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A preclusão da prova versus visualização da audiência de julgamento

Parte II – Análise ao acórdão do STJ de 29 de outubro de 2008: Estudos da Psicologia

4. A preclusão da prova versus visualização da audiência de julgamento

De acordo com o artigo 364º do CPP “A documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual”, no entanto o disposto do artigo 328º nº6 do CPP assegura que “O adiamento não pode exceder os trinta dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada”. Mas como vimos ao longo deste trabalho, após breves instantes a memória humana encontra influência no tempo e nas interferências (experiências anteriores ou posteriores a um determinado evento). Ou seja, no momento da aquisição de novas informações, estas influências condenam a fiabilidade da memória humana, e ainda porque as informações codificadas são interpretadas de acordo com as emoções, os sentimentos, as crenças, os conhecimentos e associações daquele momento

O tribunal, antes que a prova precluda, pode consultar toda a prova que foi prestada em sede de julgamento, inclusive a visualização da prova gravada pelos meios indicados no artigo 364º do CPP, avivando assim a memória do julgador. Logo a visualização ou audição da prova, permite ao julgador avivar a sua memória, na medida em que lhe fornece pistas ou indicadores sobre a informação desejada. Existem estudos que mostram que quando há pistas ou indicadores sobre a informação pretendida, os resultados são melhores quando comparados com a evocação sem pistas. É sabido que há mais informação retida do que aquela que é possível recordar, ou seja, muito possivelmente a maior limitação da memória humana não é em termos de retenção, mas

em termos de recordação106. Este fenómeno designa-se por “instabilidade do

esquecido”, de acordo com Sílvio Lima (1928)107. Os processos de recordação implicam

que haja a retenção da informação na memória e incluem processos explícitos ou diretos (evocação e reconhecimento) e processos implícitos ou indiretos (reaprendizagem, completação de palavras e ativação). Numa análise aos tipos de prova de memória é possível verificar que as pistas são um elemento benéfico para uma maior recordação da informação fornecida. Neste trabalho serão apenas focadas as provas de memória

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Pinto, A. “Psicologia Geral”. Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 107

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explícita, uma vez que, estas provas são típicas da memória episódica e é esta memória que interessa ao trabalho em concreto.

A memória episódica relaciona-se com acontecimentos pessoalmente vividos enquadrada nas suas relações temporais, e traduz-se na evocação consciente e voluntária

de um evento, episódio ou informação108. As provas explícitas de acesso à informação

retida na memória são constituídas por dois tipos de prova: a evocação e o

reconhecimento. Baddeley (1997)109 propõe que a prova de evocação é um processo

mnésico que envolve duas formas:

 trazer à memória de trabalho a informação que se julga ser

relevante naquele momento;

 seleção da informação relevante para a memória de trabalho.

Este processo mnésico implica ainda dois componentes:

 um baseado na perceção de familiaridade do item a recordar;

 outro baseado na recuperação das características desse mesmo

item .

A evocação exige do sujeito mais atenção e recursos cognitivos quando comparada à prova de reconhecimento, pois envolve um maior apoio na busca da informação retida na memória.

Relativamente à prova de reconhecimento, esta traduz-se pela apresentação inicial de uma lista de cerca de vinte palavras ou mais, que podem ser frases, sons, imagens, rostos, seguida por uma nova apresentação das mesmas palavras com outras novas misturadas com um número semelhante às anteriores. Este tipo de prova usualmente apresenta-se sob o formato de respostas “sim ou não”, e o que se pretende é que o sujeito consiga identificar as palavras iniciais quando se fornece uma lista de palavras misturadas entre as iniciais e as posteriores, isto é, o acesso à informação/

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Campos, T. et all. “Testes de memória explícita em pacientes com acidente vascular encefálico: implicações para a prática clínica”. Revista Ciências médicas e biológicas, vol. 13, nº2, 2014, pp. 187-193.

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Autor cit in Albuquerque, P. & Sousa, C. “A fiabilidade do testemunho ocular: efeito da valência do episódio e da ordem de realização de duas tarefas mnésicas”. Psicologia: teoria, investigação e prática, vol.1, 2006, pp. 45-56.

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palavra pretendida dá-se através de uma identificação positiva das palavras inicialmente apresentadas. Neste tipo de tarefa é necessário que haja a presença de distratores para que a tarefa seja discriminativa, o que possibilita a indução de falsas memórias, logo quantos mais distratores maior é o índice de falsos positivos. Por exemplo, no tipo de prova por reconhecimento sequencial em que os suspeitos são apresentados um de cada vez, é pedido à vítima ou testemunha que antes de ver o próximo suspeito, responda se foi ou não o autor do crime. Assim, este tipo de prova permite à testemunha fazer um julgamento absoluto, comparando cada suspeito com aquilo que releve na sua memória, reduzindo a sugestionabilidade e aumento da confiança na testemunha. Também avisar a testemunha que o suspeito pode não estar presente na prova de reconhecimento sequencial, reduz a probabilidade de identificação equivocada.

As emoções afetam o julgamento e a atribuição da culpa interferindo na forma como as informações são codificadas. Interferem no processo mnemónico afetando positivamente no momento da recuperação da informação, quando esta tem um conteúdo violento. No âmbito penal, a maioria dos eventos testemunhados e posteriormente trazidos a tribunal, carregam consigo uma carga emocional significativa. As investigações têm mostrado que os episódios emocionais são menos acessíveis à recordação quando os sujeitos são colocados sob provas de evocação. Em contrapartida, quando são fornecidos aos sujeitos várias pistas de recuperação, o índice de acertos é maior. Concluindo-se novamente que o fornecimento de pistas permite ao indivíduo recordar com maior exatidão determinado evento. Os estudos que comparam as provas de evocação e reconhecimento revelaram que o desempenho na prova de evocação

situa-se nos 40% e na prova de reconhecimento nos 80% 110. Sousa e Albuquerque

(2006) 111 realizaram um estudo sobre o efeito que o conteúdo emocional (emocional

versus neutro) de um episódio observado ao vivo tem na capacidade de recordação, medida através de provas de evocação livre e de reconhecimento. Este estudo foi aplicado a 81 estudantes do ensino superior. O estudo concluiu que “a realização prévia de uma tarefa mnésica fornece aos participantes a possibilidade de exposição a unidades de informação corretas”. Relativamente aos resultados obtidos nos dois tipos de prova,

110 Pinto, A. “Psicologia Geral”. Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 111

Autor cit in Albuquerque, P. & Sousa, C. “A fiabilidade do testemunho ocular: efeito da valência do episódio e da ordem de realização de duas tarefas mnésicas”. Psicologia: teoria, investigação e prática, vol.1, 2006, pp. 45-56.

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na prova de reconhecimento o desempenho mnésico dos sujeitos para o evento emocional é mais positivo; no que respeita à tarefa de evocação, esta parece ser mais benéfica para os sujeitos do episódio neutro. Campos, Melo, Brasileiro & Galvão (2014)

112 elaboraram um estudo onde compararam o desempenho de pacientes com acidente

vascular encefálico e saudáveis em testes de memória explícita, de acordo com o tipo de evocação e reconhecimento. Apesar de não ser relevante para o trabalho a compreensão dos resultados nos pacientes, tanto neste grupo como no grupo saudável a média de

acertos é menor na evocação livre do que no reconhecimento. Cycowicz (2001) 113

estudou o desempenho da memória em testes com figuras de objetos em sujeitos saudáveis e concluíram que havia um menor número de acertos e maior tempo de reação na evocação do que no reconhecimento, o que pode estar relacionado com o facto de a evocação requerer maior processamento do que o reconhecimento e por conseguinte maior atividade neuronal.

Com estes estudos é possível concluir que a informação retida é melhor recordada quando há o fornecimento de pistas, como acontece com a prova de reconhecimento, e para eventos com carga emocional o desempenho mnésico é maior neste mesmo tipo de tarefa. Pode-se assim deduzir que a recordação deliberada de um determinado evento que a testemunha presenciou potencia mais falsos positivos, ou seja, falsas memórias e portanto é mais benéfico o julgador auxiliar-se dos depoimentos em ata e visualização da audiência de julgamento como forma de recuperação da informação retida na memória. Pode-se mesmo afirmar que as imagens têm uma relação intrínseca com a memória e que a sua visualização permite comunicar com maior

facilidade com memórias desvanecidas. Kossoy (pp. 155, 2001) 114 afirma que “o

fragmento da realidade gravado na fotografia representa o congelamento do gesto e da paisagem, e portanto a perpetuação de um momento, em outras palavras, da memória, memória do indivíduo, da comunidade, dos costumes, do fato social, da paisagem urbana, da natureza”.

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Campos, T. et all. “Testes de memória explícita em pacientes com acidente vascular encefálico: implicações para a prática clínica”. Revista Ciências médicas e biológicas, vol. 13, nº2, 2014, pp. 187-193.

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Autor cit inCampos, T. et all. “Testes de memória explícita em pacientes com acidente vascular encefálico: implicações para a prática clínica”. Revista Ciências médicas e biológicas, vol. 13, nº2, 2014, pp. 187-193.

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Autor cit in Dallago, S. “A relação entre fotografia e memória na obra de Marcel Proust”. I Seminário Nacional em Estudos de Linguagem, 2010.

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CAPÍTULO II

Durante muitos anos a decisão sobre a credibilidade de uma determinada pessoa ficava a cargo de instâncias divinas, os sujeitos eram condenados consoante o que o juízo de deus lhes tinha para oferecer. Por exemplo, nos ordálios, mais concretamente nas provas de água, atirava-se o acusado a um rio, e caso ele flutuasse era considerado culpado. Foram várias as maneiras de provar a credibilidade de um testemunho ao longo da história nos vários continentes. Denotava-se uma preocupação constante na qualidade dos depoimentos e dos testemunhos.

A primeira aproximação entre a psicologia e o direito surge no final do século XIX, através da Psicologia do Testemunho, tendo como principais teóricos Neumann,

Kraepelin, Binet e Stern115. Nesta primeira análise, pretendia-se verificar a fidelidade de

um testemunho pela avaliação dos processos internos que podiam dificultar a veracidade. Já nesta altura chegaram a conclusões que na atualidade ainda são validadas, tais como:

 O erro é um fator constante nos depoimentos;

 Os erros são menos frequentes nos relatos espontâneos;

 As perguntas e as respostas devem ser consideradas em

conjunto;

 Devem ser evitadas as perguntas capciosas/ sugestivas116;

Freud, importante psicanalista, também desenvolveu alguns estudos sobre o processo mental de formação da decisão nos juízes. A questão da mentira no testemunho tem sido um dos grandes temas de estudo da psicologia, desde que os estudos sobre a memória têm surgido em grande abundância. Os estudos sobre a memória sugerem sempre que um testemunho sem erro é uma exceção, uma vez que o erro surge quando são solicitadas informações de um determinado acontecimento. É um processo normal, e que na maioria das vezes, não deve ser encarado como um falso testemunho. “A partir dos anos 70 os psicólogos começaram a levar as suas

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Ribas, C. “A credibilidade do testemunho: a verdade e a mentira nos tribunais”. Dissertação de mestrado, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Porto, Portugal, 2011.

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contribuições aos tribunais, introduzindo, nos procedimentos legais, as descobertas feitas em centenas de estudos sobre a natureza da memória. Hoje, em praticamente todo o mundo ocidental, o funcionamento da memória das testemunhas, vítimas e autores de delitos e a sua implicação jurídica, são de grande importância para a ciência criminal,

tendo em vista a sua aplicação na prática judiciária117”.

Parte I – Reflexão ao artigo 328 do CPP: o princípio da imediação