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em busca de conhecimentos prudentes

Além de ser uma escola aberta à participação dos pais, no con- junto dos dados, os professores compõem enredos pedagógicos que convocam a emergência de escolas itinerantes, que se lançam nas estradas. Os alunos invadem as comunidades rurais para apre- ciar paisagens, flora, produções econômicas do território rural, e para compartilhar as produções em feiras e praças públicas, a exemplo de livros de contos de assombração, esperteza, fábulas, além de realizarem exposições de objetos antigos em praças pú- bicas. Nessas práticas, a leitura, a escrita e a oralidade podem ser reconhecidas como fios que costuram identidades e culturas à es- cala da vida das crianças e dos professores.

A compreensão da escola como território educativo (CANÁRIO, 2004) e da comunidade como espaço-tempo educador são úteis para apreender visões e perspectivas docentes nessas práticas, a exemplo do depoimento da professora Ilzalúcia, ao destacar o es- tudo do meio realizado no âmbito do projeto “Resgate histórico de Riacho do Mel”, no excerto da narrativa abaixo:

Outro momento muito marcante para os alunos e para mim foi à visita ao memorial conhecido como Memorial dos Pires. É um minimuseu. Os alunos amaram o passeio. Ficaram entusiasmados, anotavam a idade dos objetos, fizeram uma festa. Dona Laura, uma senhora que cuida do memorial, fazendo um trabalho voluntário, não mede esforços para contar a história de cada objeto. O interessante é que

13 Nesse subtítulo, fazemos alusão ao bairro-escola Tecnologia Educativa, cunhado pela Instituição Aprendiz, na Vila Madalena, em São Paulo, que funciona a partir da ideia de cidades educadoras. Inspirou o Programa Mais Educação, política pública nacional em vigência.

tinha aluno que não conhecia outra comunidade além da sua, nem mesmo a cidade de Iraquara e para ele tudo era lindo. O meu obje- tivo da visita ao museu era para os alunos conhecerem o local onde são expostos objetos antigos, compreendendo a sua importância na preservação dos mesmos. (Ilzalúcia, Ateliê, 2014)

Ao propormos para a classe a visita ao minimuseu Memorial dos Pires, mais do que uma ampliação cultural e de investigação da his- tória da comunidade, objetivos relevantes por si só, a professora tira os alunos do lugar, ao acionar uma rede territorial até então invisível para eles. Os alunos adentram em mundos desconhecidos, ainda que próximos geograficamente, e ascendem a outros lugares como cidadãos. A imagem de alunos que vivem na zona rural de Iraquara, mas não conhecem a cidade, ou mesmo povoados próximos, me- rece destaque no âmbito de nossas reflexões. Destaca-se, sobrema- neira, o alcance inusitado desse projeto de letramento na vida dos alunos que têm, nessa atividade de investigação, sentidos cruzados de aprendizagens múltiplas: de si como cidadão, dos seus lugares de origem e das práticas de linguagem em contextos de estudo.

No conjunto dos dados da pesquisa, ser letrado implica co- nhecer o mundo e reconhecer-se nele de modo que a educação se revela como mais uma via para o desenvolvimento da condição humana (MORIN, 2000) e de ampliação da visão de mundo dos alunos. Princípios do “conhecimento pertinente”, sistematizados por Morin (2000) como um dos sete saberes para a educação, parecem condizentes com essa proposta pedagógica que gera um conheci- mento mais global sobre o lugar de origem dos sujeitos, a partir da apreensão de um conjunto complexo de saberes sobre o mundo social, cultural e histórico. As explorações aos locais turísticos da região da Chapada Diamantina, os estudos realizados nas minifá- bricas de farinha, cana de açúcar e sisal, o estudo da flora nativa

in loco, são reconhecidos como estratégias de contextualização de

práticas de letramento, indexalizadas à cultura das comunidades, às quais se somam dimensões existenciais dos alunos.

O conceito de letramento que daí emerge ultrapassa as dimen- sões instrumentais da leitura e da escrita, ou, ainda, orientações consensuadas nos estudos didáticos mais avançados sobre a lei- tura crítica, sobre a escrita com finalidade comunicativa, dentro do gênero. O que adianta saber ler e escrever e não sair do lugar? Ademais, é importante reaver essa discussão na perspectiva da re- lação leitura e escrita, para a qual me servirei da história contada por Fabre (2011, p. 223):

Em 1920, morre num hospital militar de Toulouse [...] Jean- Pierre Baylac. Tem vinte anos e desde que deixou a escola aos dez, é pastor em sua casa, em Sarrat de Bou, na região de Campan. Deixa, como único bem pessoal, uns sessenta cadernos, seis mil páginas de fina escrita, começadas muito cedo, após a leitura de Anatole France, numa coletânea de trechos escolhidos; é isso, ao menos, o que escreve em ou- tubro de 1919, ao próprio escritor:

– Um dia, tinha oito anos, li algumas páginas do seu livro [...] A alma radiosa da natureza que balançava em cada idéia, pe- netrou-me e, desde esse dia, jamais parei de escrever. Com efeito, para ele, a escrita é a forma acabada de toda leitura.

Ampliamos essa ideia do pastor de que se lê o mundo para es- crever a vida com Chartier (1994, p. 9), ao afirmar que “os cria- dores, os poderes ou os experts sempre querem fixar um sentido e enunciar a interpretação correta que deve impor limites à leitura (ou ao olhar). Todavia, a recepção também inventa, desloca, dis- torce’’. Buscamos esse prisma para dizer que o importante no le- tramento escolar é o que as crianças podem fazer com e a partir das letras, visando à apropriação de um conhecimento capaz de se transmutar em alguma reinvenção do mundo e de si, tramado como conhecimento emancipatório. São práticas que se situam para além do simples fenômeno de conformação cultural (HEBRÁRD, 2011, p. 43) em eventos de irrupção bem sucedidos. “De nada serve ter

aprendido a ler, e ler bem, se essa capacidade não se torna o núcleo de um hábito cultural novo”. (HEBRÁRD, 2011, p. 44)

No âmbito da comunidade-escola rural, ao refletir sobre os as- pectos relevantes do projeto “Aprendendo com as frutas nativas”, Antonia nomeia saberes compósitos e explicita aspectos teóricos da trama de conhecimentos prudentes – conhecimento cotidiano, científico e escolar – e suas ressonâncias na aprendizagem de todos os sujeitos envolvidos: professores, alunos e toda a comunidade.

Este trabalho na sala de aula foi muito significativo, aprendi muito com os estudos dos textos científicos, reativei o conhecimento sobre muitas frutas nativas que já havia se perdido com o tempo.

Este projeto despertou nos professores, alunos e comunidade, a reflexão sobre como o meio ambiente vem sendo degradado, de- vido à exploração exagerada de muitas destas frutas nativas ricas em nutrientes. Além de se tornarem alunos mais críticos, puderam compreender a importância deste conhecimento adquirido na vida de cada um e das futuras gerações. Vejo que o reconhecimento foi gratificante, pois obtivemos muitos aprendizados, e até hoje este projeto é lembrado na comunidade. (Antonia, Ateliê, 2014)

A formação desse aluno crítico a que se refere Antonia, a partir desse projeto de investigação, indica emergências do letramento emancipatório no conjunto de aprendizagens da leitura, escrita, ora- lidade, cujas ressonâncias alcançam a comunidade como um todo.