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Capítulo 8. As Entrelinhas do Discurso

8.2. A Presença do Profissional de Saúde

A Presença do profissional de saúde enquanto conceito de operacionalização teórico- prática, pode ser sensível e permeável a tudo o que preconizámos relativamente ao conceito Presença do actor.

Num primeiro momento, verificamos que os profissionais de saúde reconhecem alguns predicados associados à sua Presença Profissional – o dispositivo relacional associado ao encontro entre pessoa doente e profissional de saúde, também a preparação técnica, por último, a disponibilidade fisica e emocional. Estes mesmos predicados estão fortemente assinalados nos documentos que compõem a moldura ético-deontológica (os diferentes códigos deontológicos descritos no primeiro capítulo), das diferentes profissões de saúde contempladas neste estudo, assim como, pelos autores referenciais elencados no segundo capítulo.

No domínio da Enfermagem, a dimensão relacional da profissão está inscrita seja nos autores referenciais da Profissão (COLLIÉRE, 2003; HESBEEN, 2004; PEPLAU, 1992; WATSON, 2002, entre outros), seja nos documentos que regulam o exercício da profissão do Enfermeiro de Cuidados Gerais (ORDEM DOS ENFERMEIROS, 2004), como nos documentos que descriminam as competências do Enfermeiro Especialista em Saúde Mental e Psiquiatria – o exemplo dos Enfermeiros incluídos nesta amostra discursiva (ORDEM DOS ENFERMEIROS, 2009). Estes autores e documentos, remetem-se para o conjunto de instrumentos relacionais, também aos diferentes contextos em que se verifica esta relação terapêutica (Hospitais, Centros de Saúde, estruturas da comunidade).

Ao perspectivarmos a profissão de Psicologia, o foco relacional é igualmente central numa perspectiva de mobilização da dimensão emocional da pessoa alvo de Cuidados de Saúde (ORDEM DOS PSICÓLOGOS, 2011). Indepentemente da área de intervenção –

119 Psicologia Clínica, Psicologia das Organizações, Psicologia da Educação, Psicologia da Saúde – a abordagem psicológica envolve sempre o encontro entre diferentes subjectividades – a do psicólogo e da pessoa sujeita a cuidados psicológicos.

No âmbito da profissão de medicina, nos últimos anos alguns autores têm discutido a importância de recentrar a relação médico-pessoa doente numa perspectiva mais ampla (DAWNIE & RANDALL, 2000; DIXON & SWEENWY,2000), intenção consagrado no novo código deontológico da profissão médica (ORDEM DOS MÉDICOS, 2009), reforçando a necessidade de resgatar a dimensão relacional com a pessoa sujeita a cuidados médicos. No contexto particular da Saúde Mental e Psiquiatria da Infância e Adolescência (os dois sujeitos empíricos que são médicos, são internos de Pedopsiquiatria), o dispositivo relacional é um instrumento igualmente central no trabalho com criança e respectiva família (SANTOS, 2011; COIMBRA DE MATOS, 1997, 2002).

Ao considerarmos o dispositivo relacional presente nas diferentes profissões de saúde contempladas neste estudo, concluímos que este deverá envolver uma preparação técnica específica no domínio das diferentes formações base das respectivas profissões, também nas formações pós-graduadas (Mestrados, Doutoramentos), ou ainda num percurso de formação em Sociedades Científicas (Sociedade Portuguesa de Psicodrama, Sociedade Portuguesa de Psicanálise, Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria, Sociedade Portuguesa de Psiquiatria da Infância e Adolescência, entre outras).

Percursos de formação iniciais e complementares que estão vinculados à relação entre duas subjectividades no momento do encontro entre profissional de saúde e pessoa doente, indepentemente do contexto de saúde envolvido (Hospital, Centro de Saúde), ou área de intervenção (Saúde Mental, Saúde do Adulto/Idoso, Saúde da Criança).

A preparação técnica está associado aos diferentes momentos da relação entre duas pessoalidades (valorizado apenas no domínio da sua subjectividade), naquilo que envolve os diferentes instrumentos da relação terapêutica (ORDEM DOS ENFERMEIROS 2004, ORDEM DOS PSICÓLOGOS 2011, ORDEM DOS MÉDICOS, 2009), mas também aos vários instrumentos da relação psicoterapêutica, socioterapêutica (ORDEM DOS

120 ENFERMEIROS, 2011, ORDEM DOS PSICÓLOGOS, 2011) donde importa destacar os movimentos tranferenciais128 e contra-transferenciais entre profissional de saúde e pessoa sujeita a cuidados clínicos.

O Corpo-Memória (GROTOWSKI, 1975) assinala não apenas um património de memórias concretas (objectos, sabores, aromas, texturas, sons), mas também um património imaterial, que se encontra consolidado no conjunto de relações afectivas que transportamos para cada novo encontro relacional, em contexto do trabalho artístico, em contexto do trabalho na saúde. Desta forma, o encontro entre pessoa profissional de saúde e pessoa doente assume de forma inerente, o movimento de outras relações afectivas importantes nestas respectivas subjectividades.129

O processo de criação nas suas diferentes fases assistiu à redescoberta do corpo de cada um dos criadores-protagonistas envolvidos. Estes valorizam o reencontro com o seu próprio corpo, e a possibilidade adjacente de repensarem a sua Presença profissional numa perspectiva integrada e em continuidade entre Corpo e Mente. Uma Presença do Profissional de Saúde em plena consciência do seu corpo transforma também a natureza do encontro intersubjectivo.130

128 Transferência e contra-transferência, termos inicialmente cunhados por Freud (1900/2009) que

traduzem os diferentes movimentos inconscientes entre a pessoa submetida a tratamento e o profissional de saúde. Conceitos centrais na abordagem psicanalítica que se revestiram de outros fundamentos nas últimas décadas. Estes termos foram repensados também à luz de outras abordagens psicoterapêuticas, por exemplo o Psicodrama (MORENO, 1978) que propõe o conceito de Tele, como capacidade de percepção da subjectividade do outro, absolutamente central no tratamento inscrito nesta abordagem psicoterapêutica.

129 Irvin Yalom (YALOM, 1989/2007), na sua obra Love´s Executioner situa o manejo da contra-

transferência como a essência do trabalho psicoterapêutico “(…) Los mejores jugadores de tenis del

mundo se entrenan cinco dias por día para eliminar toda debilidad en su juego. Los maestros del Zen aspiran siempre al estado de reposo de la mente, la bailarina, el equilibrio absoluto, y el sacerdote no hace más que examinar su consciencia. Todas las professiones tienen dentro de ellas un reino de possibilid en el cual quien la practica pueda buscar la perfección. Para el psicoterapeuta esse reino, ese curso de inagotable autoperfeccionamento del que nadie se gradúa recibe el la jerga profissional el nombre de contratransferência (…) (YALOM, 1989/2007, p.114)

130 No capítulo “fat women” da obra de Irvin Yalom “lover´s executioner” (YALOM, 1989,2007), discute-

se então a repulsa (contra-transferência) que o terapeuta sente relativamente a uma mulher obesa e a forma como esta também percepciona essa mesma repulsa. O caminho que o terapeuta teve que fazer para transformar essa repulsa a favor do processo terapêutica, também o caminho que a paciente teve

121 “ (…) Durante todo o espectáculo, esqueci todos os aspectos técnicos apesar da concentração no aparato da luz e som. Esqueci as pausas, os ritmos certos, as transições das cenas. O meu foco permaneceu sempre com os actores, os criadores-protagonistas, sim, apesar

de algumas imperfeições na utilização da voz, desapareceram por completo as pessoas por entre os diferentes personagens, ou o Personagem. Já não vi A , B ou C, apenas várias infâncias, ou a mesma infância, várias adultos reconciliados com a sua infância, ou o mesmo adulto. Não sei. O que teria pensado João dos Santos com estes adultos em movimento de (re) integração da sua Infância? Tudo bem integrado, o corpo desapareceu, a palavra desapareceu,

a voz desapareceu, o homem adulto desapareceu, a criança evocada desapareceu, alguma coisa nasceu. Não sei qual o seu nome (…)” (DB, 23ªSessão).

A expressão artística pode exercer um papel privilegiado na ligação entre as diferentes áreas neurológicas associadas a processos de cognição (hemisfério esquerdo) e a processos associados à criatividade (hemisfério direito) (DAMÁSIO, 2010; ZULL, 2004). Por outro lado, podemos afirmar que a mobilização do corpo está associada a uma maior plasticidade das células neuronais, à capacidade do cérebro permanecer em mudança e renovação (DAMÁSIO, 2010).

Esta demanda de requalificação do ser em Presença interessa-nos em particular, por aquilo que o processo de criação devolveu a cada um dos criadores-protagonistas, ou seja, a experiência de expansão do seu potencial expressivo na relação com os outros, no que foi ratificado em achado discursivo como Universo emocional de cada um e a integração dos limites pessoais. Desta forma, assinala-se o crescimento do profissional de saúde, através das ferramentas da expressão teatral.

“ (…) Não consigo deixar de pensar como cada uma das pessoas envolvidas neste projecto tem a sua própria história, tem a sua forma particular de relação. Quanto mais penso nisto, mais me assalta a poderosa evidência de como o teatro pode tornar as pessoas maiores. Neste

ensaio, estive mais perto da A. que tem um monólogo muito dificil para assumir, fizemos este monólogo em diferentes locais da nossa sala, a diferentes alturas, com várias tonalidades emocionais (zangada, hesitante, feliz), e também com várias revisões do próprio texto. Em tudo

isto, cada vez que olhava para a A. sentia-a revolver-se por completo, estava a chegar a um outro lugar, desconhecido para ela, para mim. No final, um abraço de reconhecimento mútuo

desse salto (…)” (DB: 15ªsessão).

que fazer para modificar todos os sentimentos evocados pela repulsa nunca manifesta do terapeuta (o que ela terá sentido em toda a sua vida relacional). Esta contra-transferência com contornos tão negativos em nenhum momento foi verbal, pelo contrário apenas teve expressão no corpo do terapeuta. A consciência disso mesmo alterou de forma positiva o curso do processo terapêutica em claro beneficio da paciente.

122 A experiência de encontro com um si mesmo amplificado foi fortemente valorizado no decorrer de todo o laboratório, pela vivência da presença teatral na sua expressão mais consolidada.

Esta percepção dos criadores-protagonistas no final do processo em que estiveram envolvidos, corrobora o potencial do Teatro para aprofundar o conhecimento de si mesmo, percurso decisivo para nos situarmos na relação com o outro – pessoa doente no domínio das ferramentas técnicas preconizadas, no domínio do construto que estamos a equacionar – a Presença do profissional de saúde.

Um aprofundado si mesmo claramente vinculado a uma apropriação do Corpo (DAMÁSIO, 2010), no âmbito da sua expressão cognitiva e emocional, também pelo mergulho na pluralidade de linguagens, estéticas e ferramentas que o teatro convoca (BARBA, 1995, GROTOWSKI, 1975). Um outro lugar de aprofundamento do si mesmo prende-se com o exercício do acto improvisado, imprevisivel e espontâneo (BROOK, 2008, GROTOWSKI, 1975, MORENO, 1978), condicionado pela imersão da pessoa individual (criadores-protagonistas), na pessoa colectiva, no grupo de criadores- protagonistas.

“ (…) de repente a dois e o início de uma frase…quando eu tinha 6 anos…e uma leve indicação corporal (mão na cintura, dedo em riste, braços atrás das costas)…e solta-se o improviso. O desconforto inicial dá lugar a pequenas descobertas em cada um. No final, a partilha da importância de fazer isso em grupo, por todos os criadores-protagonistas estarem a

viver o mesmo desafio, o mesmo medo da exposição, os mesmos receios da transposição das suas personas quotidianas (…)” (DB, 3ªSessão)

Um dos principais eixos de criação de todo o processo, o exercício dialéctico entre o criador-protagonista e o grupo na sua coralidade.Um dos principais eixos de criação em Teatro-Comunidade, o lugar do coro na afirmação do protagonista individual.

O corpo comunitário (GIL, 1997) reinvidica diferentes possibilidades de encontro em cena, desde logo, as culturas estéticas de cada um dos criadores-protagonistas, uma estrutura narrativa que se pode materializar em plural, também uma matriz dramatúrgica que poderá resgatar a identidade dos vários criadores envolvidos. Um corpo comunitário que assume os contornos de um coro, qual símbolo de um teatro mergulhado num espectro comunitário e social (BROOK, 2008, BARBA, 1994), em total oposição aos valores dominantes do culto ao individual e ao isolamento social.

123 A consolidação da Presença do profissional de saúde em contexto de desenvolvimento profissional em grupo (os contextos profissionais em Saúde são essencialmente grupais), envolve necessariamente a aprendizagem da dimensão tempo. O tempo da Presença do actor contribui para a aprendizagem de um outro tempo da presença do profissional de Saúde, e assim se conjuga em definitivo o ponto de partida e de chegada deste objecto académico – investigação em redor de uma dilatação do tempo e forma da Presença do profissional de Saúde.131

O tempo do actor constitui um importante vector de tensão em cena, senão mesmo a dimensão mais significativa do actor em cena. Este tempo não coincide com o tempo do espectáculo que tem um início e um fim, pois o actor assume sempre o tempo presente na relação com a dramaturgia (que o pode remeter para outros tempos), na relação com os actores e espectadores, mas um tempo presente que é sobretudo interior, na medida em que se afirma como entidade viva, em permanente actualização. (CORREIA, 2009). Em clara oposição a um tempo exterior (do cotidiano, da contemporaneidade) que pode radicar em variadas circunstâncias temporais. A estreita relação com a dimensão extracotidiana de Eugenio Barba e a via negativa de Anton Artaud e Jerry Grotowski.

A pessoa actor em cena vive um percurso de despersonalização que respira uma plena consonância dos seus diferentes planos de expressão – corporalidade, oralidade e interioridade, assumindo que este último apenas se reconhece com contornos observáveis, através do corpo (corporalidade) e da voz (oralidade), numa dinâmica em fluxo contínuo.

Desta forma, o tempo do actor em cena deriva directamente da consciência do actor em cena, não apenas da consciência do espectador que o vê e reconhece, de igual importância, a consciência do ser espectador de si mesmo. Em qualquer das modalidades, exige uma actualização do tempo para que a relação actor-espectador seja fomentada, no que podemos afirmar como dilatação do tempo presença. (ANTUNES, 2009) De uma certa forma, essa dilatação do tempo presença corresponde a uma inscrição desta relação

131 Um outro registo da referência maior deste trabalho desde o seu título, sobretudo pelo conceito

teórico-operacional em estudo – Presença do Actor, João Brites e o seu trabalho no Colectivo Teatro O Bando. O Conceito, o horizonte de formação do Actor nesta cultura de criação Bandina – dilatação do tempo Presença.

124 numa circunstância temporal não existente, como se o tempo presente do actor em cena constituísse um não tempo, ou um tempo total.

A presença dos profissionais de saúde assumiu outros contornos, no contexto do laboratório de presença teatral em que estiveram envolvidos, pelo aprofundamento desta dimensão tempo, em permanente vigília do tempo da pessoa doente (espectador), e do tempo próprio (profissional de saúde). O mesmo esforço de modulação do tempo sublinha a evidência, de que o tempo da relação terapêutica entre profissional de saúde e pessoa doente pode constituir-se como um não-tempo, ou um tempo total.

Ficamos com as palavras de T.S.Elliot in Burnt Norton

“ O tempo Presente e o tempo passado/Estão ambos talvez presentes no mesmo tempo tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado/ Se todo o tempo é eternamente presente/ Todo o tempo é irredimível/ O que podia ter sido é uma abstracção/ Permanecendo possibilidade perpétua/ apenas num mundo de especulação./ O que podia ter sido e o que foi tendem para um só fim, que é sempre presente (…)”

As notas conclusivas deste capítulo versam sobre um percurso de aproximação conceptual, à presença do profissional de saúde. No âmbito da convergência estabelecida entre as disciplinas saúde e teatro, podemos ventilar um conceito presença do profissional de saúde inscrito num dispositivo relacional, que resgata uma dimensão aprofundada do indivíduo (a consciência de si, numa dinâmica em continuum corpo/mente), nos diferentes desafios que o grupo (outro-eu) suscita, definitivamente materializado pela capacidade de fixar um outro tempo em relação.

125 “(…) E a minha vida é apenas uma especialização

do continenente onde fui infantil e adulto – disse Bloom. É a terra que faz a inclinação da flor e da árvore e não o inverso. E claro que fiz esta viagem à Índia para me tornar uma nova árvore, capaz de transmitir vantagens ao velho solo. Quero regressar à Europa, mas não com ninharias (…)”132

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