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A precariedade laboral: o “novo mundo” do direito do trabalho?

Capítulo IV – DIREITO À SEGURANÇA SOCIAL E DIREITO AO TRABALHO:

4.3. A precariedade laboral: o “novo mundo” do direito do trabalho?

O direito do trabalho é um direito jovem, surgiu há pouco mais de um século313, fruto da revolução industrial e em estreita ligação com o advento e posterior desenvolvimento do então sistema económico dominante, o capitalismo.

À semelhança do que sucede com o Estado social, também o direito do trabalho atravessa uma grave crise, cujo início está assinalado pela doutrina314 nos anos setenta do século XX, altura em que a Europa viveu uma profunda recessão económica, com uma subida muito acentuada da taxa de desemprego. Nessa época, surgiram várias vozes a criticar um pretenso excesso de garantismo e rigidez das normas do direito do trabalho, devido essencialmente a uma alegada dificuldade em despedir, às pesadas indemnizações que as empresas tinham que pagar aos trabalhadores em caso de despedimento e à desadequação dos horários de trabalho aos novos ritmos e necessidades do mercado de trabalho. Esta suposta rigidez das normas laborais seria a responsável, entre muitos outros “males”, pelas elevadas taxas de desemprego, pela falta de competitividade das empresas e pela segmentação do mercado de trabalho entre os trabalhadores com emprego estável, titulares de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, e os chamados trabalhadores precários, ou seja, os trabalhadores temporários, os “falsos” trabalhadores independentes, os contratados a termo, entre outros. Como forma de combater estes problemas do mercado de trabalho e modernizar o tecido empresarial, ao invés de se estender a proteção do direito do trabalho aos trabalhadores precários, optou-se por eliminar os direitos dos trabalhadores titulares de um vínculo laboral estável.

Estava, assim, dado o mote para se iniciar a chamada flexibilização do direito do trabalho, que começou a afirmar-se no último quartel do século XX, segundo a qual este ramo do

312 Ao abrigo da lei anterior, o Fundo de Garantia Salarial apenas assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até três

meses antes da respetiva prescrição (artigo 319.º, n.º 3 da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho).

313

Em Portugal, a primeira lei social apareceu em 14 de abril 1891, e visou a regulação do trabalho de menores e das mulheres em estabelecimentos industriais, bem como a higiene e segurança nas oficinas.

314 Vd. Leal AMADO, Contrato de trabalho, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, p. 25 e Maria do Rosário Palma RAMALHO, Da Autonomia

direito perdeu parte da sua tradicional função tuitiva ou tutelar, de proteção da parte mais fraca da relação laboral, e passou a ser concebido, sobretudo, como um instrumento ao serviço da promoção do emprego, do aumento da competitividade e do investimento. A forma encontrada pelo legislador para prosseguir este desiderato foi através da implementação do modelo da “flexigurança”315, vista como a adoção de uma legislação laboral mais flexível, centrada na proteção do trabalhador e não do posto de trabalho, e na diminuição da precariedade laboral, o que veio a culminar na publicação de sucessivos diplomas legais tendentes a instituir um novo modelo de compensações, a reduzir os acréscimos retributivos devidos pela prestação de trabalho suplementar, a flexibilizar os tempos de trabalho, a alterar o regime das férias e faltas, a agilizar o procedimento do lay-off, entre outras medidas 316.

Porém, contrariamente ao proclamado pelos defensores da flexibilização da legislação laboral, o que veio efetivamente a suceder no mundo do trabalho nos anos mais recentes com as referidas alterações legislativas foi o aumento do trabalho precário, a fuga ao trabalho subordinado, o surgimento de novos modelos de contratos de trabalho e a utilização massiva de outros já existentes 317, caracterizados por intensificarem a precariedade laboral, o recurso aos contratos de prestação de serviço para encobrir relações de trabalho subordinado, estes últimos com o objetivo de permitir o livre despedimento dos trabalhadores sem direito a indemnização e ilidir a responsabilidade dos empregadores perante a segurança social e a administração fiscal318. As situações de trabalho precário caracterizam-se por baixos salários, fraca proteção social, inexistência de benefícios sociais, elevados riscos em caso de doença e formas de trabalho que não conferem segurança no trabalho319.

Realçando os efeitos perversos da flexibilização do direito do trabalho, refere Leal Amado que “julga-se ser falaciosa a tese segundo a qual a flexibilização do direito laboral equivale, sic et simpliciter, a ganhos de eficiência do aparelho produtivo e, logo, a uma maior competitividade das empresas. A verdade é que, até hoje, a ciência económica nunca

315

Segundo Leal AMADO, Contrato de trabalho, obra cit., p. 38, a “flexigurança” assenta numa espécie de “triângulo mágico” de políticas de articulação e compatibilização entre i) flexibilidade acrescida em matéria de contratações e despedimentos (flexibilidade contratual, de “entrada e de saída”), ii) proteção social elevada (leia-se: adequada) no desemprego; iii) politicas ativas de formação, qualificação e emprego, propiciando uma transição rápida e não dolorosa entre diversos empregos.”.

316 Vd. Lei n.º 53/2011, de 14 de outubro, Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, Lei n.º 47/2012, de 29 de agosto e Lei n.º 69/2013 de 30 de

agosto.

317 Disso são exemplo os contratos de muito curta duração (artigo 142.º do CT), os contratos de trabalho intermitente (artigos 157.º e ss. do

CT), os contratos de trabalho temporário (artigos 180.º e ss. do CT), os contratos de trabalho a termo (artigos 139.º e ss. do CT) e os contratos de trabalho a tempo parcial (artigos 150.º e ss. do CT). Também se começa a verificar um recurso mais frequente à celebração dos chamados “contratos de estágio”.

318

Neste sentido, vd. Menezes LEITÃO, A precariedade: um novo paradigma laboral?, n Para Jorge Leite, Escritos jurídico-laborais, I Volume, Coimbra Editora, 2014, pp. 465.

conseguiu demonstrar a existência de uma relação causal entre o nível de proteção do emprego e as taxas de desemprego.” 320.

Para melhor compreender as recentes alterações introduzidas no direito do trabalho, importa ter presente que este ramo do direito mantém uma estreita relação com as políticas económicas e é um poderoso mecanismo de intervenção política, social e económica. Não ignoramos, como tal, que a tendência recente no sentido de diminuir a função tutelar tradicionalmente apontada ao direito do trabalho foi uma consequência da ideologia neoliberal dominante e do fenómeno da globalização da economia, que tiveram um impacto profundo nas relações laborais. Conforme salienta Menezes Leitão, a globalização da economia baseia- se essencialmente “no desenvolvimento tecnológico e tem conduzido ao aumento da produção, mas diminui a necessidade de mão-de-obra, o que tem aumentado o desemprego à escala mundial, e acentuado a precarização do trabalho, uma vez que os investidores exigem

um mercado de trabalho desregulado para proceder a investimentos”321. Com a globalização,

a legislação laboral de cada país passa a ter uma grande importância na decisão de investimento realizada pelos agentes económicos, sendo os países com legislação laboral mais rígida que mais dificuldades têm em atrair investimentos estrangeiros, ocorrendo muitas vezes a transferência de empresas para países com uma legislação laboral caracterizada por níveis mais baixos de proteção dos trabalhadores. É o chamado fenómeno da “deslocalização das empresas”.

A precariedade laboral tem ainda importantes consequências ao nível da segurança social, sendo um fator de pressão sobre a sustentabilidade do sistema público de segurança social322, devido ao aumento das “intermitências entre emprego / desemprego”, ao baixo nível salarial médio, à destruição de emprego permanente, à degradação das condições de trabalho, que faz aumentar o risco de ocorrência de acidentes de trabalho, ao tendencial aumento do período normal de trabalho semanal, ao aumento do subemprego a tempo parcial. Realça a Prof. Glória Rebelo que todos estes problemas associados à precariedade laboral põem cada vez mais em causa a sustentabilidade do sistema de segurança social, na medida em que, além de contribuírem para o empobrecimento das famílias e para a perda de confiança no futuro, aliados ao aumento dos horários de trabalho, retiram às pessoas a disponibilidade para contrair responsabilidades familiares e parentais, agravando o envelhecimento da população e a segmentação do mercado de trabalho.

320

Neste sentido, vd. João Leal AMADO, Contrato de trabalho, obra cit., p. 27.

321

Neste sentido, vd. Menezes LEITÃO, A precariedade, obra cit., pp. 457.

322 Neste sentido, vd. Glória REBELO, Trabalho e Segurança Social, Uma perspetiva Socioeconómica e Jurídica, 1.ª Edição, Edições

Perante o fenómeno da globalização, o direito do trabalho tem vindo a diminuir de forma acentuada os níveis de proteção conferidos ao trabalhador, assistindo-se a uma regressão nas condições de trabalho. A seguir esta tendência, refere Menezes Leitão, existe o “risco de cada vez mais as sociedades ocidentais começarem a adotar modelos sul-americanos, caracterizados pela diversidade, obscuridade e insegurança no trabalho e na vida das pessoas,

num movimento que Ulrich Beck denominou de “brasileirização do Ocidente”323.