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Capítulo II: Contratualização da autonomia

2. A governação por contrato em Portugal

2.4. Primeiro ano de governação

Após o primeiro ano de governação por contrato na DREN32, Formosinho traça uma análise, afirmando que a autonomia decretada ficou aquém, as concretizações e as conquistas são parcas face às elevadas expetativas dos gestores e suas organizações. Transcrevemos aqui alguns dos testemunhos e frustrações dos responsáveis e agentes educativos envolvidos no processo, que julgámos pertinentes e bem elucidativas e que sintetizam uma impressão claramente disfórica sobre a autonomia contratualizada em setembro de 2007:

- “uma sistematização daquilo que a escola já realizava”;

- “a concretização de um anseio: sempre ansiamos, sempre quisemos”;

- “faz a escola despertar da ilusão de que tudo o que fazia era bem feito, vinculando-a mais, pedindo maior intervenção, maior responsabilização de todos”;

- “deu-se um passo (…), abriu-se uma porta que a administração está sempre a querer manter fechada a sete chaves. (…) a autonomia em si mesma é uma ideia boa”;

- “o contrato são resultados. É os resultados, é o abandono, é o insucesso”;

- “víamos o contrato como uma possibilidade de sermos verdadeiramente mais autónomos, a nível da gestão dos recursos, do currículo, do tempo, da própria organização. (…) Nós queríamos mais responsabilidades. Não nos deram essas responsabilidades. Ficou um bocado aquém das nossas expetativas”;

- “inicialmente, tínhamos muitas expetativas relativamente ao projeto. A escola tinha esperança (…) e depois viemos a verificar que não era assim tão linear e tivemos alguma desilusão (…)”;

- “isto é uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma”;

- “a designação dos coordenadores de departamento foi percebida como um ganho que passou por não ser, porque, passado um ano, já todas as escolas tinham que o fazer (…) há aspetos que estão no contrato de autonomia que já não tem sentido estarem”;

- “não há gestão de recursos humanos quando nós temos que ter todos os recursos humanos que estão cá colocados, sirvam ou não sirvam à organização”;

- “nem mudou a forma como gerimos a escola, nem mudou a forma como nós organizamos a escola”;

- “não vejo, de facto, nenhuma alteração substancial na escola, ou visível, em resultado do contrato de autonomia”;

- “assumimos os compromissos que normalmente fazíamos. Para nós, foi muito fácil assinar (…) não vem afetar, nem enriquecer, nem ajudar eventualmente. Poderá ajudar se nos der mais liberdade”;

- “a escola não criou esse objetivo. Esse objetivo era obrigatório no contrato de autonomia. Dá até a ideia de que os contratos já estariam cozinhados”;

- “uma imagem de charme, uma imagem de marketing: temos aqui x escolas com que a tutela entendeu celebrar um contrato de autonomia. Mesmo que esses contratos de autonomia não sirvam para muito. Porque estamos a falar de escolas selecionadas, escolas com [poucos?] problemas, escolas se calhar com boas práticas, (…)” (2010: 121-145).

Outro exemplo vem-nos da já extinta Direção Regional de Educação de Lisboa (DREL). Carvalha defende, com base na análise do contrato de autonomia no Agrupamento de Escolas da Charneca da Caparica, que “o normativo foi indutor de expetativas elevadas quanto à sua potencialidade”. Segundo esta investigadora, existiram três constrangimentos para uma verdadeira afirmação da autonomia da escola:

- na área administrativa, o recrutamento dos seus recursos humanos; - na área pedagógica, a introdução de alterações no modelo curricular;

- e na área financeira, as limitações ao uso das verbas decorrentes da racionalização e reorganização dos recursos (2009: 5).

Em nossa opinião, alentada também pelo apoio de vários investigadores, as críticas esfriaram o clima de entusiasmo que envolveu a implementação do contrato de autonomia em Portugal em 2007. As condições consentidas ofuscaram muitas pretensões, visões e liberdades idealizadas para o bem da nossa escola e deram origem a um contrato quase contrato, que não supriu as aspirações dos seus pretendentes.

Olhando para as experiências vivenciadas noutros países, constatámos que Portugal atravessa de facto um percurso singular em termos de políticas de autonomia e avaliação da escola, mas que não aproveita todos os seus cantos e recantos.

No exame comparativo da Eurydice sobre a autonomia das escolas na Europa, conclui-se que as diversas políticas alteraram as estruturas organizacionais e que o

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parâmetro da autonomia se transformou num instrumento educativo de sobeja importância na procura da qualidade (2007: 45), apesar de continuar limitada no caso português. É na continuidade desta reflexão que Barroso nos interpela quando defende a autonomia construída, produto sui generis de cada escola, em clara oposição à autonomia decretada. Nesse sentido, o contrato de autonomia emergiu como a salutar miragem de uma emancipação para o estabelecimento de ensino, uma ilusão cobiçada pelos seus destinatários que poderiam autogovernarem-se com a sua ajuda. No entanto, já evidenciámos anteriormente que a ilusão se transformou em desilusão, que o clima de euforia deu lugar à disforia. Mais parece que o documento revestiu um valor simbólico e psicológico, característica dos “établissements étalons”:

“établissements vitrines et à ériger en modéles à suivre ces établissements très performants. On reconnaît là le principe du benchmarking qui vise à l’identification et à la diffusion des “bonnes pratiques”. Une méthode d’ingénierie éducative assez proche est au coeur du courant de recherche dit de “l’école efficace” (School Effectiveness Research).” (Draelants e Dumay, 2011: 76-77)

Corroboramos ainda Gaudin quando se refere ao facto de estas montras não lograrem posteriormente um eco satisfatório e visível, de não serem operacionalizadas de forma sustentável por parte da tutela:

“Les “effets vitrines”, les démarches novatrices, les expérimentations imaginatives sont certes très valorisées dans l’action publique contemporraine, mais le suivi et la continuité des opérations sont trop oubliés.” (2007: 90)

Existe uma força hierárquica que perverte a iniciativa, por desconfiança ou insegurança, esvaziando de suporte a experiência em ação. No fundo, é a distância que vai da teoria à praxis, do decretado ao construído, que não se anula e, pelo contrário, boicota todo o processo:

“Si la contractualisation produit dans son principe un effet d’annonce, elle s’avère, en conclusion, très structurée par des hiérarchies classiques de moyens, par des dissymétries dans les pouvoirs d’initiative et des formes insidieuses de construction de l’interlocuteur.” (ibidem: 48)

Em Portugal, o ponto de equilíbrio, que Bouvier verbaliza como sendo o “compromis entre des visions centralisées autoritaires et des options décentralisées participatives des politiques publiques” (2012: 283), não foi conquistado aquando da contratualização operada em 2007. A cruzada pela autonomia deu um passo notável, porém

entrevistas junto das oito escolas secundárias e agrupamentos de escolas da DREN.

faltam-lhe mais episódios. Segundo Silva, ela “só será alcançada com um novo paradigma que assente na redução drástica das competências do ME, reconfigurado para o exercício do planeamento, da inspeção e, eventualmente, da avaliação do sistema, e com um crescente protagonismo das autarquias locais” (2011: 81). Talvez seja este o segredo do negócio e o próximo destino da autonomia da nossa escola porque, na verdade, “la contractualisation participe encore trop souvent d’une gouvernance peu démocratique” (Gaudin, 2007: 250).