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As citações de autores clássicos

O COMBATE REFUTATÓRIO E O ARSENAL CLÁSSICO: ASPECTOS INTERTEXTUAIS DA APOLOGIA CONTRA RUFINO

3.4. As citações de autores clássicos

A tradução da Apologia de Jerônimo contra Rufino, apresentada juntamente com o texto desta tese, traz grande parte das citações de autores clássicos que as edições mais antigas da obra que analisamos registram sempre da mesma forma (estamos falando das edições de Domenico Vallarsi, de 1767, a de J. Bareille, de 1878-1885, a de J.-P. Migne, de 1883 e a de Pierre Lardet, de 1983). Não cremos que esgotamos o assunto ao atribuir a cada citação sua origem, em nossa tradução; nem que as edições que consultamos o tenham feito. Acreditamos que todo texto comporta um número infinito de citações, sejam literais ou parafrásticas. Por outro lado, quando o texto não apresenta estas duas modalidades nas quais reconhecemos as citações, o aspecto da polifonia abrange várias outras espécies de citação que acabam por dar ao texto o estatuto de um lugar de um número infinito de citações.

Importa saber neste item qual função tem a citação dos autores clássicos na obra que analisamos. A citação dos clássicos reflete a formação desses cristãos do século IV que aprenderam as letras latinas nos textos consagrados que lhe chegavam nas escolas, juntamente a disciplina gramatical, oratória e moral, sob a ameaça da palmatória e do castigo de bravos mestres. No próprio livro de sua Apologia, Jerônimo rememora um dia em sua infância em que “deixa o colo de sua avó para ser entregue prisioneiro ao furor de um Orbílio”235. A própria antonomásia para nomear a figura do mestre com a utilização do nome de Orbílio remete ao nome que, com toda probabilidade Jerônimo conheceu na obra de Horácio.236 No momento em que abordamos o tema da formação clássica dos nossos autores cristãos, entre os

235 São Jerônimo, Apologia, p. 82: “...memini me puerum cursasse per cellulas seruulorum, diem feriatum

duxisse lusibus et ad Orbilium saeuientem de auiae sinu tractum esse captiuum...”

quais Jerônimo, a famosa narrativa do sonho na epístola 22237 impõe sua pertinência ao nosso entendimento, no sentido que evidencia a formação tradicional que marca as personalidades cristãs, que não se apaga diante da confissão cristã e que não anula, entretanto, a condição cristã, mas que tem seu lugar próprio. Neste sentido, não é sem razão que o parágrafo 30 de tal epístola tenha se tornado emblemático da personalidade de nosso autor, e, muitas vezes, ser alegado como justificativa do apego de Jerônimo a Cícero. Trata-se de uma encenação de um drama de consciência diante de duas culturas que, aparentemente, seriam mutuamente inassimiláveis, a cultura clássica e a cultura cristã.

A narrativa do sonho na epístola 22 de Jerônimo tornou-se alvo da acusação de perjúrio movida por Rufino em sua Apologia contra São Jerônimo. O sonho que data da primeira estada de Jerônimo no Oriente (por volta do ano de 374) acaba sendo alvo da invectiva de Rufino que critica o hábito de Jerônimo de fazer constantes referências a autores pagãos.238 Em resposta à invectiva de Rufino, Jerônimo aborda novamente o que escrevera havia muito tempo e defende para a cultura clássica o lugar pacífico de cultura assimilada e que é impossível esquecer; não afeta prejudicialmente a condição cristã, ou pelo menos, porque não consegue esquecer o que aprendeu, encara pacificamente o legado clássico e relaciona-se tranqüilamente com ele.239

Em nossa bibliografia, consta uma obra que trata unicamente do tema das relações entre os padres latinos e os clássicos.240 Nessa obra, encontramos capítulos dedicados às mais diversas fases da vida e obra de Jerônimo, entre as quais aquela que nos interessa mais diretamente, a fase da controvérsia origenista. Hagendahl também assinala a existência de um estudo bastante extenso sobre citações na obra de Jerônimo, o qual data de 1872.241 Hagendahl assinala igualmente a existência de uma obra sobre os estudos ciceronianos de São Jerônimo.242

237 São Jerônimo, Epístola 22, 30.

238 MIGNE, J.-P., PL XXI, col. 588: “...Relegantur nunc, quaeso, quae scribit, si una ejus operis pagina est quae

non eum iterum Ciceronianum pronuntiet, ubi non dicat: ‘Sed Tullius noster, sed Flaccus noster, sed Maro’...”

239 São Jerônimo, Apologia, p. 84: “...Bibendum igitur mihi erit de lethaeo gurgite, iuxta fabulas poetarum, ne

arguar scire quod didici...”

240 HAGENDAHL, Harald. Latin fathers and the classics. A study on the Apologists, Jerome and other christian

writers. Göteborg, Acta Universitatis Gothoburgensis, 1958.

241 O autor é Lübeck e o estudo data de 1872.

242 KUNST, C. De S. Hieronymi studiis Ciceronianis (Dissertationes philologae Vindobonenses, XII). Viena,

Entre os autores citados por Jerônimo, quatro compõem o quadriuium, elenco de autores obrigatórios na formação escolar da adolescência romana. Na época de Jerônimo, compunham o quadriuium Cícero e Salústio, para a prosa, e Terêncio e Virgílio, para a poesia. Certamente, encontramos eco considerável deste elenco de autores na obra que analisamos, ao lado de inúmeros outros autores dos quais podemos verificar a presença no texto que analisamos.

O parágrafo 16 do primeiro livro da Apologia de Jerônimo contra Rufino traz um repertório considerável de rétores gregos e latinos: Crisipo e Antípatro, Demóstenes e Ésquines, Lísias e Isócrates (gregos) e Cícero, Aspro, Vulcácio, Vitorino, Donato, Plauto, Lucrécio, Horácio, Virgílio, Pérsio, Lucano (latinos).243 Entre esses autores, Hagendahl reconhece que “Jerônimo é um ciceroniano num sentido muito mais profundo do que tais ínfimas reminiscências poderiam implicar.” “Eu não estou pensando – afirma Hagendahl – em sua dívida para com Cícero pelo vigor, movimento e elegância de seu estilo. O que eu tenho em mente é a soma de informação factual que ele deve a Cícero e que ele tem que admitir neste verdadeiro panfleto.”244 É em Cícero que encontramos a fonte de muitos loci que se encontram na obra que analisamos. Só na obra Tusculanae disputationes podemos verificar três loci:

1. “Sed quoniam de confragosis et asperis locis enauigauit oratio” (Apol. c. R. I, 30)245

2. “Crassum quem semel in uita dicit risisse Lucilius” (Apol. c. R. I, 30)246

3. “Septem modos conclusionum dialectica me elementa docuerunt; quid significet αξιοµα, quod nos ‘pronuntiatum’ possumus dicere” (Apol. c. R. I, 30)247

Para ilustrar aquilo que havia afirmado, valendo-se da autoridade de Porfírio, Jerônimo cita com muita destreza uma passagem do sexto livro da Eneida, versos 748 a 751, justamente quando Virgílio fala de παλιγγενεσια (regresso à vida, depois da morte real ou aparente): “ Todas essas almas, quando fizeram girar a roda durante mil anos, um deus as

243 São Jerônimo, Apologia, p. 44 e 46. 244 HAGENDAHL, H. (1958), p. 176.

245 Corresponde a Tusc. 4, 14, 33: “...Ex quibus quoniam tanquam ex scruplosis cotibus enauigauit oratio...” 246 Corresponde a Tusc. 3, 15, 31: “...M. Crassi illius ueteris, quem semel ait in omni uita risisse Lucilius...” 247 Corresponde a Tusc. 1, 7, 14: “...Omne ‘pronuntiatum’ (sic enim mihi in praesentia occurrit, ut appellarem

αξιωµα; utar post alio, si inuenero melius)...” As notas de fragmentos da obra Tusculanae disputationes foram citadas de segunda mão, da obra citada neste item de H. Hagendahl.

chama em longa fila junto ao Letes, e é a fim de que, tendo perdido toda lembrança, elas possam de novo rever a abóbada celeste e comecem a querer retornar a corpos”.248

São, pois, vários os autores citados por Jerônimo: Dião Cássio, Homero, Horácio, Lucrécio, Pérsio, Platão, Plauto, Plínio, Porfírio, Quintiliano, Salústio, Sêneca (o Filósofo), Terêncio e Virgílio. Em grande parte dos casos, a evocação dos autores clássicos em citações no texto da Apologia contribui para criar um ambiente de conivência cultural entre Jerônimo, cristão educado na cultura clássica, e seu leitor, indivíduo que se coloca em condições potencialmente iguais, e, uma vez que não se pode fugir ou negar o que se aprendeu, a única atitude sensata é continuar cultivando o legado clássico pagão, de escritura e de leitura, de texto antigo redimensionado em novos textos.249 A citação também é um instrumento a mais à disposição do polemista, de modo a contribuir para o enaltecimento da sua imagem própria, para defender-se diante do adversário e construir uma apologia em benefício próprio.

Encerramos aqui o item, com a certeza de tê-lo abordado bastante sumariamente, mas satisfeitos por termos mostrado as principais funções da citação dos clássicos na obra- objeto de nossa análise.