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Capítulo II: Contratualização da autonomia

1. Conceptualização da contratualização

1.3. A prestação de contas

Uma margem maior de autonomia requer como reverso da medalha uma maior responsabilização, bem como um feed-back à administração e à comunidade sobre a sua gestão:

“Do lado da administração, a prestação de contas é o contraponto necessário à substituição da gestão direta e centralizada pela regulação (…). Do lado da comunidade, a prestação de contas fornece a informação necessária aos atores sociais (…).” (Fernandes in Formosinho et al, 2010: 20)

O decreto-lei nº75/2008, de 22 de abril, sobre o regime de autonomia, administração e gestão das escolas, define que ela se processe auxiliando-se de três documentos: o relatório anual de atividades, a conta de gerência e o relatório de auto- avaliação (art. 9, nº 2). Segundo Bouvier, “les obligations de résultats sont ainsi quantifiées et encadrées (…) émerge ainsi une obligation de résultats (accountability) d’origine anglo- saxone où des repères d’évaluation comparative (benchmarking) et de “bonnes pratiques” transforment durablement les conceptions du pilotage des systèmes d’éducation” (2010: 155).

1.3.1. A avaliação interna e externa

Quando ambiciona formalizar a sua autonomia, além dos mecanismos de prestação de contas ao cuidado da administração central, outro dos requisitos com o qual a escola deve contar diz respeito à avaliação interna: “proceder à sua diagnose e, face aos resultados desta, gizar estratégias de desenvolvimento organizacional” (Formosinho, 2010: 20). O contrato não é um texto trivial, uma reflexão reducionista em relação a uma realidade muito mais abrangente, mas sim o produto de um trabalho que advém de um processo evolutivo e avaliativo, “que vai da auto-avaliação à redação, análise, reformulação e negociação da proposta para um contrato de autonomia” (ibidem: 54).

A par destas práticas, a realização de uma avaliação externa da escola constitui igualmente condição prévia para a apresentação de uma proposta de contrato de autonomia, com a finalidade “de recolher evidências que permitam identificar pontos fortes e fracos do seu desempenho bem como as oportunidades de desenvolvimento criadas e os constrangimentos a ultrapassar” (Formosinho, 2010: 37). No dizer deste mesmo autor, são duas as medidas sobre as quais a avaliação externa se concentra:

- a realização de exames nacionais para todos os alunos em ano terminal de ciclo e, ulteriormente, a análise comparada desses dados para recolher indicadores que permitam um melhor conhecimento das escolas, do seu grau de desenvolvimento organizacional e das aprendizagens dos alunos;

- o desenvolvimento de programas de avaliação para comprovar a credibilização do sistema escolar e a governabilidade das escolas (ibidem: 20 e 73).

Esta campanha avaliadora, reflexo da prestação de contas no processo de contratualização, fundamenta-se “na necessidade de associar a auto-avaliação e a avaliação externa, justificada com a inconsequência de uma avaliação que, mesmo feita por especialistas externos, pode desimplicar atores pertinentes, deixá-los alheados da informação produzida e fazer desta um adereço desnecessário para a ação” (ibidem, 74). É da combinação de ambas que se retiram ensinamentos para a melhoria da escola. Para ultrapassar os obstáculos, é preciso apoiar-se sobre “des indicateurs de résultats précis, de performances et d’impact, de réelles codécisions, des possibilités de régulation efficaces, des contrôles qualité, des autocontrôles” (Bouvier, 2012: 282).

O principal desafio da contratualização e dos seus agentes está em “acquérir une culture du résultat et de la performance et à ajuster leurs modes de travail ou leurs comportements en fonction des nouvelles orientations” (ibidem, 2010: 155). Como constataremos na abordagem seguinte deste capítulo sobre o desenvolvimento da governação por contrato em Portugal, no período de preparação do projeto de contratualização da autonomia com o Ministério da Educação, foi notória a capacitação da escola e dos seus atores “para descolarem dos dados da auto-avaliação e avaliação externa e da imagem por elas devolvida, formularem metas de desenvolvimento, operacionalizarem os seus objetivos e determinarem a avaliação da sua consecução” (Formosinho, 2010: 83). Estaremos perante a distância que vai da autonomia decretada a autonomia construída?

Como unidade singular, cada estabelecimento de ensino cinzela o seu próprio contrato, de acordo com as suas próprias características e expressando os passos de uma trajetória muito própria. Apesar de formalmente iguais, os contratos divergem diametralmente no seu conteúdo:

“Cada contrato obedece ao que a escola propõe como o seu projeto e plano de desenvolvimento. Sendo uma iniciativa da escola, o contrato representa a estratégia da escola para utilizar os seus pontos fortes, para ultrapassar os seus pontos fracos usando as oportunidades e evitando as ameaças. Por conseguinte, os contratos são todos diferentes. No aspeto formal, todos os contratos têm que especificar os objetivos, as metas, os recursos distribuídos e as competências específicas atribuídas à escola.” (ibidem: 54-55)

Com o progresso da autonomia, o Estado não reconhece apenas às escolas a capacidade de melhor gerir os seus recursos educativos, mas também de fazê-lo de forma consistente com o seu projeto educativo (Formosinho, 2010: 33), “le contrat s’insère dans un tryptique: projet-contrat-évaluation, car il n’y a pas de contrat sans projet préalable ni évaluation postérieure” (Toulemonde, 2004: 11). Portanto, “le projet d’établissement peut constituer un préalable à une contractualisation de l’établissement avec les autorités académiques” (Bouvier, 2010: 152). O projeto educativo é o documento timoneiro da escola, no qual se consignam os valores pelos que a comunidade educativa se pauta e que a escola defende:

“Documento de caráter pedagógico que, elaborado com a participação da comunidade educativa, estabelece a identidade própria de cada escola através da adequação do quadro legal em vigor à sua situação, concreta, apresenta o modelo geral de organização e os objetivos pretendidos pela instituição e, enquanto instrumento de gestão, é ponto de referência orientador na coerência e unidade da ação educativa.” (Costa, 1991: 10)

Também ele, em conjunto com o regulamento interno, o plano anual e plurianual de atividades e o orçamento, integra o espírito que anima o processo de contratualização e todos constroem de mãos dadas a autonomia do estabelecimento escolar. Embora “enquanto a dependência do projeto educativo continuava a fazer parte da definição que é dada na legislação de 1998, o mesmo não acontece com a legislação de 2008, que omite essa referência e valoriza mais a dependência entre autonomia e os procedimentos de auto- avaliação e avaliação externa enquanto instrumentos de prestação de contas” (Barroso, 2011: 38), fruto da influência das tendências do mercado ou quase-mercado da educação na gestão escolar, que privilegiam um controlo a posteriori com resultados quantificados e enquadrados19.

No entanto, alguns autores identificam uma aparência contratual neste processo de contratualização da autonomia da escola, em linha com os críticos que denunciam uma autonomia decretada, de papel apenas, “parce que les questions centrales d’autonomie des volontés, de réciprocité des prestations et de sanction du non-respect des engagements sont rarement prises en compte” (Lascoumes e Le Galès, 2012: 107).

Como vamos verificar no testemunho de algumas escolas com contrato de autonomia em Portugal, a retórica do Estado dirigista, com um poder de organização e decisão unitário sobre a prestação do serviço público, por mais complacente que pareça nos

diplomas, não cede o seu lugar “à un État activiste ou coordonnateur, menant principalement des actions de mobilisation, d’intégration et de mise en cohérence” (ibidem). A autonomia de direito tarda em libertar a autonomia de facto.