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O De adulteratione librorum Origenis

O COMBATE REFUTATÓRIO E O ARSENAL CLÁSSICO: ASPECTOS INTERTEXTUAIS DA APOLOGIA CONTRA RUFINO

3.2. Os textos controversos da Apologia de Jerônimo conta Rufino

3.2.3. O De adulteratione librorum Origenis

A refutação do tratado de Rufino sobre a Adulteração dos livros de Orígenes, de Rufino, ocupando a segunda parte do segundo livro da obra que estudamos, constitui um

197 A transcrição de Jerônimo corresponde ao parágrafo oitavo do segundo livro, conforme a edição de Pierre

Lardet, que utilizamos como referência em nosso trabalho de tradução.

198 São Jerônimo, Apologia, p. 118: “...Tam putide et confuse loquitur ut plus ego in reprehendendo laborem

importante tópico na querela entre Jerônimo e Rufino, como veremos a seguir, além de ser uma interessante reflexão sobre a propriedade literária em uma época bastante recuada em relação à nossa, quando vemos tantas vezes esta questão ser colocada com muita pertinência, em razão das inúmeras ocorrências de falsa atribuição de autoria, de um lado, e falta de reconhecimento de autoria, de outro. Em outras palavras, um tema sempre atual em várias épocas.

Quanto à querela que trouxe a dissidência entre Jerônimo e Rufino com a ruptura da antiga amizade, o tratado De adulteratione librorum Origenis transforma-se em ocasião propícia a novos embates entre os antagonistas no que diz respeito à defesa de Orígenes (assim pensa Jerônimo sobre o tratado de Rufino), por parte de Rufino, refutação das teses apontadas no De adulteratione librorum Origenis, por parte de Jerônimo. Precisamente neste ponto, este tópico contribui para a construção do polêmico na obra Apologia de Jerônimo

contra Rufino.

O tratado de Rufino em questão200, que acompanha a Apologia de Orígenes201, atribuída por Rufino ao mártir Pânfilo, oferece ampla abertura a refutações, pois em princípio nega aquilo que na prática, do ponto de vista de quem o refuta, realiza de diversos modos. A saber, a defesa de Orígenes, com a alegação de que todos os conteúdos heréticos encontrados na obra são resultantes de acréscimos, interpolações, correções feitas por hereges, em épocas diversas, sobre o texto de Orígenes. A questão consiste em determinar se Orígenes é ou não é responsável pelas heresias que sua obra veicula. Rufino isenta Orígenes desta responsabilidade; Jerônimo, ao contrário, crê que Orígenes seja autor dos textos heréticos e refuta a tese da adulteração dos livros de Orígenes. Já no prólogo à sua tradução do Perì Archôn, Rufino menciona a causa dos pontos que traziam dificuldade ao leitor latino (alguns

offendicula) “e sua completa explicação em sua tradução da Apologia de Orígenes, cujo texto Rufino fazia acompanhar de um opúsculo com as provas, a seu ver evidentes, da corrupção dos escritos origenianos.”202 Aquilo que, para Rufino, é resultante da ação de terceiros e isenta a Orígenes de responsabilidade de heresia em seus textos não pode atribuir-se à estultícia ou

199 MIGNE, J.-P., PL XXI, col. 626: “...alii quod factas jam olim, id est, tunc cum omnia Deus creavit ex nihilo,

nunc eas judicio suo dispenset in corpore. Hoc sentit et Origenes, et nonnulli alii Graecorum...”

200 MIGNE, J.-P, PL VII, De adulteratione librorum Origenis, col. 615-632. 201 MIGNE, J.-P., PL VII, col. 541-616.

202 ORÍGENES, Traité des Principes I (1978), p. 70: “...Cuius diuersitatis causam plenius tibi in Apologetico,

quem Pamphilus pro libris ipsius Origenis scripsit, edidimus, breuissimo libello superaddito, in quo euidentibus, ut arbitror, probamentis corruptos esse in quam plurimis ab haereticis et maliuolis libros eius ostendimus...”

insanidade de Orígenes, senão ao fato de que os elementos discrepantes e de sentido contrário não são da autoria de Orígenes203, nem revelam, como sustenta Jerônimo em sua Apologia, (citando palavras do tratado De adulteratione) mutação do pensamento de Orígenes de acordo com as épocas em que foram escritos os textos, uma vez que todos os trechos intercalados, de sentido contrário, observáveis de um capítulo a outro, não devem ser imputados a Orígenes.204 Para Jerônimo, ao contrário, esses argumentos são como bijuterias, ou jóias de ouro falso. Retomando a Pérsio, Jerônimo compara o texto de Rufino a uma jóia de lavor grosseiro, ao qual acrescenta o dado importante de sua relação de conhecimento pessoal de quem o elaborou.205

A refutação do tratado De adulteratione librorum Origenis, como dissemos há pouco, traz-nos importante reflexão sobre a propriedade literária, uma vez que a crença na partilha indiscriminada de tudo o que se sabe e se declara, sem a devida atribuição da autoria, origem e época, acaba por gerar uma espécie de comunitarismo literário, sem distinção de autores e de referências culturais precisas, sem o devido respeito à alteridade, uma vez que são abolidas as fronteiras necessárias ao reconhecimento devido ao que é alheio e ao que é próprio. Em seu combate contra a heresia, principalmente o origenismo em nosso estudo, que constitui o motivo principal de sua polêmica, Jerônimo reconhece o caos no qual tudo acabaria se se desse atenção a teses como aquelas do tratado De adulteratione, visto que não se poderia mais diferenciar autores católicos de autores heréticos, uma vez que os autores heréticos não poderiam ser responsabilizados pela sua doutrina herética, sendo impossível reconhecer os agentes que agiriam em segredo e , portanto, saber a quem atribuir a heresia. Maniqueu, Eunômio, Ário, Valentino e Marcião estariam isentos do labéu de heresia, já que seus textos foram, com toda probabilidade, “falsificados” por hereges, sujeito indeterminado de quem ignoramos paradeiro, nome, época em que viveu, propósito com que alterou o texto. Tudo acaba pertencendo a todos e a ninguém simultaneamente.

Jerônimo toma como ponto e exemplo desta falta de escrúpulos quanto à apresentação dos textos o caso de uma epístola de Orígenes, citada no tratado De

adulteratione, que se acha truncada, uma vez que Rufino inicia a citação do texto da epístola

203 MIGNE, J.-P., PL VII, col. 616: “...Dubitari non puto quod hoc nullo genere fieri potuit, ut vir tam eruditus,

tam prudens, et certe (quod indulgere etiam accusatores ejus possunt) vir qui neque stultus, neque insanus fuerit, ipse sibi contraria et repugnantia suis sententiis scriberet...”

204 Ler em São Jerônimo, Apologia, edição de Pierre Lardet, p. 140-141, o final do parágrafo 15, que ilustra os

já lá pela metade (segundo testemunho de Jerônimo), ocultando a seu leitor boa porção de texto. A ocultação da porção de texto que Jerônimo apresenta no parágrafo 18 do segundo livro ocorre em função de um propósito que Jerônimo deixa a seu leitor a vez de percebê-lo, bem como perceber o que Rufino apresentou da epístola de Orígenes em seu tratado, que Jerônimo também transcreve em sua Apologia.206

Sãocitados também na refutação o diálogo de Orígenes e Cândido. Jerônimo denuncia a utilização mentirosa, a seu ver, do nome de Hilário de Poitiers, como autor, a exemplo de Orígenes, cuja obra sofreu adulteração por hereges, valendo esta adulteração a sua excomunhão e o abandono forçado da assembléia reunida para realizar o Concílio de Rimini. Igualmente mentirosa a atribuição do De trinitate a Tertuliano, o qual Rufino disse que era utilizado largamente em Constantinopla, sob o nome de Cipriano; nesse caso, nem a um nem a outro a atribuição era devida, mas a Novaciano.207

Para finalizar este item, Rufino atinge com maior agudeza o seu adversário pessoal quando alude a um tempo em que Jerônimo tinha sido secretário do papa Dâmaso e a ele era confiada a redação das cartas eclesiásticas. A Jerônimo fora atribuída uma correção feita em uma obra de Atanásio, mas tratava-se de uma manobra suspeita dos Apolinaristas.208

205 Pérsio, Sat. 3, 30: “...Ad populum phaleras! Ego te intus et in cute noui...” 206 São Jerônimo, Apologia, p. 148-155.

207 São Jerônimo, Apologia, p. 154- 159.

208 MIGNE, J.-P., PL VII, col. 629-630: “...Damasus episcopus, cum de recipiendis Apollinarianis deliberatio

haberetur, editionem ecclesiasticae fidei, cui iidem editioni, si Ecclesiae jungi velint, subscribere deberent, conscribendam mandavit amico suo cuidam presbytero viro disertissimo, qui hoc illi ex more negotium procurabat. Necessarium visum est dictanti in ipsa editione De incarnatione Domini, hominem Dominicum dici. Offensi sunt in hoc sermone Apollinaristae: novitatem sermonis incusare coeperunt. Adesse sibi coepit qui dictaverat, et ex auctoritate veterum scriptorum catholicorum virorum confutare eos qui impugnabant. Decidit ut uni ex ipsis qui novitatem sermonis causabantur, ostenderet in libello Athanasii episcopi scriptum esse sermonem de quo quaestio habebatur. Quasi suasus jam ille cui hoc probatum fuerat, rogavit dari sibi codicem, quo et aliis ignorantibus satisfaceret. Accepto codice, inauditum excogitavit adulterationis genus. Locum ipsum in quo sermo iste scriptus erat, rasit, et ipsum sermonem rursum rescripsit quem raserat. Codex redditus simpliciter receptus est. Movetur iterum pro eodem sermone quaestio: ad probationem codex profertur; invenitur sermo de quo erat quaestio, ex litura in codice positus; fides proferenti talem codicem derogatur, eo quod litur illa corruptionis ac falsitatis videretur indicium. Sed quoniam(ut iterum eadem dicam) viventi haec facta sunt a vivente, continuo egit omnia ut fraus commissi sceleris nudaretur, et nequitiae macula non innocenti viro, qui nihil tale gesserat, adhaereret, sed in auctorem facti atque in uberiorem ejus infamiam redundaret...”