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Autonomia na sociologia das organizações educativas: imagens da escola

Capítulo I: Enquadramento político e organizacional

3. Autonomia em educação

3.2. Autonomia na sociologia das organizações educativas: imagens da escola

A viragem descentralizadora sistematizada pela corrente da nova gestão pública faz com que a unidade ou estrutura mais próxima da comunidade local obtenha voz e posição de força em matéria de organização institucional, como se encontra plasmado, entre nós, na alínea b do artigo 3º da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) (Lei nº 46/86, de 14 de outubro):

“(…) descentralizar, desconcentrar e diversificar as estruturas e as ações educativas, de modo a proporcionar uma correta adaptação às realidades, um elevado sentido comunitário e níveis de decisão eficientes.”

De facto, a partir da década de oitenta, a agenda política concentra os seus esforços no discurso da gestão participativa e da democratização e autonomia das escolas. Lima realça que no documento intitulado Proposta Global de Reforma de 1988, elaborado pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE), criada em 1986, se admite a falência do modelo centralizador e se propõe uma ampla autonomia das escolas, seja administrativa e financeiramente, seja ao nível da sua organização e funcionamento pedagógico (2011: 23). Uns anos mais tarde, ainda entre nós, são publicados dois diplomas cruciais para a reforma da administração da educação, incidindo sobre o regime jurídico de autonomia das escolas, em 1989, e o regime jurídico de direção, administração e gestão escolar, em 1991.

Apesar de não emergir de rompante e de nem sempre estar formulada numa configuração muito nítida e linear, podemos asseverar que a autonomia marca presença e avança a passos largos no contexto escolar nacional, “é necessário estabelecer às escolas objetivos e meios, dar-lhes liberdade de ação e responsabilizá-las pelos resultados e pelos processos realizados e alcançados” (Formosinho, 2010: 117). Numa travessia progressiva, embora por vezes algo conturbada também, até incongruente, a autonomia começa a fazer parte do quotidiano da escola, um quotidiano igualmente plural e heterogéneo que nos proporciona um campo de investigação dotado de diversas morfologias organizacionais. A escola não se projeta num paradigma estático e fechado em si mesmo, pelo contrário, é uma construção empírica em constante rotação social e estrutural, é uma realidade multifacetada e polissémica. É neste âmbito que um conjunto de autores procede à elaboração de diversos modelos ou imagens organizacionais segundo os quais a escola se vai pautar, tal como o processo de autonomia que ela acalenta.

Vamos abordar aqui, ainda que em breves trechos, algumas dessas lentes, dessas representações metafóricas que marcam a escola enquanto organização e desvendar, em conjugação, o reflexo que a autonomia ocasiona em cada uma delas. Para arquitetar o nosso trabalho de pesquisa, vamos recorrer às sistematizações caucionadas por Costa, “instrumentos úteis (…) para a clarificação e a desocultação da realidade” (2003a: 72), que sintetiza em quatro tipos: a escola enquanto empresa/burocracia, como democracia/cultura, à imagem de uma arena política e a semelhante a uma anarquia.

3.2.1. Imagem da empresa/burocracia

No que diz respeito à primeira fórmula, a escola enquanto empresa/burocracia, as orientações restringem-se a uma ordem formal e oficial, tudo está previamente definido e rigorosamente programado através de normativos claros, o “pensamento precede a ação”. Temos aqui a faceta racional, instrumental e tecnicista da organização escolar, na qual o grau de autonomia é reduzido, já que é com base num “conjunto sistematizado e coerente de objetivos e de estruturas previamente identificadas” que se estabelecem as decisões. Neste modelo burocrático-empresarial, a folga ou liberdade de ação encontra-se limitada porque todo o funcionamento e comportamento, inclusive os resultados a atingir, estão estipulados e calculados de antemão. Nesta perspetiva, observamos que a planificação é orquestrada com rigor e formalidade, sobrando pouca margem de manobra à iniciativa e criatividade dos agentes educativos na escola.

3.2.2. Imagem da democracia/cultura

Na escola como democracia/cultura imperam o consenso, a coesão, a partilha de valores e as relações informais entre os seus membros, que se mobilizam entre eles na construção de uma identidade organizacional forte. O mesmo autor afirma que tal consenso ou compromisso alcança-se através da “interiorização de valores comuns”, da formação “de uma cultura e de uma identidade próprias” e do envolvimento de todos em redor “de uma visão partilhada do futuro e de uma missão a cumprir”. Este modelo organizacional da escola compromete e vincula os agentes educativos a uma identidade cultural. A escola não é mais considerada como um serviço local do Estado para adotar o perfil de uma comunidade educativa, singular e integrada, cuja organização assenta na descentralização relativamente à tutela e na participação, concertação e integração de todos os elementos,

com a finalidade de polarizar os seus esforços em prol dos interesses comuns. No fundo, trata-se já aqui de uma unidade autogestionária, que, em clima de interdependência e solidariedade, toma decisões próprias e que lhes são bem específicas.

3.2.3. Imagem da arena política

Quando perspetivamos a escola à imagem de uma arena política, perspetivamo-la enquanto campo de batalha, no qual os diversos membros promovem “estratégias de influências, processos de coligação e dinâmicas negociais” por forma a valorizarem os seus próprios interesses, seja a nível individual seja a nível de um grupo. Portanto, vários setores da escola, coesos entre si e autónomos uns dos outros, entram numa dinâmica conflitual, nem sempre explícita, e digladiam-se entre eles para fazerem vingar a sua opinião. No dizer de Costa, desenvolve-se um processo “complexo, prolongado, comprometido, dialético, conflitual” por parte dos vários atores, cada grupo, autónomo relativamente ao outro e com interesses próprios, entra em cena no debate educativo e atua em seu proveito próprio. A autonomia que a escola espelha perante a tutela nasce de um convénio entre as facções da escola.

3.2.4. Imagem da anarquia

Para terminar, o autor esboça outra imagem da escola enquanto organização, semelhante a uma anarquia. Refere que aqui “a retórica se encontra separada da realidade, a intenção desvinculada da ação, os objetivos desfasados dos resultados e a planificação divorciada da sua consecução prática”. Neste paradigma, todo o sistema se mostra debilmente articulado, as funções e os documentos estratégicos não passam de rituais de fachada, sem consistência racional nem lógica operatória. Por detrás do real funcionamento da escola está um vazio de conteúdo intencional. Neste espaço organizacional, a autonomia é uma autonomia simbólica e improvisada, sem sustento participativo (ibidem: 71-94).

Esta abordagem que nos serviu para enquadrar a autonomia à luz das imagens organizacionais da escola não pode ser tida em conta contudo de forma totalmente retilínea, visto que recorre a construções abstratas que nem sempre têm uma transposição ou correspondência imparcial e fidedigna na esfera do concreto, como anota Costa (ibidem: 72). Na verdade, a realidade encera uma plasticidade que devemos ter em conta no campo

da investigação académica, a escola não se circunscreve a nenhuma homogeneidade ou a fórmulas estereotipadas.

Porém este passo da nossa investigação revelou-se útil porque esta análise nos serviu de bússola clarificadora sobre o papel e valor da autonomia no seio dos vários tipos de organizações educativas