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O direito à pensão como manifestação do direito à segurança social

CAPÍTULO I O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA SOCIAL –

1.10. O direito à pensão como manifestação do direito à segurança social

O campo das pensões de velhice é onde mais se discute a referida crise do Estado social. Na medida em que toca nos mecanismos da justiça intergeracional, a proteção na velhice constitui um dos aspetos fundamentais do sistema de proteção social, destinado a diminuir as “angústias da existência”.

Nos últimos anos, têm sido introduzidas alterações significativas no regime jurídico das pensões, nomeadamente no que respeita às suas regras de cálculo, passando a ser considerada toda a carreira contributiva para a determinação da remuneração de referência relevante para a fixação das pensões e adotaram-se medidas mais penalizadoras relativamente à antecipação da idade legal e às pensões antecipadas. Por outro lado, na sequência da recente crise económico- financeira, que se refletiu no aumento da carga fiscal, têm sido impostos aos pensionistas e

149 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos fundamentais, obra cit., p. 380, nota 69. 150

Vd. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013, p. 31, no qual se faz uma apreciação jurídico-constitucional da redução das pensões (de aposentação, reforma, invalidez e sobrevivência) previstas nas alíneas a), b), c) e d) do artigo 7.º do Decreto da Assembleia da República n.º 187/XII, tendo aquele órgão jurisdicional decidido pronunciar-se pela inconstitucionalidade dessas disposições, com base na violação do princípio da confiança. No mesmo sentido, vd. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 413/2014, p. 3476.

reformados, desde 2012, um conjunto de encargos especiais (contribuição extraordinária de solidariedade, redução do valor da pensão, entre outras), que se traduziram numa redução significativa do valor da pensão em pagamento.

A imposição desse sacrifício especial convoca a questão essencial que nos propusemos analisar neste trabalho, a de saber se a redução das pensões é suscetível de afetar o direito à pensão como manifestação do direito à segurança social, constitucionalmente garantido. O direito à pensão encontra consagração constitucional expressa no direito fundamental à segurança social, previsto no artigo 63.º da CRP, bem como no direito fundamental à segurança económica das pessoas idosas, previsto no artigo 72.º da CRP.

O sistema previdencial português funciona em regime de repartição, segundo o qual as contribuições e quotizações que dão entrada no sistema num dado momento vão servir para financiar as prestações que nesse mesmo momento estão a ser pagas, o que tem influência nas regras de cálculo da pensão, na medida em que as mesmas não têm que corresponder ao valor capitalizado do montante com que o beneficiário contribuiu para o sistema. No modelo de repartição, considerando a estrutura etária da população, as pensões de reforma correspondem a um processo de transferência de rendimentos da população mais jovem para a população mais idosa, constituindo os pensionistas um verdadeiro encargo para as camadas de população ativa, pois consomem bens e serviços para cuja produção não estão a contribuir. Este modelo tem reflexos diretos ao nível da sustentabilidade da segurança social.

Contudo, existe uma relação sinalagmática entre o acesso à pensão de velhice e o período prévio de contribuições, reflexo do princípio da contributividade, expresso no artigo 54.º da LBSS, e existe ainda a obrigação do legislador ter em consideração, na fórmula de cálculo da pensão, toda a carreira contributiva do beneficiário, nos termos do artigo 63.º, n.º 4 da LBSS. Todavia, como realça Luísa Andias Gonçalves151, o legislador não tem a obrigação de assegurar ao beneficiário a estabilidade dos rendimentos com que contava quando estava a trabalhar, ou seja, de manter o mesmo nível de rendimentos que o beneficiário tinha antes da reforma. Mas estará o legislador legitimado a diminuir o valor das pensões, eliminando os níveis de proteção social atingidos e muitas vezes pondo em causa o designado mínimo existencial?

Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que o montante das pensões poderá ser alterado em sentido mais exigente, desde que fundamentado em motivos válidos e apenas com efeitos futuros152.

A nossa jurisprudência tem entendido que o direito adquirido a uma pensão não equivale ao direito de exigir do Estado uma pensão de montante igual ou, pelo menos, equivalente ao valor da contribuição entregue durante a vida ativa do beneficiário, porquanto o sistema previdencial de segurança social assenta no modelo de repartição e não de capitalização. No âmbito das pensões, tem que haver necessariamente uma solidariedade intergeracional, na medida em que quem delas usufrui não contribui nesse momento para o seu financiamento, e dessa solidariedade depende o bom funcionamento do sistema153.

Neste sentido, o Ac. do TC n.º 187/2013 refere que “os atuais pensionistas auferem pensões que são financiadas pelas quotizações dos trabalhadores no ativo e pelas contribuições das respetivas entidades empregadoras (artigo 56.º da mesma Lei), de tal modo que não pode considerar-se que as pensões de reforma atualmente em pagamento correspondam ao retorno das próprias contribuições que o beneficiário tenha efetuado no passado.”.

Ainda sobre a questão que nos ocupa, o Ac. do TC n.º 413/2014 referiu que a jurisprudência constitucional portuguesa tem entendido que os “requisitos exigidos para se adquirir o direito à pensão, bem como as regras de cálculo ou a quantia efetiva a receber, ainda que cobertos pelo princípio da proteção da confiança, poderão ceder, dentro de um limitado condicionalismo, perante o interesse público justificativo da revisibilidade das leis.”154.

Esta posição já tinha sido defendida no Ac. do TC n.º 187/2013, relativamente à norma da Lei do OE de 2013 que suspendeu parcialmente o pagamento do subsídio de férias de aposentados e reformados, tendo o TC entendido nesse aresto que o reconhecimento do direito à pensão e da tutela específica de que ele goza não afastam, à partida, a possibilidade de redução do montante concreto da pensão. O que está constitucionalmente garantido é o

152 Vd. Gomes CANOTILHO e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, obra cit., p. 819, onde referem que a

“Constituição é omissa sobre o sistema de pensões e prestações do sistema de segurança social, bem como sobre os critérios da sua concessão e do seu valor pecuniário, ficando essa matéria na livre disposição do legislador, observados os princípios constitucionais pertinentes (igualdade, proporcionalidade, etc.). Isso inclui o direito de alterar as condições e requisitos de fruição e de cálculo das prestações (designadamente das pensões) em sentido mais exigente, desde que por motivos justificados (nomeadamente a sustentabilidade financeira do sistema) e desde que isso só valha para o futuro (proibição de retroatividade das restrições de direitos fundamentais)”.

153 A este propósito, refere o Ac. do TC n.º 413/2014 que “o sistema de pensões assenta num princípio de repartição e não de capitalização,

com a consequência de serem os atuais empregados a financiar com as suas quotizações as pensões em pagamento, (pelo que) tornou-se necessário, na perspetiva do legislador, repartir os custos pela geração de pensionistas e de trabalhadores, dando concretização prática a um princípio de equidade intergeracional”.

direito à pensão, não o direito a um certo montante, a título de pensão. Esta posição foi validada pelo TC quer estejam em causa direitos a constituir cobertos por certas expetativas juridicamente tuteladas, como é a situação dos futuros pensionistas, o que foi objeto de análise no AC. do TC n.º 3/2010, quer se tratem de direitos já constituídos, ou seja, de posições jurídicas de cidadãos que adquiriram definitivamente o estatuto de pensionistas, com um conteúdo perfeitamente definido pelas regras legais em vigor, no momento relevante para o seu cálculo, questão esta que foi, por sua vez, analisada no Ac. TC n.º 187/2013. Em qualquer um dos casos, entende o TC que está em causa um interesse público relevante – a necessidade de garantir a sustentabilidade económico-financeira do Estado e do sistema de pensões. Esta linha de entendimento esteve ainda presente no Ac. do TC n.º 862/2013, quando apreciou uma lei que visava a convergência entre pensões do sistema geral de segurança social e a CGA, diploma esse que estabelecia para os atuais beneficiários a redução e o recálculo do montante de pensões de aposentação da CGA e de pensões de sobrevivência fixadas nos termos do Estatuto das Pensões de Sobrevivência.

Neste caso, entendeu igualmente o TC que a CRP não fixa, com caráter de regra suscetível de aplicação direta e imediata, o sistema de pensões e demais prestações do sistema de segurança social, assim como os critérios da sua concessão e respetivo valor pecuniário, antes cabe ao legislador ordinário, em função das disponibilidades financeiras e das margens de avaliação e opções políticas decorrentes do princípio democrático, modelar especificamente esses elementos do conteúdo das pensões. Nestes termos, a linha orientadora do TC tem sido no sentido de que o reconhecimento do direito fundamental à pensão não significa que se defenda o direito a uma determinada pensão, ou seja, uma absoluta intangibilidade do direito à pensão, mas sim a de que o direito em apreço, por força da consagração constitucional de que goza, beneficia da proteção específica conferida pelos princípios estruturantes do Estado de Direito, como sejam os da proteção da confiança ou da proporcionalidade, apenas podendo ser suprimidos ou diminuídos com observância destes princípios. O legislador não está proibido de alterar a forma como materializa o direito à pensão, podendo alterar ou mesmo reduzir o seu valor, tendo em conta a evolução das circunstâncias económicas ou sociais, está é proibido de eliminar o instituto jurídico da pensão de reforma, aposentação, invalidez e sobrevivência, bem como o seu conteúdo essencial.

Quanto a esta questão, salientamos a crítica feita por Jorge Reis Novais à posição seguida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013, o qual refere que a jurisprudência do Tribunal Constitucional parece defender que o legislador disporia de capacidade para diminuir uma retribuição ou uma pensão de aposentação, mesmo que intensamente, sem que tal facto

configurasse uma restrição a um direito fundamental. De facto, perante a redução das pensões previstas nas normas cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecia naquele aresto, entende este órgão jurisdicional supremo que o direito à pensão não teria sido afetado na medida em que o texto fundamental garante o direito à pensão mas não o quantum da pensão, pelo que, para além do que fosse considerado o patamar mínimo da subsistência, o direito fundamental à pensão não seria resistente à lei ordinária, ou seja, estaria no poder de livre disponibilidade do legislador ordinário, sem que a atuação deste último se pudesse considerar restritiva de direitos fundamentais155. Defende antes este autor que, se a Constituição diz que “todos têm direito à segurança social” e se este é um direito fundamental, então “deve ser tratado como resistente à lei como um todo” e não apenas restrito à sua dimensão de direito a um mínimo de subsistência condigna. O bem constitucionalmente protegido é o direito à pensão, mas a pensão só existe num quantum, pelo que, se este último não estiver protegido, a pensão também não está. O autor refere ainda que o direito à pensão pode ser restringido, limitado ou afetado desvantajosamente, mas que, para o fazer, o Estado tem que dispor de uma justificação suficientemente forte e indiscutível que obrigue um direito fundamental a ceder e tem que observar os princípios constitucionais aplicáveis. Ainda que não haja, como vimos, no sistema de segurança social uma contrapartida exata entre a medida da contribuição e o valor da pensão, existe, contudo, uma relação finalística, instrumental, sinalagmática entre a obrigação de contribuir durante a vida ativa e o consequente direito à pensão. Este facto retira à pensão fixada pelo Estado o caráter de pura liberalidade e confere-lhe, antes, a natureza de algo criado pelo esforço contributivo dos cidadãos, a natureza de algo que o Estado devolve aos anteriores contribuintes em função do quantum que estes lhe haviam entregado, não por opção livre mas por imposição do próprio Estado, por força da obrigação contributiva destinada ao financiamento deste tipo de prestações sociais e com vista à atribuição no futuro da pensão de reforma. Neste sentido, Reis Novais defende que o direito à pensão, considerado como contrapartida do esforço contributivo significativo que foi exigido ao seu titular durante a vida ativa, goza igualmente da proteção constitucional conferida pelo direito de propriedade privada156.

155 Neste sentido, vd. Jorge Reis NOVAIS, O Direito Fundamental à Pensão de Reforma em Situação de Emergência Financeira, revista E-

Publica, Revista Eletronica de Direito Público, Número 3, Special Issue, 2014, disponível no endereço eletrónico http://e-publica.pt/direitos- sociais.html.

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Digno de nota é o facto de, nas ordens jurídicas onde não existe um específico direito fundamental à segurança social, o direito à pensão ser protegido, a título principal, pelo direito fundamental de propriedade, como acontece na Alemanha e no sistema da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conforme referido por Jorge Reis Novais, O Direito Fundamental à Pensão, obra cit., p. 11.