• Nenhum resultado encontrado

A prática avaliativa sob o signo da exclusão

1. O SISTEMA DE CICLOS DE APRENDIZAGEM

2.2 A AVALIAÇÃO DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM

2.2.7 A prática avaliativa sob o signo da exclusão

A discussão tecida até o momento tem como objetivo compreender que a avaliação classificatória, que vem sendo historicamente realizada, não ocorre em um vazio de idéias, como uma atividade desconexa e isolada, mas sim como uma ação articulada aos outros elementos do ato educativo, a uma visão de mundo e a função social da escola, quais sejam: Uma visão de mundo positivista; uma escola com a função de preparar o aluno para o mercado de trabalho; aprendizagem como acúmulo de conteúdo (mecanicista e passiva); ensino como transmissão de conteúdo (padronizado e homogêneo); relação professor/aluno como sujeito/objeto, através, muitas vezes, da coação; uma intervenção pedagógica tradicional; um currículo disciplinar, descontextualizado; um planejamento técnico-burocrático.

Importa relembrar que a avaliação quando imersa nessa lógica apenas constata o resultado da aprendizagem do aluno, classifica-o em relação a uma norma de excelência (PERRENOUD, 1999) e sanciona se o educando pode ou não prosseguir seu percurso educativo. Nada é feito para que o aluno possa superar suas dificuldades, a não ser uma prova de recuperação ao final de um tempo pedagógico que obriga o educando a decorar o conteúdo de um ano ou semestre em apenas alguns dias.

Também não se avalia os demais elementos do processo educativo – inadequação do currículo, identificação do aluno com o professor, qualidade do processo de ensino e aprendizagem...- como componentes que influenciam uma aprendizagem “mal

sucedida”. Apenas o aluno é julgado, e este julgamento gera resultados finais e irrevogáveis.

Nesse sentido, uma avaliação dessa natureza incute no aluno a culpa pelo seu mau desempenho, atingindo sua auto-estima, fazendo-o se sentir incapaz de aprender. Dessa forma, a escola exclui do processo de ensino e aprendizagem aqueles que mais precisam dele. Assim, “a avaliação enquanto prática ameaçadora, autoritária e seletiva apresenta- se como um processo de exclusão” (LUCKESI, 1998, p. 168). A avaliação, quando assume o papel de classificar e selecionar, reproduz a estratificação social do modelo vigente, conforme revela Luckesi,

a avaliação escolar assumida como classificatória, torna-se desse modo, um instrumento autoritário e frenador do desenvolvimento de todos os que passam pelo ritual escolar, possibilitando a uns o acesso e o aprofundamento no saber, a outros a estagnação ou evasão dos meios do saber...mantém-se assim a distribuição social (1998, p. 37).

Nesse contexto, o sujeito da avaliação é apenas o aluno e o objeto da avaliação é o resultado da sua aprendizagem. O objetivo é verificar, mensurar, medir o rendimento do aluno em relação aos objetivos previstos. Sua função é classificar, selecionar e certificar aqueles alunos que estão aptos a continuar o seu processo instrucional. Perrenoud (1999) define estas funções da seguinte forma:

1) classificar: os alunos são comparados e depois classificados em virtude de uma norma de excelência, definida no absoluto ou encarnada pelo professor e pelos melhores alunos. Esta função da avaliação está associada à criação de hierarquias de excelência. No entanto estas hierarquias informam sobre a posição de um aluno em um grupo ou sobre sua distância relativa à norma de excelência do que sobre o conteúdo de seus conhecimentos ou competências.

2) selecionar: identificar aqueles que podem aprofundar seus estudos e os que terão que ficar retidos. Ou mesmo servir de orientação para futuras habilitações. A avaliação revela quem fracassou e quem obteve êxito.

3) certificar: aquisições em relação a terceiros. No entanto, uma certificação fornece poucos detalhes dos saberes e das competências adquiridas e o nível de domínio precisamente atingido em cada campo abrangido. Garante, sobretudo, que o aluno sabe globalmente “o que é necessário saber” para passar para a série seguinte no curso, ser admitido em uma habilitação ou começar uma profissão.

Dessa forma, sob a égide do paradigma positivista “o processo de avaliação deve produzir resultados verdadeiros, objetivos, fidedignos, que explicitem o real valor de cada um dos alunos e alunas, os quais classificados e hierarquizados terão suas recompensas, punições ou tratamentos adequados” (ESTEBAN, 2005 p. 17/18). Crê-se na objetividade para tornar o processo avaliativo mais justo, como se o resultado de uma avaliação, por ser expresso em números, estivesse acima do bem e do mal; como se uma nota fosse a expressão real e infalível de uma aprendizagem e como se o aluno fosse o único responsável pelo seu insucesso e, por isso, o único que deve ser punido.

A supremacia das notas, ratificada pela avaliação excludente, atribui ao processo educativo um caráter mercantil. Um trabalho só é bem realizado quando convertido em pontos, em notas. Só há interesse dos alunos em produzir aquilo que vai ser entregue ao professor em troca de algum tipo de pontuação. Assim, “em uma avaliação tradicional, há um empobrecimento dos procedimentos intelectuais, da curiosidade, da criatividade, da originalidade em detrimento “do que paga”, do que pode ser convertido em notas honrosas” (PERRENOUD, 1999, p. 15).

Para Freitas (2003), a avaliação realizada na escola é artificializada, visto que o aluno aprende para “mostrar conhecimento ao professor” e não “para intervir na realidade”. Essa artificialidade, no entanto, é reflexo de uma escola que se separou da vida, da prática social. De acordo com este autor a avaliação na lógica seletiva e excludente apresenta três componentes indissociáveis,

1) Aspecto instrucional: pelo qual se avalia o domínio de habilidades e conteúdos em provas, chamadas, trabalhos;

2) Avaliação do “comportamento” do aluno em sala de aula: poderoso instrumento de controle em ambiente escolar, já que permite ao professor exigir do aluno obediência às regras;

3) Avaliação de valores e atitudes: consiste em expor o aluno a reprimendas verbais e físicas, comentários críticos e até humilhação perante a classe, criticando seus valores e atitudes.

Dessa forma, estes três aspectos formam a avaliação na sala de aula e concorrem para que se exercitem relações sociais de dominação e submissão ao professor e à ordem. (FREITAS, 2003).

Com base em Romão (2005), Freitas (2003) e Estebam (2002), é possível apontar as seguintes características de uma avaliação excludente: subjetividade isolada; a eficácia como objetivo central; Fomento ao individualismo e à competição; valorização dos resultados em detrimento dos processos; avaliação como recurso instrumental neutro; elege aqueles que se adaptam à lógica tecnocrática da sociedade; despolitização das relações; julgamento das capacidades exclusivamente pela: quantidade de informações absorvidas; aquisição de habilidades adestradas; adequação a padrões socialmente sancionados; a troca pela nota assume o lugar da importância do próprio conhecimento como construção pessoal e poder de interferência no mundo.

A percepção do processo avaliativo como uma atividade técnico-burocrática faz com que seja atribuída uma importância maior aos instrumentos utilizados do que as intenções às quais a avaliação serve, ou reduz-se a avaliação à decisão final de aprovação/reprovação. Nesse sentindo, costuma-se confundir a avaliação com aplicação de prova, ou com o ato de atribuir nota, ou mesmo, com a decisão final do professor em aprovar ou reprovar determinado aluno. Esses aspectos, no entanto, fazem parte dos procedimentos avaliativos, são etapas de um processo mais amplo denominado avaliação.

Definem-se como procedimentos avaliativos: o estabelecimento dos objetivos a serem avaliados; escolha e aplicação dos instrumentos avaliativos; registro e comunicação dos resultados; tomada de decisão.

Os objetivos são determinados em relação às capacidades cognitivas que, por suas vezes, correspondem à aprendizagem das disciplinas ou matérias tradicionais. Tais objetivos são estabelecidos unilateralmente pelo professor em um período precedente ao início do trabalho, são inflexíveis no percurso da intervenção pedagógica e indiferentes às necessidades específicas dos educandos. Muitas vezes os objetivos são omitidos dos alunos, que são avaliados sem saber em relação a que. Tal velamento, segundo Silva (2003), contribui para que o trabalho do professor seja conduzido na trilha dos arranjos e imprecisões.

Quando o ato educativo é pautado na epistemologia positivista e na concepção de uma escola voltada aos interesses do mercado, o que se busca na avaliação é a construção de um instrumento que possa medir com precisão a aprendizagem do aluno. Para tanto, muitos teóricos da avaliação se detiveram por muito tempo na elaboração de instrumentos que pudessem suprimir a subjetividade do processo avaliativo e, com isso, garantir o conhecimento fidedigno. Afonso reitera afirmando,

os psicólogos do inicio do século XX viveram obcecados com a idéia de que era possível atingir, por intermédio dos testes, um conhecimento objetivo das características do individuo, e com isso permitiria estabelecer a forma ideal de sua inserção na estrutura social e ocupacional (2000, P. 31).

No entanto, os testes são utilizados, até os dias atuais, como o principal instrumento, senão único, para medir o que o aluno sabe. Este predomínio, normalmente vem justificado pela precisão, objetividade e validade dos dados incontestáveis que só uma prova objetiva pode apresentar. Comumente estes testes são elaborados em função dos conteúdos programados e não em relação às características específicas de cada turma como, por exemplo, o nível sócio-cognitivo dos aprendentes. Além disso, muitas vezes eles não indicam sequer se houve ou não aprendizagem, mas sim se o aluno memorizou ou não as informações. Sobre esta questão Melchior complementa,

na avaliação escolar, a utilização de testes passou a ser, em muitos casos, o único dado considerado pelo professor ao emitir um resultado da etapa de desenvolvimento de seu aluno. Em conseqüência disso, os testes ou as provas passaram a representar, tanto para o aluno como para seus pais, o responsável pela aprovação ou reprovação. Assim, o mais importante para o aluno, na escola, seria sair-se bem nos teste ou provas; logo a necessidade de se estudar está vinculada às provas que serão realizadas na escola. Isso por si só já é um problema que se agrava, considerando-se que as questões de um teste normalmente representam uma parcela mínima daquilo que foi trabalhado e representa menos ainda do desenvolvimento do aluno (1994, p. 93).

A aplicação dos instrumentos avaliativos ocorre pontualmente, ao final de uma unidade didática, de um bimestre ou semestre. É um momento à parte do processo de ensino e aprendizagem, como um mero complemento do processo educativo. Silva (2004) afirma que as tradicionais “semanas de prova” são um (des)serviço para a educação visto que:

• indica um desperdício de tempo no trabalho pedagógico, pois é o período onde o professor não se dispõe a ensinar e, consequentemente, o aprendente não encontra clima para aprender ou apresentar suas hipóteses de aprendizagens;

• alimenta uma cultura do medo, do pavor da escola, da educação, do professor, do conhecimento, da avaliação. Todos nesse momento são inimigos, salvo quando algum aprendente se alia a outro para superar a opressão e se ajudam através das perseguidas colas;

• ratifica a tricotomia entre o ensino, a aprendizagem e a avaliação, fragmentando cada vez mais o trabalho pedagógico (2004, p. 67).

À aplicação dos instrumentos procede a correção, registro e publicação dos resultados. A correção é feita quantitativamente, contabilizam-se os erros e acertos e atribui-se uma pontuação a cada acerto. Ao final, a soma dos pontos constituirá uma nota que representará a aprendizagem do aluno. Segundo Luckesi (1998), a prática recorrente na escola é a verificação e não a avaliação, visto que seu resultado serve à estratificação e não à reflexão. De acordo com este autor, “o ato de avaliar se encerra quando se atribuem notas ou conceitos aos resultados. Assim, não serve para pensar a prática e retornar à ela; mas sim como um meio de julgar a prática e torná-la estratificada” (LUCKESI, 1998 p. 35). A verificação encerra-se com a obtenção do dado ou informação que se busca, porém não implica que o professor retire dela conseqüências novas e significantes.

O registro das aprendizagens é feito quantitativamente, através da descrição numérica dos resultados. Os resultados expressos em números são inteligíveis a todos: pais, alunos, professores, agentes administração, sistema social. Isto facilita sua comunicação e universalização. Sendo assim, tradicionalmente, “os boletins de notas foram o instrumento único de transmissão da informação, independente dos receptores” (ZABALA, 1998 p. 215).

Perrenoud (1999) afirma que o sistema de notas mantém-se por tanto tempo como forma de registro preponderante no âmbito educacional por repousar sobre as seguintes virtudes aparentes: a) eqüidade: todos são submetidos aos mesmos exames e normas; b) racionalidade e precisão: os desempenhos são enumerados, quantificados, objetivados; c) simplicidade para informar aos pais; d) convence os pais de que os alunos competem no mundo econômico e parece-lhes saudável e educativo que o bom trabalho seja recompensado e o mau trabalho sancionado por notas ou classificações. Nesse prisma, “a nota boa e a promoção funcionam, assim, de modo bastante significativo, como um reconhecimento do mérito do estudante, produto do seu esforço, na competição pela vida” (PARO, 2001, P. 79). No sistema notacional transforma-se qualidade em quantidade e importa mais a aprovação do aluno do que sua aprendizagem. Ademais, os registros numéricos geram estigmas e marcas que acompanham o aluno em todo seu percurso educativo e mesmo de vida.

No processo de verificação, os resultados são apenas constatados e as decisões restringem-se à aprovação ou reprovação do aluno. Os alunos que têm competência prosseguem. Os que não se esforçaram suficientemente ou não são suficientemente inteligentes permanecem onde estão. Nesse sentido, a reprovação é a punição àqueles que fracassaram. Logo, pode-se afirmar que o maior malefício que uma avaliação excludente pode causar é a responsabilização do educando como o único culpado pelo seu insucesso. Nessa perspectiva, Paro (2001) afirma que,

o fracasso não aparece como conseqüência, que é, da metodologia equivocada ou das más condições que são oferecidas para professores e alunos desenvolverem seu trabalho pedagógico na escola, mas como produto da estupidez, da desídia ou da incompetência do próprio aluno. Este, sem o senso crítico (que a escola não lhe deu) e acostumado a sua condição de inferioridade na escala social, por causa de sua origem humilde, assimila facilmente o discurso de seus mestres e de seus pais (que já passaram por processo semelhante) de que, se os outros conseguem aprender e ele mesmo não o faz é por desleixo ou por falta de inteligência (PARO, 2001 p. 74).

Nesse contexto, quando a avaliação assume esses contornos (punição, poder, autoritarismo, controle, classificação) atinge o aluno naquilo que ele tem de mais precioso, sua auto-estima, promovendo, assim, estigmas perenes que o acompanharão ao longo de sua vida.

Torna-se premente, então, a busca por alternativas educacionais que superem esta lógica excludente, como, no caso, o Sistema de Ciclos de Aprendizagem. Isto porque, tal sistema exige uma ruptura com essas práticas seletivas e classificatórias, a partir da assunção de uma avaliação formativa, voltada para a inclusão dos alunos no processo de ensino e aprendizagem, a fim de contribuir para a efetivação da educação enquanto direito de todos. Esta perspectiva da avaliação será o tema da próxima secção.