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A refutação e a citação a partir da intertextualidade

O COMBATE REFUTATÓRIO E O ARSENAL CLÁSSICO: ASPECTOS INTERTEXTUAIS DA APOLOGIA CONTRA RUFINO

3.1. A refutação e a citação a partir da intertextualidade

Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes, reconhece cinco tipos de relações transtextuais, dentre elas a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade, a hipertextualidade e a arquitextualidade. Começando com o termo intertextualidade, criado por Julia Kristeva e lançado em sua obra Séméiotikè132, nomeia as relações de co-presença entre dois ou vários textos, e denominamos intertexto a presença efetiva de um texto no outro. A sua forma mais explícita e literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa); sob uma forma menos explícita e menos canônica, a do plágio, que é um empréstimo não declarado, mas ainda literal; sob forma ainda menos explícita e menos literal, a da alusão, um enunciado cuja plena compreensão supõe a percepção da relação entre um texto e outro. Tal estado implícito e algumas vezes hipotético do intertexto foi estudado por Riffaterre que assim define a intertextualidade (mais ou menos como Genette define a transtextualidade): “o intertexto é a percepção, pelo leitor, de relações entre uma obra e outras

que a precederam ou seguiram”133. Chega a identificar a intertextualidade à literariedade, como Genette o faz com a transtextualidade: “a intertextualidade é o mecanismo próprio à leitura literária. Só ela produz a significância, enquanto a leitura linear, comum aos textos literários e não literários, só produz o sentido”134. Mas as relações estudadas por Riffaterre são sempre da ordem de microestruturas semântico-estilísticas, na dimensão da frase, do fragmento ou do texto curto, geralmente poético. O traço intertextual, segundo Riffaterre, é mais (como a alusão) de ordem da figura pontual, do detalhe, do que a obra considerada em sua estrutura de conjunto, campo de pertinência das relações que serão estudadas por Genette.

A paratextualidade é constituída pela relação, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém o que se pode chamar de seu paratexto: títulos, subtítulos, intertítulos; prefácios, posfácios, advertências, notas marginais, infrapaginais, terminais; epígrafes; ilustrações; acréscimos ou sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, dando ao texto um comentário oficial ou oficioso, indispensável ao conhecimento do leitor, seja ele purista ou não. Exemplo: na sua fase de pré- publicação, o Ulisses, de Joyce, continha títulos de capítulos, evocando a relação de cada capítulo com um episódio da Odisséia: assim, “Sirenes”, “Nausicaa”, “Penélope”, etc. Logo na publicação, Joyce retira esses intertítulos. Pergunta-se: esses subtítulos suprimidos, mas não esquecidos pelos críticos, fazem ou não parte do Ulisses de Joyce? Até que ponto são eles importantes para a leitura da obra?

A metatextualidade é a relação de comentário que une um texto a outro texto de que se fala, sem necessariamente citá-lo, sem nomeá-lo. É a relação crítica. Muito se tem estudado “meta-metatextualmente”135 certos metatextos críticos e a história da crítica, como gênero. Mas é preciso ainda estabelecer o estatuto da relação metatextual.

A hipertextualidade é toda relação unindo um texto B (chamado por Genette de hipertexto) a um texto anterior A (chamado por Genette de hipotexto), sobre o qual o texto se enxerta de uma maneira que não é a do comentário. É uma noção de texto ao segundo grau, ou texto derivado de um outro texto preexistente. Citamos Genette quando afirma que “esta

133 GENETTE, G. (1982), p.8: “...L’intertexte...est la perception, par le lecteur, de rapports entre une oeuvre et

d’autres qui l’ont précédée ou suivie...”

134 GENETTE, G. (1982), p. 9: “...L’intertextualité est le mécanisme propre à la lecture littéraire. Elle seule, en

effet, produit la signifiance, alors que la lecture linéaire, commune aux textes littéraire et non littéraire, ne produit que le sens...”

135 GENETTE, G. (1982), p. 10: “...On a, naturellement, beaucoup étudié (méta-métatexte) certains métatextes

derivação pode ser ora da ordem, descritiva ou intelectual, na qual um metatexto fala de um texto”.136 Pode ser de outra ordem, em que B não fale de A, mas que não poderia existir como é sem A, do qual ele resulta ao término de uma operação a que Genette chama de transformação; o texto A é evocado mais ou menos manifestamente, sem que necessariamente se fale dele ou que seja citado. Exemplo: a Eneida e o Ulisses são dois hipertextos de um mesmo hipotexto – a Odisséia, comentando-a, mas através de uma operação transformadora; além disso, distinguem-se entre eles, por não serem o mesmo tipo de transformação. A transformação que conduz a Odisséia ao Ulisses pode ser descrita como transformação

simples ou direta: há a transposição da ação da Odisséia para a Dublin do século XX. A transformação que conduz a Odisséia à Eneida é mais complexa e mais indireta, apesar das aparências e da maior proximidade histórica, porque Virgílio não transpõe a ação da Odisséia: ele reconta toda uma outra história (as aventuras de Enéias e não de Ulisses), mas inspirando- se para fazê-lo no tipo estabelecido por Homero na Odisséia, ou como se disse através dos séculos, “imitando” Homero. A imitação é, sem dúvida, uma transformação, mas por meio de um procedimento mais complexo porque exige a prévia constituição de um modelo de competência genérica (aqui, o modelo épico), extraído da Odisséia e capaz de engendrar um número indefinido de atuações miméticas. Este modelo constitui, entre o texto imitado e o texto imitativo, uma etapa e uma mediação indispensáveis, que não são encontradas na transformação simples ou direta. Para transformar um texto, basta um gesto simples e mecânico, por exemplo, arrancar simplesmente algumas páginas; eis uma transformação redutora. Para imitá-lo, é preciso adquirir uma matriz ao menos parcial, a matriz do aspecto que se escolheu imitar. Virgílio, por exemplo, deixa fora de seu gesto mimético tudo aquilo que, em Homero, é inseparável da língua grega.

A arquitextualidade é a relação mais implícita e a mais abstrata. Trata-se de uma relação que só se articula através de uma menção paratextual (titular, como Poesias, Ensaio, O romance da rosa, ou infratitular: a indicação Romance, Narrativa, Poemas, que acompanha o título), puramente taxonômica. O gênero é somente um aspecto do arquitexto; a determinação do estatuto genérico de um texto não é tarefa sua, mas do leitor, do crítico, do público, que podem recusar o estatuto reivindicado através do paratexto: diz-se, portanto, que determinada tragédia de Corneille não é uma verdadeira tragédia. O que não diminui em nada a sua

importância, porque a percepção genérica orienta e determina o horizonte de espera do leitor e, portanto, a recepção da obra. O termo “arquitexto” foi proposto inicialmente por Louis Marin, para designar “o texto de origem de todo discurso possível, sua ‘origem’ e seu meio de instauração, mais próximo do hipotexto genettiano.137

Os textos refutados por São Jerônimo em sua Apologia contra Rufino, que aparecem também em títulos antigos como os livros de Rufino (aos quais Jerônimo se opõe ideologicamente aproveitando a ocasião, em que toma a palavra, para refutá-los convenientemente)138, caracterizam, como é da própria natureza da literatura, relações intertextuais, pois seria inaceitável que não se caracterizassem desse modo. O texto da Apologia, sendo réplica aos textos de Rufino, evidencia a estrutura de um diálogo, seja este cordial ou não, positivo ou negativo, não importando qual seja a significação desse diálogo. Desse modo, a refutação se coloca como uma modo de diálogo entre outras tantas possibilidades de diálogo entre os textos. O que percebemos a partir de nossa análise dos textos que enfocamos em seus aspectos intertextuais é que, a cada intervenção de nossos antagonistas, acrescenta-se aos textos um novo relevo, uma nova superfície de significação; dados novos acrescentam-se a um mesmo campo semântico, reproduzindo, neste sentido, o modelo da hipertextualidade, sendo possível detectar nesses textos camadas que são geradas a cada intervenção dos antagonistas no conflito, de modo que os textos se configuram como espécie de campos de batalha em que Jerônimo e Rufino travam seus combates, configurando-se o procedimento da refutação como o elemento essencial do combate, além de constituir o instrumento literário excelente para a construção do texto polêmico.

A citação é intertextualidade explícita. Nós defendemos o ponto de vista segundo o qual, nesta obra de Jerônimo, a citação tem uma utilização polêmica marcada como instrumento que garante ao polemista Jerônimo exibir cultura clássica e angariar para seu texto o olhar benevolente daqueles que aí encontram a expressão da conivência cultural em que todos foram formados na adolescência, como é o caso de Jerônimo e Rufino, formados na cultura latina, na escola de Donato.