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Capítulo III: O processo da tomada de decisão

3. Níveis da tomada de decisão

3.3. Nível organizacional

À escala organizacional, a decisão não resulta de um processo tão rigorosamente localizado no tempo e no espaço, como vimos ao nível individual e grupal. A amplitude é outra. Trata-se de um processo mais complexo, envolvendo outra envergadura, dado que é

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Tradução e adaptação de: chairman, shaper, plant, monitor-evaluator, resource investigator, company worker, team worker, completer e specialist.

composto por uma multiplicidade de decisões ligadas umas às outras e comprometendo indivíduos com funções, especialidades e posições hierárquicas diferentes. No enquadramento organizacional, nem o decisor individual nem o grupo estão sós perante o problema: estão incluídos num sistema que os ultrapassa e que, de certa forma, condiciona o seu comportamento. O contexto no qual eles estão inseridos molda o processo da tomada de decisão, afastando-os ou aproximando-os da racionalidade e fazendo igualmente evidenciar se são ou não controlados pela organização como um todo que os suplanta. De facto, o espaço e o tempo da resolução numa organização são multifacetados. Vamos analisar de seguida as suas três componentes preponderantes: a estrutura, a configuração dos poderes e interesses e a(s) cultura(s), porque insuflam o rumo do(s) individuo(s) e do(s) grupo(s).

Recordando ainda aqui Simon e no que toca ao impacto da estrutura formal da organização na decisão, como primeira componente da decisão organizacional, vemos que um conjunto de mecanismos de influência atua no sentido de enquadrar, canalizar e condicionar todo o processo (cit. por Laroche, 2010: 438-439). Partindo da pressuposta racionalidade limitada dos indivíduos para tratar a informação e em prol da qualidade, a organização e o seu modus operandi visam colmatar essas brechas abertas e geradoras de ineficiências através de meios de controlo e regulação. Um desses instrumentos passa por uma divisão laboral bem marcada que permite delimitar o campo de ação do individuo, bem como a quantidade de informação que lhe cabe tratar, operando assim dentro dos limites das suas capacidades naturais. Uma hierarquia pressupõe também que os subordinados não tenham que ponderar as instruções que lhes foram endereçadas, tal como os dispensa de participar na atividade de decisão e de determinar objetivos, competência do seu superior, que por sua vez se liberta da concretização propriamente dita da sua decisão. Outro recurso passa pelo facto dos procedimentos, regras e normas tomados isentarem o individuo de entender como se executa uma tarefa, quando desencadear uma ação ou qual o grau de eficácia pretendido, “elles sont comme des habitudes que l’organisation auraient définies, et qu’elle contrôlerait” (ibidem). Por último, existem canais de informação dentro da organização que se destinam a veicular a informação institucional, profissional e burocrática, que circula e a formulá-la de maneira a ser compreensível e rapidamente utilizável. De referir que o predomínio de tais mecanismos formais de influência pode variar consoante a organização e vai determinar em grande parte o processo da tomada de

decisão. No fundo, a estes “(…) niveaux hiérarchiques, organigrammes, spécialités distinctes, méthodes officielles, règles écrites, procédures formelles, canaux de communication prédéterminés, systèmes de planification et de contrôle” (ibidem) poderemos designa-los de burocracias, cuja ambição extrema seria a da orientação racional da ação coletiva. Sabemos no entanto que este desígnio não se concretiza porque um certo número de práticas organizacionais afastam a burocracia da racionalidade:

- a informação tratada e transmitida nem sempre é neutra e isenta de parcialidade, ela impõe-se ao decisor por questões de “(…) critères d’autorité (“le chef a dit”), de confiance (“l’ordinateur a dit”) ou de légitimité de la source (“ce sont les chiffres officiels”)” (ibidem, 442);

- se não houver uma coordenação atenta, os fins secundários, mais específicos e operacionais, não se conciliam por vezes com os fins gerais e seguem outra rota;

- e o respeito pelas regras pode levar a soluções medíocres porque as regras são estabelecidas de modo geral, obliterando os casos particulares e as situações execionais. Diversos obstáculos reprimem o alinhamento burocrático e truncam o seu ímpeto disciplinar.

As disfunções burocráticas, que podem levar a decisões ineficazes, porque vítimas de ratoeiras ou círculos viciosos, estão patentes na metáfora humorística da organização enquanto anarquia organizada38 (March, Cohen e Olsen, 1972) e do seu modelo de decisão, garbage can, no qual “(…) a tomada de decisões não surge a partir de uma sequência lógica de planeamento, mas irrompe, de forma desordenada, imprevisível e improvisada, do amontoamento de problemas, soluções e estratégias (…) não segue, (…) os processos da sequencialidade lógica (do tipo da causalidade linear: problema – objetivos – estratégias – negociação – decisão) mas decorre no interior de um contexto situacional onde é manifesta a desarticulação entre os problemas e as soluções, entre os objetivos e as estratégias e onde confluem e se misturam desordenadamente problemas, soluções, participantes e oportunidades de escolha” (Costa, 1996: 89-94). Apesar de nem tudo ser negativo e de propiciar alguma inovação, oriunda da liberdade e autonomia concedidas aos indivíduos, estes procedimentos anárquicos, desarticulados e débeis, afastam-se da racionalidade.

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Formulada no seguimento de um estudo sobre o funcionamento das universidades americanas levado a cabo por MARCH, James, COHEN, M. e OLSEN J. (1972). “A garbage can model of organizational choice” in

Como segunda componente da decisão organizacional, entra em linha de conta a configuração dos poderes e interesses que singram na instituição. Crozier39 demostrou-nos que, inclusive nas organizações mais burocráticas, nas quais existe um ambiente de constrangimento para o decisor, o individuo preserva uma certa dose de autonomia relativamente à organização, todo o indivíduo pode ser um potencial decisor já que integra um espaço deliberativo, mais ou menos definido. O decisor é também um ator ou um grupo que canaliza a sua autonomia no sentido de desenvolver uma estratégia quer para defender quer para melhorar a sua posição. Portanto, será igualmente em função de tais estratégias particulares que perseguem interesses singulares que necessitamos entender o comportamento deliberativo dos atores na organização. Essas estratégias são difíceis de cercear enquanto dados, são imprecisas, ambíguas e apenas se revelam no próprio decurso da ação. A configuração dos poderes e interesses constrói-se a partir da estrutura da organização, sem confundir-se com ela: os atores exercem a sua autonomia a partir da sua posição na organização. Na grande maioria das vezes, o problema diz respeito a vários atores, até mesmo quando um ator está investido do poder de decisão, ele vai confrontar-se com outros atores que tentam intervir no processo, por isso, vemo-lo envolver-se em jogos de poderes com outros. No interior das organizações, os atores formam rapidamente juízos de valor sobre os restantes e captam as suas tendências, antecipando as ações e reações dos outros atores. É o jogo dessas antecipações recíprocas que faz com que as relações de poder que surgem perante um problema não redundem em conflito: há um ajuste da ação em função das antecipações. Então, podemos afiançar que a decisão é modelada pelos processos políticos sem haver confrontos e, muitas vezes, emerge desse trabalho de bastidores uma solução de compromisso. Assim sendo, “la connaissance par l’acteur des stratégies particulières, de la configuration des pouvoirs et des intérêts, et la capacité a mener sa propre stratégie en fonction de ces éléments sont des atouts très précieux (…)” (Laroche, 2010: 448).

A terceira componente do processo de decisão a nível organizacional tem a ver com o facto de um conhecimento íntimo e aprofundado do sistema ultrapassar frequentemente o simples conhecimento dos aspetos estruturais e políticos. É notório que uma perceção mais globalizante dos mecanismos e engrenagens que presidem ao funcionamento da

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A sua teoria do ator estratégico deu lugar a uma teoria central em sociologia das organizações nas suas obras Le phénomène bureaucratique (1962) e, em co-autoria com Erhard Friedberg, L’acteur et le système (1977).

organização permitirá um maior domínio das regras do jogo específicas dessa organização. Os processos burocráticos e políticos, que se livram uma batalha de influência, não explicam tudo, inscrevem-se num contexto mais vasto, numa história que os ultrapassa. Essa história é o espírito dominante, o ânimo, a lógica de atuação que norteia a organização e condiciona fortemente a tomada de decisão, a(s) sua(s) cultura(s) em suma, aquilo que imprime o seu cunho nas escolhas que efetua. Os processos culturais, relacionados com o contexto cronológico herdado pela organização, produzem claramente decisões específicas àquela organização e suplantam até esta problemática (ibidem, 450). A cultura organizacional é aquilo que define a organização no seu íntimo mais profundo, como se se tratasse de um ideário ou código de conduta, nem sempre explícito, mas alentador e latente em todas as decisões.