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O modelo da diatribe cínico-estóica

ASPECTOS GENÉRICOS DA APOLOGIA DE JERÔNIMO CONTRA RUFINO

2.2. O modelo da diatribe cínico-estóica

A diatribe não constitui um gênero definido tal como podemos chamar de gênero uma apologia, como assim caracterizamos o texto da Apologia de Jerônimo contra Rufino, embora esse texto não se esgote nessa classificação genérica, havendo, ainda, outras instâncias teóricas a serem consideradas para uma completa descrição do corpus em questão. O autor em quem buscamos informações sobre a diatribe é André Oltramare, em sua obra Les

origines de la diatribe romaine, datada de 1926.

A diatribe constitui, antes de tudo, um conjunto de procedimentos discursivos postos a serviço de algumas escolas filosóficas da antiguidade tais como o Cinismo, que constitui uma exacerbação de tendências do Estoicismo; a diatribe estaria também a serviço do Estoicismo, o qual, grosso modo, enfatiza o cumprimento dos deveres e prima por uma concepção de vida baseada na supressão do passional, do sentimental, e encoraja seus discípulos à perseverança e à coragem como atitudes válidas para enfrentar os revezes da sorte e as situações absurdas da existência humana; estaria a serviço também do Epicurismo, que, diferentemente do Estoicismo, aconselha a fruição e o prazer moderado como resposta válida para a necessidade de um sentido para a existência; a diatribe seria utilizada pelo Hedonismo, que representa uma exacerbação da busca do prazer, recomendando-o em níveis exagerados para trazer saciedade e satisfação absoluta. A diatribe, nesses casos, serve como

12 São Jerônimo, Apologia, p. 221: “...Noli multo auro redimere notarium, sicut amici tui de meis Peri Archon

schedulis nondum emendatis, nondum ad purum digestis fecerunt, ut facilius falsare possent quod aut nullus haberet, aut admodum pauci...”

linguagem apta a veicular a propaganda de tais escolas filosóficas que, geralmente, têm tendência a refletir sobre a questão humana em seu aspecto moral. A diatribe representa uma vulgarização do diálogo filosófico e vários são os gêneros nos quais encontramos essa prática discursiva: a fábula, por exemplo, é um excelente exemplo da literatura moralizante popular; o tratado de moral, qualquer que seja o tema sobre o qual se debruce o autor; a consolação, gênero que é excelente modelo para o discurso dos estóicos, floresceu sob a égide da filosofia estóica; a sátira, que sendo, igualmente crítica moralizante da sociedade, nutre-se de procedimentos próprios da diatribe.

Assinalemos pois os procedimentos. Primeiramente, o debate com um interlocutor fictício, ao qual dirige sua obra aquele que poderíamos chamar de autor ou diatribista. Este interlocutor não é detentor de uma personalidade suficientemente definida ou precisa, embora

a ele sejam dirigidas apóstrofes veementes a todo momento. O segundo procedimento é a utilização de truques retóricos que confere ao texto um ar de

grande vivacidade pelo emprego de expressões justas e sucintas; observa-se a tendência a tornar o texto um lugar de linguagem super-expressiva, com emprego de expressões virulentas, grosseiras e até obscenas. A habilidade oratória do autor tem por função agir sobre o público, influenciando sua opinião, seduzindo-o, ao modo das parêneses, discurso que exorta à virtude. O tom das exortações é sempre premente e sôfrego, o diatribista oprime o adversário com uma série de argumentos sem nexo lógico muito aparente. Observa-se nesse ponto o uso freqüente de diminutivos, citações de locuções populares e provérbios, metáforas, paralelismo das frases, hipérboles e as oposições verbais, em proximidade sintática e nível mais profundo ou pertencente à própria estruturação do discurso, e também a personificação das abstrações. O terceiro procedimento é a mescla do sério e do jocoso, que em grego seria denominada το σπουδογελοιον Personificando esta tendência, a figura do cão que morde e abana a cauda representaria o diatribista que ataca os vícios, mas gosta de brincar e divertir-se. O diatribista atenua de certa forma o caráter severo de sua crítica com o traço cômico ou satírico de seus jogos de palavras, suas homonímias, etEntre os principais temas diatríbicos podemos citar os temas de limitação e de crítica, que contêm os temas de natureza negativa, isto é, aqueles que se atêm ao fato de que a filosofia limita-se à moral e à crítica da moral vulgar; há também os temas de caráter positivo, os quais determinam a natureza do bem e do mal, e

isto se traduziria em termos concretos em tópicos sobre a virtude, o sábio e a maneira de como livrar-se do mal. Todos estes temas aplicam-se às mais diversas situações concretas

.

Podemos detectar na obra Apologia de Jerônimo contra Rufino os três procedimentos citados mais acima. Em primeiro lugar, na obra Apologia de Jerônimo contra Rufino, o interlocutor é fictício, isto é, simulado e convencional, uma vez que é a outra pessoa que Jerônimo dirige suas invectivas, é outro indivíduo o objeto de seus ressentimentos. Pamáquio e Marcela, estes interlocutores que sabemos haverem vivido junto a Jerônimo, na comunidade monástica de Belém, e também terem sido seus discípulos em suas buscas de uma melhor compreensão das Sagradas Escrituras, deles nada mais sabemos por meio do texto da

Apologia de Jerônimo contra Rufino, testemunhamos o vigor das apóstrofes dirigidas a esses interlocutores, procedendo da mesma forma Rufino em sua Apologia contra São Jerônimo quando elege Aproniano como interlocutor de suas invectivas contra Jerônimo. Por isso, seria proveitoso verificar alguns exemplos de apóstrofes nas quais podemos sentir a intensidade e a virulência com que carregam o vigor moralizante da diatribe.

No princípio do exórdio, Jerônimo justifica sua obra e expõe as razões que o levam a romper o silêncio que o condena a uma posição de desconforto e contrariedade se ele se acomoda ao silêncio. Pamáquio e Marcela são os interlocutores desse longo testemunho de Jerônimo, bem como os companheiros que lhe informam os atos e escritos de Rufino, aqui sendo nomeado com o prenome Tirano, emprego que reduplica em expressividade o caráter do opositor contra o qual tem que lutar e manifesta também o tom de todo seu discurso13. Mais adiante, tomado de um furor que nos lembra as apóstrofes ciceronianas dirigidas a acusados famosos como Verres ou Catilina, ou que, na terceira pessoa do plural, evocariam a deprecação do salmista diante de um inimigo coletivo, um exército, uma turba ou um perseguidor que se lança sem trégua contra o servo de Deus. Assim se manifesta Jerônimo: “Que ressentimento é esse? Por que se inflamam? Por que endoidecem? Porque repeli o simulacro de um panegirista? Porque eu não quis ser louvado por uma boca hipócrita? Por que, sob o nome de um amigo, desvendei as armadilhas de um inimigo?14

De uso antigo na diatribe cínico-estóica, Jerônimo utiliza em sua Apologia o modelo que ele toma em Cícero, em cuja obra podemos citar dois exemplos: o retrato de

13 São Jerônimo, Apologia, p. 6: “...Et uestris et multorum litteris, didici obici mihi in Schola Tyranni, a lingua

Catão no Pro Murena e o retrato de Verres no In Verrem. É comum que encontremos descrições do adversário no sentido de caracterizá-lo de modo pejorativo, com antonomásias, metáforas, ultrajes, ultrajes irônicos, comparações exageradas, descrições pejorativas, desqualificação irônica, uso de vocabulário vulgar, considerações sobre o estilo do adversário, chiste, palavras caricaturais, expressões proverbiais. Neste item, daremos exemplificações a cada procedimento que compõe o retrato do adversário.

Como exemplos de antonomásia, tropo ou figura de linguagem que consiste em pôr um apelativo ou uma perífrase no lugar do nome próprio, de modo que o apelativo remete imediatamente à pessoa a que o apelativo se refere, podemos citar a ocorrência na passagem apresentada: “Aristarchus nostri temporis” (lembra, por ironia, a pessoa de Rufino, que não tem a cultura filológica que teve Aristarco, que dirigiu a biblioteca de Alexandria e foi comentador de Homero) e reminiscências clássicas “quasi religiosus et sanctulus” (quando Jerônimo se queixa de ter que se defender com um “escudo” do “punhal” de Rufino o qual se cobria de devoção e santidade), satellites (os guardas ou cúmplices, por meio dos quais Rufino dava a ler ao mundo inteiro os livros que ele compunha contra Jerônimo), cereales et

anabasii tui (a menção rememora a solicitude de Ceres em busca de sua filha Prosérpina e aplica a idéia desta solicitude às pessoas que espalhavam nas diversas províncias os “infames” elogios de Rufino a Jerônimo.

Como metáfora, temos na abertura do texto da Apologia contra Rufino a metáfora de cães aplicada aos inimigos: “Didici obici in schola Tyranni, a lingua canum meorum ex

inimicis ab ipso, cur Perì Archôn libros in latinum uerterim.” (Eu soube que sou acusado na escola de Tirano – no caso Rufino – pela língua de cães de meus inimigos de ter traduzido em latim o Perì Archôn).

Há os ultrajes irônicos que têm sabor ciceroniano. Ao chamar Rufino de “hominem prudentissimum”15 , Jerônimo espanta-se que Rufino, em sua “grande perspicácia”, não tenha compreendido a técnica da sua explicação. Ironicamente, Jerônimo também o insulta com “uir sapientissimus, Romanae dialecticae caput”(o sábio por excelência e o chefe dos dialéticos romanos)16; “sapientiae columen et norma catonianae seueritatis” ( cume de

14 São Jerônimo, Apologia, p. 8: “...Quis est iste dolor? Quid aestuant? Quid insaniunt? Quod praeconem reppuli

figuratum? Quod nolui me subdolo ore laudari? Quod sub amici nomine inimici insidias deprehendi?...”

15 São Jerônimo, Apologia, p.72. 16 São Jerônimo, Apologia, p. 286.

sabedoria e norma de severidade catoniana)17; “inclytus syngrapheus”(ilustre escritor)18; “homo ueracissimus” (homem de grande veracidade)19; “homo seuerissimus” (homem de grande severidade) 20 ; “vetustissimus monachorum, bonus presbyter, imitator Christi,

dulcissimus amicus”(o mais velho dos monges, bom presbítero, imitador de Cristo, o mais doce amigo)21

As palavras de ultrajes que acusam o inimigo de estupidez e de falta de cultura e eloqüência se enquadram em um contexto de querela mais restrito e são utilizadas aqui para desqualificar as teses do adversário. A censura de estupidez aparece em formas variadas, chegando até mesmo a abranger em si a censura de loucura: “syngrapheus agrammatos,

procacitatem disertitudinem, et maledicere omnibus bonae conscientiae signum arbitraris” (tu, o letrado sem letras, que tomas a insolência por bem falar e a maledicência generalizada por sinal de boa consciência)22. Há, entretanto, partes de proposições relativas que se apóiam na fórmula do adversário, em parte, proposições principais que exageram conteúdos negativos do adversário, com alusões e insinuações, que, na classificação de Ilona Opelt (1973) denomina-se Satzschimpwörter, cujo sentido, em português, podemos reconstituir como fragmentos de frase de ultraje. Eis um exemplo: “Sed uolui ostendere ( condiscipulis tuis, qui

tecum non didicerunt litteras) quid per triginta annos in Oriente profeceris” (eu quis mostrar aos teus condiscípulos, que contigo não aprenderam as letras, por que viajaste por trinta anos no Oriente)23. Outro exemplo: “qui de uno pectoris sterquilinio et odorem rosarum et

foetorem profers cadauerum” (tu cujo coração como um único monte de esterco exalas ao mesmo tempo o odor das rosas e o fedor dos cadáveres)24.

A menção de traços de caráter negativos do adversário é um outro meio de atacá- lo, e encontramos com muita freqüência a desqualificação moral como traço deste procedimento, lembrando muitas vezes a linguagem jurídica. Vejamos alguns exemplos: “effrenata audacia”25; “effrenata temeritas”26; “foetor”27; “rabies”28; “apertissimum

mendacium”29; “mira tergiversatio”30 etc.

17 São Jerônimo, Apologia, p. 38. 18 São Jerônimo, Apologia, p. 26. 19 São Jerônimo, Apologia, p.238. 20 São Jerônimo, Apologia, p. 82. 21 São Jerônimo, Apologia, p. 216. 22 São Jerônimo, Apologia, p. 228. 23 São Jerônimo, Apologia, p. 228. 24 São Jerônimo, Apologia, p. 324.

Como desqualificação irônica podemos citar o modo pelo qual Jerônimo se refere à Apologia contra São Jerônimo, à qual nosso autor escreve uma refutação antes de lê-la: “eruditissimi libri”31 e “libri venustate attica”32 ou seja, livros eruditíssimos, livros de delicadeza ática.

Como chiste, podemos exemplificar com o fragmento seguinte, sempre com o intuito de desqualificar o adversário: “tantam habes graeci latinique sermonis scientiam, ut et

Graeci te latinum, et Latini te graecum putent”33 - tens tanto conhecimento do grego e do latim que os gregos te consideram um latino e os latinos, um grego.

O terceiro procedimento citado ou a mescla do sério e do jocoso encontra-se também presente no texto. Em vários momentos detectamos a tendência de Jerônimo ao sarcasmo, atitude que excede, em grau de acerbidade, a ironia. O texto da Apologia de Jerônimo contra Rufino nos desvela esses meandros quando Jerônimo aí alude ao elogio que lhe faz Rufino no prefácio de tradução, feita por Rufino, do Peri Archon, que soa muito mal aos ouvidos de Jerônimo, representando uma contrariedade para ver atribuído a si o exemplo de tradução que altere o teor do texto original em função de ocultar concepções heréticas. Assim se expressa com uma sentença, com toda concisão e caráter lapidar, que parece ser resultado de labor próprio e que carrega em si grande acerbidade de um sarcasmo: “O louvor simples e puro não se inquieta quanto à lealdade dos que ouvem.”34 Mais adiante, Jerônimo relembra jogos ou exercícios escolares aos quais ele próprio e seu interlocutor se aplicavam ou se aplicaram em algum tempo passado: “Vós nos vedes compreender sua sagacidade e que brincamos freqüentemente na escola da pregação irônica.”35

É notável também o jogo que se estabelece no parágrafo 13 do primeiro livro da

Apologia de Jerônimo contra Rufino, quando o diatribista Jerônimo alude ao fato de ter dito a Rufino em tom de brincadeira, ao estilo de Plauto, que era Barrabás o nome do mestre judeu

26 São Jerônimo, Apologia, p. 160. 27 São Jerônimo, Apologia, p. 286. 28 São Jerônimo, Apologia, p. 264.

29 São Jerônimo, Apologia, p. 104: “...Pudet me apertissimi mendacii...” 30 São Jerônimo, Apologia, p. 274.

31 São Jerônimo, Apologia, p. 218: “Sequarque uestigia propositionis tuae, seruans cetera illis eruditissimis libris

quos, antequam legerem, confutaui...”

32 São Jerônimo, Apologia, p. 14: “...tres contra me libros uenustate attica texuisse...” 33 São Jerônimo, Apologia, p. 228-230.

34 São Jerônimo, Apologia, p. 8 – “...Non est tam sollicita de audientium fide simplex et pura laudatio...”

35 São Jerônimo, Apologia, p. 8 – “...Videtis nos intellegere prudentiam eius et praedicationis diasyrticae strophis

de língua hebraica, com quem Jerônimo havia-se formado na língua que lhe permitiria empreender a tradução da Sagrada Escritura do hebraico para o latim. Rufino teria acreditado que o nome do mestre de Jerônimo seria mesmo Barrabás, e não Baranina como, de fato, era. Jerônimo atribui o fato de Rufino acreditar que o nome do mestre que Jerônimo conhecera no deserto era, de fato, Barrabás à carranca que Rufino reveste ao exibir uma seriedade caricatural, talvez apropriada a um “filósofo”36, termo que soa satiricamente no discurso de Jerônimo, já que, diante de tantos termos desqualificadores para a caracterização de Rufino, o termo não poderia ser tomado denotativamente, uma vez que acompanha uma visão irônica do diatribista em relação ao opositor Rufino.