presente tese.

A hipótese central da tese fica assim desde já disposta. A partir dos dispositivos teóricos mobilizados pela Análise de Discurso realizar uma mensuração sobre os caminhos que nosso país pode tomar.

Destaca-se a necessidade de uma Apresentação que posicione o leitor acerca das ideias gerais do texto, além de servir como espécie de preâmbulo da tese. Ela não está marcada como capítulo, pois caracteriza em nossa concepção uma seleção de caracterizações anteriores à tese em si. Inclusive com a menção a seu objetivo.

(16)

Considerações Iniciais, isto é, o itinerário formal a ser cursado para a sua plena

execução. Pareceu a mim clara a necessidade de, mesmo brevemente, para fins de melhor compreensão, estabelecer qual seria este percurso. Para tal realizarei uma exposição de cada capítulo e seção presentes no estudo.

O capítulo 1, que está se desenvolvendo a começa a embrenhar-se no âmbito da tese, tecendo as explicações iniciais que conduzem a leitura para fins de maior praticidade e compreensão, também estabelecemos as diretrizes gerais da metodologia utilizada. A opção por não criar um capítulo próprio para explanar especificamente sobre a Análise de Discurso é deliberada, e não um lapso.

Entendemos que há no Brasil à disposição dos estudiosos uma gama bastante grande de obras introdutórias e explicativas, tanto da lavra de excelentes autores nacionais, quanto um grande número de ótimas traduções que sustentam com exatidão e proficiência questões pertinentes à nossa ciência. Evidentemente não duvidamos que em tese doutoral deva o candidato ao título demonstrar o seu conhecimento sobre os aparatos teóricos da área em que irá desenvolver sua tese, mas por vezes isso pode se transformar quase em uma outra obra, arriscando a cair no pecado de cansar leitores e banca examinadora, além de repetir aquilo que já está bastante fixado em aquilatada doutrina.

Assim preferimos valorizar a análise em si. Desta forma poupamos o leitor de um eventual e tedioso cansaço, além de tornar a tese o menos laudatória possível. As análises, com seus sustentáculos teóricos já são capazes de demonstrar o conhecimento ou não do autor na área de concentração de seu doutorado. E, consequentemente, deixar transparecer se ele é ou não digno do mais elevado grau acadêmico. Possivelmente em outros trabalhos, como nas dissertações de mestrado, um capítulo dedicado exclusivamente à teoria seja bem vindo, até necessário. Mas enfatizamos que aqui não está contida, de forma alguma, qualquer crítica àqueles que o fazem em sede doutoral, apenas uma opinião pessoal que será colocada em prática.

O segundo capítulo intitulado Breves Anotações Sobre o Constitucionalismo Brasileiro, serve para posicionar o leitor em face de nossa História Constitucional. Desde a primeira experiência com a Carta Política Imperial de 1824 até a atual CF-88, Por razões evidentes não é um capítulo de Teoria Geral do Estado, pois isso fugiria completamente aos nossos objetivos, sendo tão somente uma visão da historicidade que permeia nossa caminhada constitucional.

(17)

O capítulo 3 foi nomeado como A Historicidade Recente da República

Brasileira. Trata-se de um capítulo que aborda aspectos históricos e políticos que são

importantes bases para os dispositivos analíticos da tese. A compreensão da quebra estrutural da democracia no Brasil por intermédio de um grupo político com um ideário considerado novo por muitos é de primordial importância para a compreensão da tese.

As partes mais importantes do estudo são, indiscutivelmente, os capítulos 4, 5 e 6. Neles estão contidas as análises discursivas que são a própria razão da existência desta tese. Escolhemos para nomear estes capítulos a expressão O Campo Analítico

Específico. A opção pela nomeação específico para designar o capítulo surge do fato

das análises estarem, como já dissemos, ao menos incidentalmente presentes a partir do segundo capítulo.

É justamente no campo político que ela se mostra por tantas vezes mais insidiosa, capaz de ocultar interesses com a pujança de sua porosidade (como já estudado por Orlandi). A língua e a linguagem têm sido através dos séculos os instrumentos mais eficazes de força e dominação. Analisá-las discursivamente é a possibilidade concedida ao estudioso de captar e capturar seus sentidos, pois a língua é a mais importante tecnologia desde sempre criada pela razão humana, como infinitas são as possibilidades da linguagem. Aqui compreendidas não apenas como ato volitivo racional, mas também com a presença do inconsciente revelador dos mais diversos propósitos. O campo analítico específico vem desdobrado em dois capítulos.

O 4 é intitulado de Campo Analítico Específico I – A Formação do Discurso Ur-

Fascista Brasileiro, nele apresentamos uma introdução ao nosso campo analítico, e

tratamos não só de questões teóricas que embasam hipótese de estarmos vivendo um período genuinamente fascista, lançando mão daquilo que Umberto Eco chamou de eterno fascismo ou Ur-Fascismo, como também analisamos o discurso primordial do ideólogo do governo, assim como as formações discursivo-enunciativas que permeiam o entorno do bolsonarismo, desde seus primórdios até sua posse, passando logicamente, pela análise de seu discurso de campanha.

O capítulo 5 ganha o nome de Campo Analítico Específico II – O Discurso

Bolsonarista no Poder, neste, analisaremos o discurso dos primeiros meses do

(18)

O capítulo 6 é denominado O Discurso Bolsonarista e o Constitucionalismo

Brasileiro, no qual realizaremos análises sobre o discurso do governo em relação ao

nosso constitucionalismo, cotejando o discurso de governo com recortes da atual e de outras constituições. Também abordaremos a questão do discurso sobre o bolsonarismo e o discurso do bolsonarismo. Este capítulo, especialmente, justifica a elaboração dos capítulos 2 e 3, que muito embora não estejam inseridos de forma direta na Análise de Discurso, ou seja, não são capítulos especificamente analíticos, mas são cruciais para que o leitor seja posicionado em relação a essas análises e seus fundamentos.

Por fim realizaremos a nossa conclusão, na qual serão descritos aquilo que pudemos observar e concluir a partir das análises realizadas.

A língua e a linguagem têm sido através dos séculos as ferramentas mais eficazes de força e dominação. Para a Análise de Discurso é lugar de constituição, mesmo de relações de poder, e de sua simbolização. Analisá-las e compreendê-las em seus múltiplos vetores é a possibilidade concedida ao estudioso de captar e capturar os seus adequados processos de significação e produção de efeitos de sentidos, por meio de suas práticas. Pois a língua é a mais importante tecnologia desde sempre criada pela razão humana, como infinitas são as possibilidades da linguagem. Aqui compreendidas não apenas como ato volitivo racional, mas também com a presença do inconsciente dos mais inconfessáveis propósitos.

Por fim, tecemos nossas conclusões, em que realizamos o término da tese, com a aferição das dimensões de sua hipótese e o que se pode esperar a partir da discursividade produzida e analisada.

Para fins de posicionamentos metodológicos utilizados nesta tese esclareço dois importantes pontos. O primeiro é que como próprio da natureza em si da Análise de Discurso, utilizarei o chamado “Método Qualitativo em Ciências Sociais”, conforme explicam Alberto Parisi e Rut Vieytes em seus respectivos artigos Algunas

Reflexiones Epistemológicas Acerca de Las Ciencias Sociales Y La Investigación Cualitativa, e Campos de Aplicación Y Decisiones de Diseño En LA Investigación Cualitativa. Que integram a coletânea Investigación Cualitativa Em Ciencias Sociales, coordenada por Aldo Merlino. (VIEYTES, 2009. pp.15-84)

(19)

São bem explicativas as palavras de Vieytes:

Diseñar uma investigación cualitativa es tomar decisiones para articular y hacer explícitos fines y médios, buscando los caminhos y definiendo las tareas necessárias para que los segundos sean capaces de cumplir com los primeiros. (VIEYTES, 2009. p. 43)

De fato, em contraponto ao método quantitativo, o qualitativo se impõe na Análise de Discurso, pois seria impossível analisar todos os textos existentes sobre o tema escolhido, tornando-o invisível por excesso textual, concomitantemente impossível e improducente. Como corolário deste pressuposto chegamos ao segundo ponto, estabelecido por Orlandi em seu artigo Segmentar ou Recortar? (ORLANDI, 1984. Pg. 9-26), a ideia de recorte, e da escolha dos recortes pelo analista é algo imanentisticamente ligado à Análise de Discurso. E não poderíamos conceber uma metodologia quantitativa quando falamos em recortes, seria uma contradição em termos.

Ao escolher os recortes, o analista já inicia o seu dispositivo de análise, que deve estar necessariamente vinculado às condições de produção. Para Orlandi, recorte é “uma unidade discursiva” e completa “Por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva.” (ORLANDI. Ob. Cit. p. 14).

Desta forma entendemos o recorte, não só como verdadeiro ato da Análise de Discurso, como um ato que deve necessariamente, por obviedade ante o que foi escrito, possuir a natureza qualitativa. A própria Orlandi elucida:

Feitas essas reflexões podemos dizer que o texto é todo em que se organizam os recortes. Esse todo tem compromisso com as tais condições de produção, com a situação discursiva.

Pretendemos que a ideia de recorte remeta à de polissemia e não à de informação. Os recortes são feitos na (e pela) situação de interlocução, aí compreendido um contexto (de interlocução) menos imediato: o da ideologia. (ORLANDI, IDEM. p.14).

O marco teórico e embasador deste estudo é a Análise de Discurso, partindo dos aparatos teóricos de Pêcheux, que ganharam no Brasil novos contornos e aperfeiçoamentos pelo pensamento de Eni Orlandi. Entendemos, inclusive, que a denominação Análise de Discurso Pêcheux-Orlandiana é a mais adequada e fidedigna para nomear nosso marco teórico. A Escola desenvolvida pelo filósofo da linguagem francês é também bastante tratada sob a nomenclatura “Análise de Discurso

(20)

Francesa”. Pêcheux repudiava esta terminologia, pois entendia que uma ciência ou campo de pensamento não poderiam estar atrelados a um país, uma vez que o conhecimento é um domínio universal. Por essa razão, também não utilizaremos o termo “Escola Francesa”, até porque dado o pensamento que já explicitamos o nome teria que ser alterado para “Escola Franco-Brasileira”.

Sempre citaremos a nossa ciência por extenso, com letras maiúsculas e entendendo ser ela a única Análise de Discurso por nós praticada. Realçamos que essa tomada de posição não é derivada de defesa corporativa, definitivamente o pensamento livre não tem lugar para esses egos, mas assim o fazemos por entender que muitos campos de investigação denominados de análise de discurso, são na verdade estudos diversificados da discursividade, muitos elaborados por seriíssimos intelectuais e dignos de olhares atentos, mas distantes dos primados que formam a Análise de Discurso que buscamos praticar. Dar nomes iguais a campos científicos diversos é algo muito perigoso, tanto para efeitos de potencialidades didáticas quanto para o aprimoramento e crescimento autônomo de cada uma delas.

A Análise de Discurso está inserida, desde Pêcheux, como um campo vasto e proveitoso, uma seara muito fértil para a compreensão do funcionamento da linguagem, de seus efeitos de sentido e das infinitas possibilidades que a cercam. Felizmente, sobretudo a partir do Brasil, muitos estudos deste importantíssimo campo teórico vêm sendo desenvolvidos. Com um rigor e aprimoramento constantes, mas como dissemos, os caminhos são muitos, e muitas vezes encontramos definições sedutoras e agudas em obras inesperadas. Em passagem de grande felicidade literária o escritor italiano Davide Enia, em seu Assim na Terra, publicado com o título original de Così in Terra em 2012, descreve com mestria as possibilidades da linguagem:

Com o tempo eu iria entender que, na comunicação entre os seres humanos, as palavras transmitem apenas um nível mínimo do sentido. No sexo, por exemplo, os corpos dizem mais e melhor: as contorções, a excitação, o gosto, os gemidos, o suor. .Ou quando termina uma relação. Pouquíssimas experiências são tão narrativas quanto o silêncio entre duas pessoas que acabam de se deixar. E no entanto é na constatação do abandono que finalmente um ouve ao outro, num silêncio puro, pois absoluto. E compreende- se que o abismo representado pelo outro jamais foi explorado. (ENIA, 2013. p. 119)

(21)

Apesar de inserido na beletrística e não em uma obra sobre Linguística, a prosa quase lírica do autor palermitano é muito reveladora sobre a língua e seus sentidos e faz lembrar uma clássica frase de Eni Orlandi segundo a qual: “Compreender é saber que o sentido pode ser outro.” É justamente essa ideia das intermináveis possibilidades de sentido (nas palavras e silêncios), nesta alteridade semântica, que reside a importância única e a beleza sem par que estão engastadas na língua e na linguagem. O trabalho científico deve ser feito com acuidade, gestos contidos, embasamento teórico, incondicional responsabilidade. Mas sem o amor e a paixão pela disciplina, e que se frise, pela disciplina e não pelo objeto do estudo, será certamente uma árvore sem frutos.

(22)

2 - BREVES ANOTAÇÕES SOBRE O CONSTITUCIONALISMO

BRASILEIRO

Do ponto de vista jurídico e político uma constituição é a responsável pela fundação de um Estado. Trata-se de uma ficção adotada doutrinariamente para explicar e expor a importância do constitucionalismo.

Um Estado é formado e mantido por uma continuidade, e por razões bem claras não teria uma nova constituição o poder de “criar novo Estado”, se assim o fosse seria lícito dizer que ao longo da História o Brasil foi formado por oito Estados diferentes, incluímos aqui como sétima Constituição a Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, que apesar de receber o nome de emenda na prática outorgou uma nova Carta Política, fruto do endurecimento da ditadura militar após o Ato Institucional número 5, a “emenda”, de fato mudou completamente a configuração da Carta de 67, inclusive em sua própria nomenclatura.

A Constituição de 1967, que entrou em vigor no dia 15 de março daquele ano, alterou o nome do país, consagrado pela Carta Magna de 1891, como Estados Unidos do Brasil, para República Federativa do Brasil. Todavia, era denominada “Constituição do Brasil”, a emenda de 69 renomeia o documento dando a ele o título de “Constituição da República Federativa do Brasil”.

A primeira experiência constitucional brasileira ocorre no ano de 1824. É importante salientar que cada constituição é fruto de um momento específico e primordial na estrutura nacional. Desta forma, a Carta de 1824 corresponde ao processo de independência do Brasil, oficializado em 7 de setembro de 1822. Com o início do Império e o fim do Brasil colonial tornava-se cogente a criação de uma constituição brasileira, uma vez que antes éramos colônia do Império Português. A constituição de 1824 é tratada por muitos estudiosos como um marco do liberalismo no Brasil, posição que refuto. Essa ideia está assentada em seu vasto rol de “garantias dos direitos civis e

políticos dos cidadãos brasileiros”. A questão a ser realçada era a visão extremamente restritiva de “cidadão”, além disso, a presença do Poder Moderador concedia poderes quase absolutos ao monarca, e por fim, esta Constituição trazia em si a mais abjeta das marcas da humanidade: respaldava o regime escravocrata.

(23)

Com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, surge a necessidade da substituição da Constituição Imperial por uma de índole republicana, o que ocorre em 1891. A primeira Constituição republicana é absolutamente inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América e como consequência traz três alterações fundamentais: O Estado deixa de ser unitário, tornando-se federal. A forma de governo republicana, evidentemente, substitui a monárquica, e o sistema de governo até então parlamentarista torna-se presidencialista.

A Constituição de 19342 é uma consequência daquilo que a História Brasileira passou a denominar “Revolução de 30”, quando Getúlio Vargas chega ao poder colocando fim à “Velha República”. Veio esta Constituição francamente influenciada pela Constituição de Weimar de 1919, e incorporava fatores relativos aos direitos econômicos e sociais, sob as fortes injunções do racionalismo jurídico de Kelsen e Preuss, que marcou profundamente o pensamento europeu da época.

Na medida em que o Governo Vargas foi tornando-se ditadura, intensamente germanófila e inclusive flertava com o hitlerismo que se iniciou na Alemanha com a chegada ao poder de Adolf Hitler pelas urnas, tornando-se chanceler em 1933. Foi necessário mais uma vez a criação de uma nova Constituição, surge então nossa quarta Carta Política em 1937, denominada “polaca”. A Constituição de 1937 é, ao lado das de 1967 e 1969 (Emendan°1), a mais ilegítima de nossa História e é uma quase cópia da Carta Política polonesa de 1935, daí seu apelido, que foi outorgada pelo Marechal de Campo Józef Klemens Pilsudski3. No dia 23 de abril de 1935, poucos dias antes de sua morte no dia 12 de maio daquele ano. A “Polaca” foi quase integralmente redigida a

2 Importante salientar que após 1930 Getúlio Vargas passou a governar sem uma Constituição, pois a de 1891 era discrepante da chamada Revolução de 30. A luta que mobilizou São Paulo em 1932, chamada de Revolução Constitucionalista, cuja data é celebrada em 9 de julho foi de grande importância para a promulgação da Carta de 1934.

3 Pilsudski (1867-1935) foi Marechal de Campo e ditador da Segunda República Polonesa. Curiosamente a Constituição Polonesa de 1791 é a mais antiga da Europa, e a segunda do mundo, atrás da estadunidense de 1787, a atual Constituição daquele país data de 1997. Sobre Pilsudski consideramos obra referencial em Língua Inglesa Pilsudski, a life for Poland, New York: Hippocrene Books, 1982.

(24)

partir de 1936, pelo extremista de Direita e figura central do Estado Novo Francisco Campos.

Com o final da primeira Era Vargas (1930-1945), e a redemocratização do país fazia- se imperioso a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que criasse uma Constituição dentro dos novos ditames democráticos. É essa a razão do surgimento da carta de 1946, considerada a mais democrática Constituição até então experimentada pelo Brasil. Inclusive com a participação bastante efetiva de parlamentares do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que seria impensável durante a ditadura getulista. Infelizmente os períodos democráticos, ao menos formalmente democráticos, têm se mostrado no Brasil curtos e frágeis. O período em que está inserido o Texto foi conduzido pelo final da II Guerra Mundial, de grandes empreitadas constitucionalistas, entre 1946 e 1949, 29 países editaram ou reformaram completamente suas constituições. A par de sua índole indiscutivelmente democrática, e mais uma vez inspirada na Norte- Americana de 1787, e desta vez, também trazendo ecos da francesa de 1848. A Constituição promulgada no dia 18 de setembro de 1946 trazia traços de duplicidade positivos e negativos. Continha em si uma larga carga de concessão de direitos no que tange às Liberdades Públicas e metas socioeconômicas. Por outro lado era de um quase vulgar arcaísmo e de péssima produtividade em relação à governança do país, o que conduziu a sérios problemas administrativos.

Dezoito anos após a promulgação da Carta Política de 1946, o Brasil vivencia uma das graves crises políticas e institucionais de sua história, o golpe de 1° de abril de 1964.

Como consequência deste dia nasce a Constituição de 1967. Após o chamado “endurecimento do regime” pelo Ato Institucional Número 5 de 1968, surge a necessidade de normas constitucionais ainda mais duras e restritivas, o que leva à Emenda n° 1 de 1969 que refaz, com a ruptura dos mínimos sentimentos democráticos, reformas que, na prática, criam a nossa sétima Constituição a de 1969.

Entendemos que neste trabalho que tem como escopo o domínio da Teoria e Análise Linguística e área de concentração a Análise de Discurso, não cabem maiores comentários sobre estes dois funestos documentos. Também para o Direito, por sinal corrompido por estes atos de intemperança e totalitarismo encomendado por

(25)

Washington aos militares brasileiros4·, não é de grande valia o estudo das duas malfadadas Cartas, ficando o seu estudo mais na órbita da Ciência Política, e da Sociologia.

Com o passar do tempo as ditaduras latino-americanas foram perdendo importância para os interesses americanos do norte. Foram sendo esvaziadas e esquecidas. Militares, policiais e civis que trabalharam nos porões da ditadura foram sendo colocados de lado, caindo no ostracismo na medida em que começavam a ser vistos como incômodos e desnecessários. Muitos abandonando as forças armadas para continuar a vida no crime organizado5.

A “distensão leve e gradual” foi sendo feita a partir do General Figueiredo para o qual “o cheiro dos cavalos era melhor que o cheiro do povo.” O fim da ditadura ocorreu muito mais pelo fato de estarem os militares deslegitimados e sem futuro; e também não nos esqueçamos dos acordos para que fossem anistiados. Portanto negociavam o próprio futuro na “Nova República”. O que propiciaria que voltassem com o apoio dos votos. Portanto, não se deram por injunções de índole popular. Sem o apoio dos aliados do Norte, os militares-governantes brasileiros se viram em uma encruzilhada, e foram paulatinamente dando fim a ditadura. Os objetivos que melhor retratariam essa saída do poder seriam: a necessidade de salvar a própria pele dos crimes cometidos contra a humanidade simbolizada discursivamente no enunciado “anistia para todos”, e a necessidade para tal de realizar uma meticulosa queima de arquivos, que deixasse o menor rastro possível do longo período criminoso por alguns deles chefiado.

Após este período de terror de estado, foi convocada Assembleia Nacional Constituinte, ainda sob muitos ranços ditatoriais e com forte poder econômico dos vencedores financeiros do golpe antipatriótico de 1964, que gerou poderes, criou fortunas e ampliou feudos que estavam agora ávidos por perpetuar-se no poder. Um

4 A referência aqui não é feita a Instituição Exército Brasileiro ou Forças Armadas Brasileiras, mas sim àqueles que fizeram e/ou apoiaram o movimento golpista engendrado por interesses estrangeiros. Muitos militares da Marinha, Exército e Aeronáutica eram contra o golpe. Vários foram severamente punidos, a estes devemos admiração, reconhecimento e gratidão. Assim como houve militares que participaram e/ou apoiaram o que chamavam de “Revolução” por boa-fé e patriotismo, entendendo, a nosso ver erroneamente, que existiam à época riscos de injunções soviéticas no Brasil. O golpe de 1964 acabou sendo, sobretudo, um golpe contra nossas próprias e legítimas forças militares.

5 Sobre o tema, foi publicado pela Editora Record o livro de Aloy Jupiara e Chico Otávio Os Porões da

Contravenção. Obra de grande valor no campo do Jornalismo Investigativo e que mostra por meio de

(26)

pouco mais distanciados das imposições estrangeiras, e sem a presença, ao menos efetiva, das fardas. O jogo do poder continuaria, por outras regras, nas mãos da elite.

A Assembleia Nacional Constituinte instalou-se no dia 1° de fevereiro de 1987, tendo seu texto final sido aprovado em 22 de setembro de 1988. O texto foi aprovado quase por unanimidade, a exceção foi a bancada petista, que disse não ao texto6. Consideravam-no com justas razões um documento político conservador, de caráter elitista e favorecedor das elites.

O que mais chamava a atenção favoravelmente para a nova Constituição era o grande número de “conquistas” nas Liberdades Públicas.

No entanto essa extensão e profusão de direitos, inclusive sem a contrapartida adequada de deveres, não poderia ser bem vista por alguém que conhecesse a História do Brasil, ou as possibilidades de manobras constitucionais tendentes a falsear a verdade, concedendo muito para jamais cumprir. De fato, o excesso de normatividade é sempre perigoso e mascara fatos concretos. Excesso de constituições, com excessos de normas, com constantes mudanças, levaram o jurista, professor da UERJ e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso a escrever a partir de 1989 o livro, que viria a ser publicado em 1990 O Direito Constitucional e a Efetividade de

suas Normas- Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. São realçados nos

estudos a ideia de “excesso como falta”. Nele Barroso aborda os riscos da “inflação jurídica”, assim entendida como o excesso de normatividade, e a “inefetividade constitucional”, compreendida como a questão para a qual o excesso de normatividade implica no descumprimento das leis, no caso específico estudado a própria CF-88. É aquilo que popularmente é chamado de “lei que pega” e “lei que não pegou”, ou em meu entendimento a diferença entre o vigor formal da norma jurídica (sua validade jurídica), e seu vigor material (sua aplicabilidade).

Como já foi dito, consideramos este proposital excesso uma das muitas vicissitudes da CF-88, no papel ela poderia parecer, talvez não perfeita, mas ao menos muito boa. Na realidade fática ela deixava buracos, abria lacunas, criava direitos inexequíveis para o povo e vantagens bem aproveitáveis para a pequena e egoísta elite brasileira.

5 A minguada bancada do PT era então formada por 16 constituintes, dos quais apenas o Deputado João Paulo de Minas Gerais votou favoravelmente.

(27)

Na obra acima citada Barroso explica seu pensamento sobre a inflação jurídica:

Na acidentada trajetória institucional do Estado Brasileiro, o elevado número de Constituições – que conduz à média de uma a cada vinte anos – não diluiu sequer a quantidade de emendas e de remendos, de boa e má inspiração, que buscaram adaptá-las a um figurino cada vez mais disforme. A Carta de 1969, esgarçada por 27 emendas, bem simboliza esta compulsão normativa, na estatística espantosa de mais de uma modificação por ano.

Desnecessário enfatizar que da cíclica substituição de Textos que não se consolidam resulta inevitável que se depreciem às raias da inutilidade. Sob perspectiva jurídica, a constante variação, gerando a incerteza, distancia-se de um dos eixos principais em torno do qual deve gravitar um Estado de direito: a segurança, a estabilidade das relações jurídicas, políticas e sociais. Esta órbita desencontrada não se aproximou, tampouco, como poderia fazer supor um enfoque pendular clássico, da outra coordenada básica, a justiça, em sua realização mais ampla. E, naturalmente, uma ordem jurídica incapaz da satisfação ponderada desses dois valores fundamentais se reduz a um mero formalismo retórico. (BARROSO, 1990. p. 40)

Em nossa atual experiência constitucional, que completou 30 anos no dia 5 de outubro de 2018, nosso Texto Máximo Jurídico, já sofreu, inacreditavelmente, mais de uma centena de emendas. Algumas, verdadeiras reformas completas, como a do Judiciário. A Constituição de hoje é completamente diferente da original. Vislumbramos dois maus alvitres, o primeiro é que mudou para pior, o segundo é que é ela a única arma que temos para lutar contra os arbítrios que podem se agigantar.

(28)

3– A HISTORICIDADE RECENTE DA REPÚBLICA BRASILEIRA

Antes de tudo é necessário refletir se já houve de fato democracia no Brasil. Não falo apenas de algumas Liberdades Públicas, que de fato, já experimentamos em doses bem mais generosas do que boa parte dos Estados politicamente constituídos. Refiro-me a verdadeira democracia, no seu mais amplo sentido. A democracia material. Enquanto na democracia formal podemos ter a liberdade de expressão; de ir e vir; de manifestação do pensamento crítico; da escolha de nossa profissão, ou até mesmo o de nada fazer, a democracia material é aquela que de fato revela o governo do povo e para o povo ao estabelecer um regime de repartição de “possibilidades”.

Propositalmente escolhi o termo repartição de possibilidades, que julgo o cerne, o epicentro da democracia material ou efetiva, aquela que se aplica e transparece na vida de cada um do povo.7 Pretendemos assim fugir dos perigosos meandros economicistas, neste caso a democracia material seria a “repartição de bens”, ou a “repartição de renda”. Como ensina Jessé Souza:

O ECONOMICISMO É a crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos econômicos. Mas não são economicistas apenas os economistas ou cientistas sociais que compartilham a mesma visão de mundo. Nosso senso comum compartilhado, o que faz com que , quando se fala “níveis de renda” como correspondente a “classes sociais”, ninguém ache isso absurdo ou ridículo. As pessoas levam a sério, mostrando que o economicismo, superficial, frágil e pobre, enquanto visão científica da sociedade, é uma espécie de “visão oficial do mundo”, seja para o senso comum compartilhado por todos, seja para as “ciências da ordem”, que se utilizam dos pressupostos do senso comum para construir suas categorias e hipóteses. (SOUZA, 2015.p. 109).

Tanto a ideia de democracia quanto a própria nomenclatura retomam as ideias surgidas na Antiguidade Clássica. A concepção hodierna de democracia e seus primados se diferem muito daqueles que eram exercidos na Grécia. Em verdade, “a democracia

7 A referência aqui a povo é técnica, e está consolidada como um dos três elementos formadores do Estado: território; povo, e poder político. Não se refere especificamente à ideia das massas, de “povão” ou das minorias oprimidas. Linguisticamente esta distinção ganha grande relevância, pela diversidade semântica que pode ser produzida a partir do léxico “povo”, que aqui equivale a população.

(29)

grega”, hoje, por critério algum seria reconhecida como democracia. Também não faz sentido entender que há democracia pelo simples direito ao sufrágio universal, que é apenas um de seus pressupostos, afinal, qual a vantagem prática para um povo de poder escolher seus próprios representantes8, se este mesmo povo não tem as condições educacionais, dentre outras, que são concedida pela democracia material, para entender qual consequências de suas “escolhas”. O termo vem entre aspas, pois a democracia meramente formal também não comporta escolhas. Unindo a falta de Educação formal, com a manipulação elevada de uma grande concentração de poder midiático nas mãos de poucos, o que temos é, ao final das contas, um simples exercício de manipulação. O povo passa a ser (e aqui não distinguimos classes sociais) o instrumento de referendum da vontade dos detentores do poder.

Entendo a democracia moderna como relacionada a fatores que estão intimamente relacionados às Liberdades Públicas9, os Direitos Civis, universalidade da Educação com qualidade, respeito à dignidade da pessoa humana, que inclui, por exemplo, o saneamento básico para todos10 e muitas outras questões, que poderiam ser aqui elencadas.

Ao longo de nossa História considero, muito especialmente, dois pontos como os mais sombrios já ocorridos. O primeiro deles é o fato de termos sido um país escravagista. Esta marca que deixa até hoje fortíssimos resquícios em nossas bases sociais. Deve ser eternamente lembrada e combatida com políticas11 que possam minimizar, pois neutralizar seria impossível, este horror da humanidade.

O segundo ponto foram os diversos momentos de autoritarismo que atravessamos. Dentre os quais ganha vulto aquele que a partir do dia 1° de abril de 1964 instalou no Estado uma longa e truculenta ditadura que se não destruiu as possibilidades e alcances

8 A referência aqui é feita à Democracia Direta, e não faria sentido de neste texto expor sua vasta taxionomia.

9 Conceito que predomina nos Estados Unidos. Muito bem estudado em Liberdades Públicas, de Rivero e Moutouh.

10 A citação ao saneamento básico pode parecer deslocada, por excesso de especificidade, mas na verdade é ponto fundamental, dadas pelo resultado de modernas pesquisas que atestam os inúmeros impactos negativos causados por sua ausência, e que vão desde doenças crônicas à morte precoce, passando pela diminuição da capacidade cognitiva.

11 No dia 8 de maio de 2019, o Governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, seguindo os caminhos recentes percorridos pelo país, pôs fim ao sistema de cotas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O fato torna-se ainda mais triste por ter sido justamente a UERJ a precursora do sistema de cotas no Brasil.

(30)

de nosso país, no mínimo, tornaram muito mais difíceis a construção de um país justo e igualitário.

O processo de “redemocratização” foi paulatino, quase invisível, começando por uma Lei de Anistia que trouxe de volta exilados ao nosso país, mas teve por escopo o objetivo de proteger àqueles que, no poder, praticaram inúmeros crimes.

Outro momento importante foi o processo de eleição geral de 1982, que possibilitou ao povo, após longo período, escolher seus representantes em todos os níveis federativos do Executivo e do Legislativo, com exceção do Presidente da República. Isto ainda estava afeta ao Colégio Eleitoral que em 1985 elegeria Tancredo Neves, em detrimento do candidato Paulo Maluf.

Neste período o Brasil vivenciou um de seus mais marcantes momentos de legítima e ampla manifestação popular, que de Norte a Sul clamava pela aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que propiciaria eleições diretas para presidente. Derrotada a Emenda e a vontade popular, restou à população assistir aos congressistas eleitos em 1982 realizarem a sua escolha.

Tancredo nunca assumiu, tendo sido internado por conta de uma diverticulite aguda às vésperas da posse, marcada para 15 de março, acabou morrendo no dia 21 de abril daquele ano após longo padecimento. Em seu lugar assumiu o vice, José Sarney, que representava mais do qualquer outra pessoa a ordem imposta pelos desmandos postos em prática após 1964.

Em meio ao conturbado governo de Sarney, marcado pela criação de um “centrão”, que permitia a governabilidade por meio de generosa distribuição de verbas públicas, uma inflação monetária das maiores da história brasileira, e até mesmo a escassez de alimentos em supermercados. Foi convocada uma inadiável Assembleia Nacional Constituinte, com a participação de amplos setores da sociedade. Todos os acontecimentos que marcaram o período, além do fato de oficialmente ainda estarmos sob os desígnios autoritários do Texto de 1969, não permitiram uma participação maior ainda. Mais uma vez o que assistimos foi a uma possibilidade muito mais no campo formal do que material. A força do poder econômico e o domínio de caciques políticos espalhados pelo Brasil acabaram por tornar inviável uma Constituinte materialmente democrática, todavia, este acanhado avanço, consubstanciado na participação, mesmo

(31)

pequena, de operários, representantes de movimentos sociais neonatos e outras minorias, já tenha sido algo que contrastava com a minguadíssima, quase nula participação de setores diversos da sociedade na elaboração de uma Carta Política, até então. A exceção, ainda mais mirrada, fora a experiência de 1946.

A promulgação da Constituição de 1988 pode ser apontada como o marco daquilo a que se convencionou denominar redemocratização. A nova Constituição, inclusive, determinava para o ano seguinte a realização de eleições diretas para a Presidência da República, fato que os brasileiros não conheciam desde quase trinta anos, quando da eleição de Jânio Quadros em 1960.

Para desencanto das forças populares e democráticas o povo escolheu como presidente o ex-governador de Alagoas, o carioca Fernando Collor. Dada a forte intervenção do poder econômico naquelas eleições o termo “escolheu” é otimista, pois o direito verdadeiramente livre à vontade-poder de escolha foi eclipsado por inúmeras manobras que sombrearam, sobretudo, o segundo turno daquele pleito.

Ao fazer uma distinção entre redemocratização e democratização buscamos uma divisão previamente concebida e articulada. A redemocratização possui discursivamente um tom polissêmico e foi criada por participantes e simpatizantes da ditadura. Redemocratizar produz um funcionamento de sentidos que quer dar ao público a ideia de que voluntariamente se faz uma democratização, o prefixo “re” confere à palavra a falsa ideia de que após um longo período ditatorial, os donos do poder, para utilizarmos aqui uma expressão que se tornou título da clássica obra de Raymundo Faoro, resolveram reativar a democracia no Brasil. Nada mais falso. Inúmeras injunções internas e externas conduziam a esta necessidade, inclusive interesses de plenipotenciários que queriam se livrar da desgastada pecha militarista para consumar seus desejos de poder.

É preciso dizer, que esse engendramento ganhou vida própria, passando a povoar livros de História de autores assujeitados12 pelas mais diversas ideologias, inclusive as

bastantes tendentes à esquerda.

12 O Assujeitamento em Análise de Discurso se dá pela ideologia, que sempre assujeitará um sujeito discursivo, uma vez que não há sujeito sem ideologia, conceito de Pêcheux a partir de Althusser, particularmente em Sobre a Reprodução. As formações discursivas por sua vez, não são assujeitadas, mas sim constituídas pela ideologia.

(32)

Por outro lado a ideia não prefixada de democratização assume outro sentido, e do ponto de vista de uma semântica mais informal, irrompe com um novo funcionamento do aparato linguístico, quebrando as bases prefixadas e concedendo a ideia de algo que acontece mais naturalmente.

Em nível de Análise de Discurso, o que temos é um pré-construído, que está ligado à memória, à ideologia, e se dá metaforicamente para que possa ocorrer a irrupção do novo. A democratização não é “imposta”, ela é fruto de um processo político genuíno e natural, no qual ocorrem as devidas ascensões de novas forças políticas que clamam por um quadro diverso no cenário político. Ela não vai ser fruto de uma eleição agendada, de eventos marcados como em um ritual. A democratização surge na medida em que são ampliados os efeitos de sentidos do que se tem chamado de Liberdades Públicas e Direitas individuais. Setores diversos da população podem refletir e se organizar, assim criando a busca incessante por sentidos reais do que denominamos democracia13.

O que se mostrou insofismável é o fato de que no Brasil sem maioria no Congresso é impossível governar. Collor, eleito e empossado na Presidência e pertencente a um pequeno partido de “aluguel”, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), por sinal um nome que se carrega de sentidos marcadamente extremistas de direita, sobretudo, pela lexicalidade reconstrução, algo muito utilizado no âmbito do populismo direitista, como já fora em Estado Novo no período Getulista, e Nova República do governo Sarney. Sentidos entrelaçados à reconstrução e novo, além de outras da mesma formação discursiva se inscrevem em processos de significação próprios à direita. O que se pretende mostrar é que algo destruído, corrompido, e que será purgado pelo soerguimento e a chegada do diferente (novo), essas palavras uma vez formuladas são apenas um apagamento das reais intenções de procrastinação das velhas relações de poder, incutindo no imaginário popular a falsa perspectiva/ilusão de mudança.14

Em meio a um dos mais fracos ministérios já formados no Brasil (possivelmente o mais fraco até então), em meio a escândalos de corrupção que ganharam voz e vulto por meio de pessoas da própria família do presidente e que foram amplamente divulgados pelo jornalismo declarativo, sem qualquer base de sustentação parlamentar de seu

13 Por “verdadeira democracia”, não nos referimos a efetivação definitiva de uma democracia material, tal como preconizamos, mas a “democracia possível”, ou seja, aquela que mais se aproxime dos verdadeiros ideais e necessidades da sociedade como um todo.

(33)

poder; movido por características de um irascível temperamento pessoal e instigado por uma sanha indescritível pelo poder, Collor caiu. Tornou-se o primeiro Presidente da República alvo de impeachment e deu lugar a seu vice Itamar Franco.

O sociólogo carioca Fernando Henrique Cardoso, radicado em São Paulo, professor aposentado da USP pela ditadura militar pela qual foi perseguido e tornou-se exilado político, transformou-se no grande nome do governo. À frente do Ministério da Fazenda foi um dos principais responsáveis pela implantação do Plano Real. O que a princípio parecia mais um dos artifícios cosméticos tão utilizados na economia brasileira acabou por ser o responsável por uma quase inacreditável reviravolta em nossa conturbada história monetária. O brasileiro que já havia se acostumado a lidar e sobreviver com índices inflacionários que atingiram os três dígitos mensais, viu em pouco tempo o estancamento da inflação e a possibilidade de poder em sua vida realizar um planejamento a longo prazo. É bem verdade que a estabilidade monetária foi seguida por nenhum ganho econômico excepcional, com traços de desenvolvimento ou geração de elementos concretos que pudessem colaborar com nossa historicamente combalida economia. Mas o simples fato de viver longe do temido espectro inflacionário já era bem mais do que a maioria dos brasileiros poderiam esperar.

Com esse cartel, o apoio da grande mídia; da elite empresarial; afamado intelectual com honrarias internacionais, e tendo como principal oponente o operário e sindicalista Luís Inácio Lula da Silva, FHC tornava-se amplo favorito para as eleições presidenciais de 1995.

O governo de Fernando Henrique propugna por ideias econômicas liberais, bastante atreladas àquilo que, como já nos posicionamos passou a ser denominado impropriamente de “neoliberalismo”. Empreende um amplo programa de privatizações que é alvo de acerbas críticas do campo de esquerda. Concomitantemente se preocupa em manter a estabilidade monetária recém conquistada. Para ilustrarmos recorremos às palavras do Professor Francisco Lopreato do Instituto de Economia da Unicamp:

O governo FHC, respaldado no Plano Real, aproveitou o momento. Além de contar com o baixo nível de endividamento federal, resultado do bloqueio dos ativos financeiros, soube tirar proveito do quadro internacional e da correlação de forças políticas: vencendo a resistência à adoção do novo modelo de desenvolvimento, avançou na reformulação do poder do Estado e na construção do novo regime fiscal. A queda da inflação impulsionou a onda liberal, e as privatizações nortearam então o processo de reestruturação do Estado e do redesenho das relações inter e intragovernamentais, contando com

(34)

o suporte do Congresso e da maioria dos governadores, prefeitos e eleitores. (LOPREATO, 2013. p. 167)

O período FHC trazia em si a marca da redemocratização15 ao permitir que debates

fossem construídos ao redor de seu governo. Não só o pensamento, mas também as paixões políticas retornaram, após o longo período da ditadura. Os efeitos costumam ter vida mais longa que as ditaduras em si, e muitas vezes fazem tão mal quanto elas. Assim, o mal não se encerra com o fim da ditadura, ele se procrastina como legado de seus desajustes.

Lopreato faz outra observação acerca do governo FHC, do qual discordamos, e torna- se importante para uma tese que aborda o constitucionalismo sob o amplo aparato teórico da Análise de Discurso:

A Constituição de 1988, na contramão do mundo liberal de Thatcher, buscou consolidar a ação do Estado do bem-estar social e reconstruir o débil equilíbrio federativo herdado do período militar (Grifos nossos). (LOPREATO. Ob. Cit. pp. 166-167)

A visão de Lopreato repercute aquilo que acabou por transformar-se, sobretudo em meios leigos, em uma espécie de “versão oficial” do Texto de 1988.

Em primeiro lugar a ideia de “mundo liberal de Thatcher”, nos parece, no mínimo exagerada. Lopreato aborda, como economista, a ideia de liberalismo sob seu aspecto

economicista16. Thatcher exerceu um governo despótico de direita, que dentre outros males apoiou incondicionalmente o hediondo regime de Apartheid vigente na África do Sul, colocou-se em campo francamente xenófobo, apoiou ditaduras como a de Pinochet, agiu com demasiada força na chamada Guerra das Malvinas, provocando mortes desnecessárias. Os hoje minguados defensores da “Dama de Ferro”, argumentam que ela assumiu a chefia do governo britânico sob forte crise, e anos depois entregaria um Reino Unido próspero e pujante. Nada mais errado. O governo da Sr. Thatcher configurou-se no marco da decadência britânica, o antigo Império onde o sol nunca se

põe, estava definitivamente condenado. Depois de Thatcher a Grã-Bretanha jamais seria

a mesma. Uma das crises cíclicas do capitalismo, como já preconizadas por Marx, foram tratadas como o estopim para a implantação de um governo de extrema direita

15 Mas não de democratização.

16 Seria natural e aceitável que o fizesse sob o prisma “econômico”, mas como já foi dito supra o economicismo é um reducionismo, que conduz tudo para o campo econômico.

Referências

Documentos relacionados

ABSTRACT: The toxicological effects of crude ethanolic extracts (CEE) of the seed and bark of Persea americana have been analyzed on larvae and pupae of

De seguida, vamos adaptar a nossa demonstrac¸ ˜ao da f ´ormula de M ¨untz, partindo de outras transformadas aritm ´eticas diferentes da transformada de M ¨obius, para dedu-

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Com o objetivo de compreender como se efetivou a participação das educadoras - Maria Zuíla e Silva Moraes; Minerva Diaz de Sá Barreto - na criação dos diversos

heterophylla suscetíveis e resistentes aos herbicidas inibi- dores da enzima ALS, após serem armazena- das durante 14 meses, bem como avaliar a efi- cácia dos testes de germinação

Para o lado direito deste P.A, segue-se o mesmo procedimento realizado para as conexões do lado esquerdo, iniciando-se no cabo de conexões do sinal excitador pelo conector R,

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Seja o operador linear tal que. Considere o operador identidade tal que. Pela definição de multiplicação por escalar em transformações lineares,. Pela definição de adição