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A prática educativa como trabalho colaborativo

Em contraposição a práticas da tradição pedagógica clássica que preconiza a atuação de professores solitários, as narrativas docentes destacam a importância do trabalho entre pares, com a direção escolar, com os pais e com a comunidade em geral, em prol da educação rural.

O trabalho colaborativo no interior da escola é revelado nos movimentos dos professores para colocarem em marcha as pro- postas didáticas já apresentadas. Zélia se articula com uma pro- fessora da 2ª série para realizar as sessões simultâneas de leitura; Marilourdes conta com o apoio do professor de História para se- lecionar livros e com a diretora para a aquisição das obras, tendo em vista a realização do projeto de estudo sobre a cultura afro- descendente; Maísa, em parceria com a coordenadora pedagó- gica, elabora o projeto fábulas. Nas representações da professora Marilourdes, essa dimensão é explicitada como aspecto positivo do projeto “Aprendendo com a cultura afrodescendente”, no excerto da narrativa abaixo:

O apoio da direção da escola e dos colegas de trabalho, como o pro- fessor de capoeira, foram muito importantes. Com as aulas de ca- poeira uma vez por semana, foi possível associar o trabalho com as rodas de capoeira com o projeto. O professor foi convidado a pales- trar para a turma, falando de onde veio a capoeira e sua importância para a cultura brasileira. Isso aumentou o interesse dos alunos pelo projeto, visto que eles já participavam do projeto capoeira na escola. É necessário registrar a interdisciplinaridade com Língua Portuguesa – reescrita de um conto africano; com Artes – música, dança e más- caras e com História – história do negro no Brasil. (Marilourdes,

A partir das reflexões da professora, é possível apreender que o trabalho colaborativo favoreceu a emergência de práticas interdis- ciplinares na própria área de Linguagens – Artes e Educação Física – e na área de Ciências Humanas, bem como atualizou imagens de escolas apregoadas por Freire como lugares de convivências e encontros.

Ainda sobre a colaboração como pilar da educação escolar, a participação das famílias na escola é apontada neste texto como aspecto propulsor do sucesso das práticas educativas, visão que con- verge com estudos contemporâneos sobre a relação família e escola. (LAHIRE, 1997) Em todos os projetos, os pais foram incluídos como integrantes essenciais do grupo de trabalho. Foram realizadas reu- niões com as famílias para compartilhar objetivos e procedimentos gerais dos estudos, de modo que elas se corresponsabilizassem pelo ciclo pedagógico e pelas aprendizagens dos filhos.

Dois tipos de participação foram identificados no andamento das propostas didáticas. A primeira refere-se a ações da família vi- sando ao bom andamento dos trabalhos acadêmicos, do ponto de vista de incentivar os filhos no cumprimento das atividades e auto- rizá-los a participar de pesquisas de campo, além do acompanha- mento das produções dos estudantes em aulas públicas e em feiras educacionais na comunidade.

Nesse cenário, insurge uma cena pedagógica, na qual os pais da roça atuam como leitores críticos, revisores de texto, o que altera visões recorrentes sobre possíveis limitações de famílias menos es- colarizadas na educação forma, conforme excerto a seguir:

É importante ressaltar que todas as produções foram revisadas, pri- meiramente fazendo uma leitura de todas as produções, fazendo algumas anotações, em seguida fazíamos uma revisão coletiva do texto de um aluno, com a autorização do mesmo. A partir de então os alunos revisavam o seu próprio texto individualmente, passando a limpo, acrescentando as informações adquiridas para melhoria do texto. Os pais também foram parceiros importantes no momento

da revisão dos textos, pois os alunos eram orientados a ler os textos para os pais e, no momento desta leitura, os pais os ajudavam a or- ganizar melhor as ideias, sem alterar a essência do texto. Os pais puderam ajudar os filhos, pois o projeto foi apresentado a eles em uma reunião de conselho de classe. E eles puderam presenciar que valeu a pena ajudar os filhos em casa. (Janete, Ateliê, 2014)

Essa intervenção de Janete, ao propor a integração dos pais na atividade didática como leitores críticos, parece questionar o pre- ceito de que somente famílias com alto nível de escolaridade podem contribuir com a escolarização dos filhos. Esse posicionamento pode ser compreendido a partir de referências da Comunidade de Aprendizagem de ancoragem teórico-metodológica espanhola.12

Congruentes com o posicionamento pedagógico da professora, tais estudos legitimam a participação dos pais na gestão da escola, in- clusive nas aulas. Nesse sentido, importa menos o nível de escola- rização dos pais e mais o nível de comprometimento e os sentidos atribuídos a essa participação, visando à realização de práticas edu- cativas bem sucedidas.

O segundo tipo de participação se relaciona à participação de pais e mães da comunidade de modo geral, acionados, dessa vez, como fonte de informação e de pesquisa. Relatos orais, entrevistas e atividades de campo, a exemplo das entrevistas com agricultores e artesãos sobre as minifábricas de Iraquara, com familiares e Dona Laura na visita guiada ao Memorial dos Pires, no âmbito dos es- tudos sobre objetos antigos, constituíram-se em estratégias de investigação.

Nota-se que a busca da comunidade como fonte de informação, como recomenda a educação integral, é uma configuração pedagó- gica mais comum, ainda que de difícil realização, em cidades mais

12 Essa posição de Janete é congruente com princípios da Comunidade de Aprendizagem proposta, desenvolvida pelo Centro Especial de Investigación em Teorias y Prácticas Superadoras de La Desigualdad, da Universidade de Barcelona (CREA-UB).

urbanas, com diversidade de equipamentos culturais e com uma população com alto nível de escolarização. Em territórios rurais, en- tretanto, essa intervenção pode ser destacada como uma pequena revolução. Os relatos apresentam cenas nas quais comunidades de tradição iletrada são convocadas a ocupar o lugar de detentoras de um cabedal de conhecimentos fundamental para fazer avançar os conhecimentos escolares.

É possível tematizar tais cenas a partir dos estudos de Amiguinho (2008), que reconhece a educação rural como portadora de futuro e destaca como relações família/escola, comunidade/escola em ter- ritórios rurais, baseadas na partilha e colaboração, podem inspirar novos paradigmas para a educação no geral. É preciso romper com o contrato que trata as famílias pobres como grupos inferiores e desprovidos de saberes legítimos, portanto, incapacitadas de aden- trarem na escola como cogestores. Delineia-se nessa pesquisa um contrato didático-pedagógico pautado na sinergia entre educa- dores e comunidade, o que confere às famílias lugares de direito, de certo modo, na gestão da escola. Fazemos ainda alusão a reflexões do professor Antonio Nóvoa que antevê como cenário de futuro da educação a participação de pais cidadãos, ao identificar como ho- rizonte de expectativa o interesse das famílias pela escola, mesmo quando não se tem filhos nela. No território rural de Iraquara, é pos- sível vislumbrar esse cenário no tempo presente.

Finalmente, guardamos desse enquadre vestígios de pequenas revoluções de natureza ontológica e pedagógica em andamento. Destacamos que, diferente da cena escolar em que crianças ru- rais discriminam outras crianças rotulando-as de “tabaréu da roça” (RIBEIRO, 2014), reconhecemos na singularidade dessa relação es- cola/comunidade uma beleza incomensurável: educadores rurais valorizando as gentes rurais em uma sintonia fina com valores pla- netários de solidariedade e respeito às culturas. Nesse sentido, é mo- tivo de felicidade perceber nesse território algum enfrentamento da

ideologia hegemônica e sectária “dos comedores de nação” denun- ciados nas palavras do escritor africano Mia Couto. (2005, p. 224)

A comunidade-escola:

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