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4.2.1 Elementos fônicos

4.7. A presença do bestiário

Jerônimo abre o texto de sua Apologia com a invocação de seus inimigos hereges e heresiarcas sob a imagem de cães com as grandes línguas que lambem o sangue derramado355, texto que encontramos no salmo 67. Utilizando um processo de apropriação deste salmo, nosso autor chama sobre si a sanha desses cães que ele denomina meus cães,

lingua canum meorum.

Podemos detectar a utilização do bestiário desde épocas bem remotas na tradição clássica pagã e na tradição bíblica. O termo bestiário traz em sua origem o vocábulo

bestia, que equivale ao nosso “bicho”, em sua oposição à racionalidade, à inteligência, à virtude, à fineza, a honestidade, dentre outros aspectos que aqui ressaltamos, de acordo com os exemplos de que trataremos neste item. O bestiário é um motivo que colabora com a veia satírica de nosso autor, que muitos especialistas consideram como a cara do “bom Jerônimo”, aspecto em que mais sentimos a presença e o espírito do inimigo das heresias e dos hereges, e nesse sentido um instrumento formal, um elemento de seu estilo polêmico, a serviço de sua luta, de seu combate verbal contra a heresia.

Para lembrar a ocorrência da utilização polêmica do bestiário na tradição clássica e cristã, passamos a reportar o que nos diz Wilhelm Süss.356 Cícero em sua Oratio in

L. Pisonem chamou a este de burro, ovelha, porco e abutre. Tertuliano teve a graça de ter-se livrado do perseguidor que o perseguia, atribuindo-lhe a bela imagem de lula, que embaciava a água com a negra tinta tóxica, por ocasião de sua luta com Marcião e ter introduzido a lula como ferramenta polêmica. Do mesmo modo, Tertuliano refutou uma orientação herética gnóstica que contestava o significado do martírio, vista esta heresia sob a imagem do

355 O salmo 67, versículo 24, onde encontramos o texto citado na abertura da obra, remete-nos à leitura da

história do assassinato do rei Acab em I Reis 22, 38 que diz textualmente: “... ‘O rei está morto!’ Foi transportado para Samaria e lá sepultado. Lavaram o carro na piscina de Samaria, os cães lamberam o sangue e as prostitutas ali se banharam, conforme a palavra que Yahweh pronunciara...”

escorpião; Tertuliano acabou dando à refutação o título de Scorpiace, isto é, o remédio contra a picada do escorpião. Que os hereges são feras selvagens mostra-nos o título da obra do bispo Epifânio, Panarion, isto é, as classes de remédios. Na tradição bíblica podemos encontrar um rico modelo na Arca de Noé, elemento no qual podemos reconhecer e justificar as escolhas e a inspiração de Jerônimo na zoologia por assim dizer sacra da Bíblia. A fábula de Esopo e seu tradutor latino Fedro, o mito grego e a sua apropriação pelos provérbios ou expressões proverbiais, ao lado da tradição bíblica, são fontes do imaginário que podemos detectar na Apologia, aqui identificados em sua utilização polêmica.

Comecemos pela figura do asno. Expressões colhidas em Cícero apontam para a oposição deste animal à aquisição da leitura e à capacidade literária.357 É no contexto de seu discurso sobre a memória e a persistência de elementos que fizeram parte da vivência quotidiana dos indivíduos, no primeiro livro de sua Apologia, que Jerônimo assinala que “até mesmo os asnos são capazes de reconhcer o caminho por onde passaram, em uma segunda passagem pelo mesmo caminho”.358 Já no segundo livro de sua Apologia, a exclamação de Jerônimo “asino uidelicet lyra!” realiza o amálgama de uma expressão que Jerônimo teria retirado de uma epístola de Horácio359, que pode ser encontrada também em Zenóbio360, com o que Jerônimo havia elaborado na epístola 27.361 Ao final, o efeito é de desqualificação do adversário com a interposição da imagem do asno para o adversário e a sobrevalorização de si mesmo, pelo volume literário que a utilização do provérbio rendeu a nosso autor.

Quanto à figura do corvo, do qual Jerônimo toma as características de longevidade, de visão penetrante, astúcia e tagarelice, a verificar pela citação que apresentamos em pé de página362, é possível afirmar que ela também traz um elemento desqualificador que é o aspecto vazio das palavras. Concaua verba é um aspecto destruidor, face a fronte austera e nariz enrugado, no caso, do adversário contra o qual luta nosso autor.

356 Tópico intitulado Zoologia polemica, no artigo Der Heilige Hieronymus und die Formen seiner Polemik,

editado em 1938 no periódico Giessener Beiträge zur Deutschen Philologie 60, p. 212-238.

357 Cícero, In L. Pisonem 30, 73: “...Quid nunc te, asine, litteras doceam? Non opus est uerbis sed fustibus...” 358 São Jerônimo, Apologia, p. 84: “...Etiam asini et bruta animalia, quamuis in longo itinere, nouerunt secundo

diuerticula...”

359 Horácio, Ep. 2,1, 199: “...Scriptores autem narrare putaret asello Fabellam surdo...”

360 Zenóbio, 5, 42: “...ονω τισ ελεγε µυθον, ο δε τα ωτα εκιϖει...” (Zenobios viveu no II século de nossa era,

foi contemporâneo do imperador Adriano, e escreveu uma coletânea de provérbios).

361 São Jerônimo, Epistolario (1993), Ep. 27,1, p. 273: “...asino quippe lyra superflue canit...”

362 São Jerônimo, Apologia p. 90-92: “...Quid austeritate frontis et contractis rugatisque naribus concaua uerba

A imagem do porco marca sua presença no primeiro livro da Apologia, ainda que não tenha uma utilização polêmica, no momento de uma alusão ao Testamentum Grunnii

Corocottae Porcelli, que é uma farsa grosseira, na qual o porco Grúnio, deixando a seus parentes e amigos seus próprios membros como herança, desperta gargalhadas barulhentas nos tempos de Jerônimo363. No segundo livro da Apologia, à menção dos cicures enniani364,

podemos entender por eles a figura do porco, pois assim nos explica Sérvio Mário Honorato, contemporâneo de Jerônimo e autor de comentários das obras de Virgílio.365 A apropriação da imagem do porco, nesse caso, serve a uma atitude irônica da parte de Jerônimo, que finge a ignorância dos herdeiros intelectuais de um povo sem uma epopéia fundadora, tal como a têm os gregos, com todos os atributos que podemos nela observar, e, por este motivo, aparentemente porcos, os porcos de Ênio. Ligados aos simplices, os cicures evocam normalmente a estupidez animal. Sendo esterco do porco Grúnio (isto é, Rufino), os origenistas, amantes do sublime, remetem seus adversários à animalidade carnal, como a imagem da “porca lavada que torna a revolver-se na lama” (II Pedro 2, 22).

Passemos agora à figura da raposa, fonte de astúcia e maligna virtude, fonte de enganos e dolos, decepções e fraudes. A raposa traz consigo sempre o perigo da sedução e do engano. Citada no terceiro livro da Apologia366, a raposa serve para configurar a louvação hipócrita de Rufino e, a este propósito, a raposa serve muito bem, e com o requinte do diminutivo em uulpicularum insidias.

O escorpião, a exemplo da serpente, guarda dentro de si poderosa peçonha e é símbolo do poder daninho da heresia, bem como as cantáridas, inseto venenoso, citados por Jerônimo no terceiro livro de sua Apologia. Como a serpente, o escorpião aparece numerosas vezes no texto bíblico, como cita W. Süss.367

363 São Jerônimo, Apologia, p. 50: “...Quasi non cirratorum turba Milesiarum in scholis figmenta decantent, et

Testamentum Suis Bessorum cachinno membra concutiat...”

364 São Jerônimo, Apologia, p. 128-130: “...sed nos, simplices homines et cicures enniani, nec illius sapientiam

nec tuam, qui interpretatus es, intellegere possimus...”

365 Sérvio, Geórgicas 3, 255: “...suem domesticum quem cicurem uocant...”

366 São Jerônimo, Apologia, p. 234: “...Vis scire totas argutiarum tuarum strophas et uulpicularum insidias, quae

habitant in parietinis, de quibus et Hiezechiel loquitur: Quasi uulpes in deserto prophetae tui, Israel (Ez. 13, 4; 33, 27)...”

367 Süss, Wilhelm, op. cit., p. 219-220: “...Durch unermüdliche Wiederholung hat Hieronymus eigentlich dem

Skorpion die gewalt seines Stachels genommen. Dieser selbst mag letzten Endes aus biblischen Stellen stammen, wie neben Ez. 2, 6 und Apoc. 9, 3 vor allen aus Luk. 10, 19 dedi vobis potestatem calcandi super serpentes et scorpiones...”

A tartaruga, cujo andar pesado deve sua lentidão ao peso dos pecados dos hereges368, é objeto de alusão de nosso autor, em flagrante apropriação satírica da imagem deste animal de movimentos vagarosos para desqualificar a imagem de seu adversário, carregando a imagem de Rufino também do pecado da heresia. Rufino é, a exemplo da tartaruga, alguém que “murmura”, e move-se apenas como uma tartaruga, em vez de avançar a passos mais rápidos. Pelo contexto próximo da citação que apresentamos, podemos inferir que o objeto do motejo satírico de nosso autor é a capacidade literária de Rufino, a qual estaria aquém do que seria desejável em sua época e contexto cultural.369

Por fim, vejamos a imagem da serpente que representa para Jerônimo a figura por excelência do herético, por causa do atributo de veneno que se dava a toda heresia. O animal de que falamos aqui aparece sob denominação de vários outros vocábulos tais como

anguis, aspis, coluber, excetra, serpens, uipera. A citação que transcrevemos em pé de página, que não menciona o animal de forma explícita, presentifica-o pelo elemento da sedução que podemos detectar no fim da citação. Podemos verificar aí a imagem da surdez diante do ser que seduz, verossimilmente a imagem de uma serpente, que nos traz à memória, por um lado, a tradição homérica, com a surdez virtuosa de Ulisses ao canto das sereias, e também a da tradição bíblica, com a reminiscência do tentador que se revestiu da forma de serpente.370

368 Antin, P., op. cit., p. 212: “...Testudo tardigrada et onerata, immo oppressa pondere suo, non tam ambulat

quam mouetur, haereticorum peccata significans...” (citação de In Osee 12, 11).

369 São Jerônimo, Apologia, p. 48: “...Tu qui in latinis mussitas et testudineo gradu moueris, potius quam incedis,

debes scribere ut, apud homines graeci sermonis ignaros, aliena scire uidearis, uel si latina temptaueris, ante audire grammaticum, ferulae manum subtrahere et, inter paruulos αθηνογερων artem loquendi discere...”

370 São Jerônimo, Apologia, p. 240: “...Illud autem quod tergiuersaris et dicis te ea transtulisse de graeco quae

ego prius latino sermone transtulerim, non satis intellego quid uelis dicere, nisi forte adhuc commentarios ad Ephesios criminaris et, quasi nihil tibi super hoc responsum sit, obduras frontis impudentiam nec auribus obduratis uoces recipis incantantis...”

5. CONCLUSÃO

Nosso percurso de leitura da Apologia de Jerônimo contra Rufino teve como escopo evidenciar nesta obra os aspectos literários do polêmico em suas definições de gênero literário, de intertextualidade e de estilo. Os resultados a que chegamos mostram-se positivos e, com isso, podemos dizer que a Apologia de Jerônimo contra Rufino caracteriza-se como polêmica, nos termos em que apresentamos a análise da obra de Jerônimo que elegemos como objeto de estudo, nos capítulos correspondentes aos tópicos literários que acabamos de citar (gênero, intertextualidade, estilo). Outrossim, recapitulemos, pois, em seus pontos essenciais, a análise que apresentamos nesta tese.

A pluralidade de modelos genéricos que descrevemos reflete a necessidade que tem Jerônimo de um instrumental variado que possa atender à situação paradoxal e delicada em que o colocaram o prolongado diálogo com Orígenes, a situação nova da condenação de Orígenes e todos os incidentes envolvendo a sua dissidência com o ex-amigo Rufino e tudo o que se seguiu a partir daí. À semelhança de armas, os variados gêneros prestam-se a inúmeras funções. Como apologia, a obra defende e engrandece seu próprio autor. A diatribe busca a moralização, a correção de costumes corrompidos pela mescla do sério e do jocoso, dando a Jerônimo o lugar de quem corrige, lugar que o põe em posição mais favorável em relação a Rufino, dando ao texto maior leveza no ato de moralização realizado por Jerônimo. O gênero judiciário é útil a Jerônimo para construir sua defesa, a partir das acusações que lhe chegam por notícias de amigos e, depois, pelo texto finalmente publicado. Às acusações Jerônimo responde com extrema habilidade: a de perjúrio, a de blasfêmia e a de hipocrisia. O gênero demonstrativo traz à tona o desastroso elogio de Rufino que não chegou a Jerônimo como benéfico, mas tocou, com o dedo, a ferida de Jerônimo, expondo-a de forma trágica. Defender-se a si mesmo e rechaçar o elogio pérfido, a essas finalidades servem estes dois gêneros literários. A sátira mostra-se eficiente instrumento para realizar a crítica social, pelo exorcismo verbal que expõe, aos olhos de todos, a nudez e a deformidade da sociedade eclesiástica de seu tempo. A epístola revela-se um instrumento adequado à comunicação e ao contato sem intermediários com Rufino, a fim de dissipar todos os agravos que deram origem ao texto da Apologia.

Em se tratando do capítulo acerca das relações intertextuais, cabe-nos observar que, sendo as relações intertextuais resultantes de um processo infinito e inacabado, e, portanto, capazes de suscitar reflexões que não podemos abarcar em limites restritos de tempo e espaço, nós decidimos abordar os casos de citação e as refutações. A citação dos autores clássicos concede a Jerônimo tanto um status de autoridade e sapiência, bem como é capaz de criar um clima de conivência cultural com os seus leitores, clima propício para entregar a seu público todas as questões de extrema gravidade de que Jerônimo mostra-se depositário. A refutação dos livros de Rufino é a matéria que enfatizamos como essencial nas relações intertextuais do texto de nosso autor, a Apologia. O combate aí se mostra pelo tratamento direto das acusações implícitas e explícitas por parte de Rufino, em diversos textos, de várias formas. A refutação é o recurso que cabe a Jerônimo, o método de que se vale em sua situação

polêmica (no sentido comum em que empregamos este termo hoje, século XXI), situação em

que necessita empreender a sua luta, o seu combate, a sua polêmica, para se safar do terrível estigma de heresia, do conluio com Orígenes que ele rejeita.

Por fim, o texto patrístico, com o qual caracterizamos a Apologia, pelo vínculo que estabelece entre a herança clássica e as necessidades de uma nova religião que constrói, historicamente, seu corpo de doutrina. AApologia de Jerônimo contra Rufino, obra polêmica, contribui para a construção histórica do corpo de doutrina da Igreja Católica, sob o signo da espada, no seio de polêmicas como essa, de Jerônimo e Rufino.

Em se tratando dos aspectos estilísticos, concluímos que a grande variedade de processos estilísticos contribui para criar o estilo adequado à expressão do polêmico. A língua latina que, na época de Jerônimo, já se havia adaptado aos grupos cristãos e à nova religião que crescia em importância e número de adeptos, vemo-la sob a pena de Jerônimo realizar um amálgama perfeito da herança retórica clássica, com todo o repertório de figuras, os modelos clássicos que ornam o texto, os motivos bíblicos que apontam para possibilidades futuras como vimos se desenvolver no modelo da cristandade medieval, e o bestiário que se verifica como realização formal da sátira. O estilo variado do texto da Apologia de Jerônimo contra

Rufino, que descrevemos, é solidário com a pluralidade de gêneros, no sentido de ser instrumento eficaz nas mãos do polemista Jerônimo, dando-lhe o modelo genérico necessário e suficiente à sua defesa e apologia, dando-lhe, também, os termos, os adornos, as evocações que são cabíveis a expressar o que sente, o que o emociona, o imaginário que o obceca.

Nos termos em que descrevemos a Apologia de Jerônimo contra Rufino é que concluímos que este texto de São Jerônimo contém amplos aspectos de polêmico. Já sabíamos da classificação deste texto em manuais de literatura latina e de patrística. Nosso estudo teve por objetivo desenvolver uma descrição para conhecer mais sobre este texto no aspecto polêmico e da polêmica cristã, de que é um exemplar. Concluímos o trabalho com a confirmação de nossas hipóteses, com a utilização de vários instrumentos literários de análise.

6. NOTAS

Neste trabalho de tese, adotamos o sistema de notas de rodapé, inseridas no corpo do trabalho, à medida que redigíamos o texto da tese. Consideramos, porém, de utilidade fazer algumas observações importantes não apontadas no decorrer do trabalho.

a) Textos latinos da coletânea da Patrologia Latina, editados no século XIX por J.-P. Migne são por nós citados tal como se encontram nessa fonte, conservando-se as idiossincrasias ortográficas aceitas como corretas na época, mesmo que, a partir da ortografia que se baseia na pronúncia restaurada, tivéssemos tido a possibilidade de adotar outros critérios para substituir, por exemplo, os jotas e os vês. O volume sétimo contém o tratado De

adulteratione librorum Origenis; o volume vigésimo primeiro, a Apologia in Sanctum

Hieronymum, de Rufino; o volume vigésimo sexto, os Commentariorum in Epistolam ad

Ephesios libri tres, de Jerônimo; o volume vigésimo terceiro, o Contra Iohannem

Hierosolymitanum, de Jerônimo.

b) O texto da Apologia de Jerônimo contra Rufino por nós adotado em todas as citações neste trabalho é o da edição francesa da “Sources Chrétiennes”, que foi levada a cabo por Pierre Lardet. Anexaremos fotocópia do texto desta edição no final desta tese. Demais dados desta ediçãopodem ser vistosna bibliografia.

c) A edição do texto das epístolas que utilizamos em nosso trabalho é uma recente edição espanhola, publicada pela Biblioteca de Autores Cristianos, a cargo de Juan Bautista Valero, na última década do século XX.

7. BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA