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A prestação de serviços à comunidade: delineamento normativo, aspectos históricos e

2. Fundamentação teórica

2.3. A prestação de serviços à comunidade: delineamento normativo, aspectos históricos e

A Prestação de Serviços à Comunidade se configura como uma determinação judicial, que exige que um adolescente autor de ato infracional preste serviços comunitários socialmente benéficos, não remunerados e sob supervisão, em vez de ir para a prisão. Vale ressaltar, ainda, que a medida inclui a participação em atividades de desenvolvimento pessoal, educação ou outros.

Em outras palavras, em substituição de uma sentença de internação, o poder judiciário pode fazer uma solicitação de serviço comunitário, direcionando o adolescente para realizar

tarefas por um número específico de horas. Trata-se de uma alternativa à custódia e oferece aos adolescentes a chance de reparar suas ofensas, ao realizar uma tarefa não remunerada em benefício da comunidade.

Dar-se-á em entidades assistenciais, escolas, hospitais e outros estabelecimentos congêneres, em entidades comunitárias ou estatais. Conforme a lei, acrescenta-se, ainda, que as tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a frequência à escola ou à jornada normal de trabalho (lei nº 8.069, 1990).

Dispondo das informações acima, pode-se também afirmar o que a PSC não pode ser. De início, pode-se afirmar que, tal como orienta a lei nº 8.069/1990, a medida não pode constituir-se como atividade perigosa, insalubre ou penosa, realizada em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Acrescenta-se, ainda, que o serviço comunitário não se assemelha com a prática do voluntariado, em razão deste ser consequência de uma disposição espontânea do sujeito e, de forma alguma, podendo ser produto de uma decisão ou imposição externa (Costa, 2011). A PSC, de modo diferente, se dá como medida judicial e, porém, ainda assim, não se configura como algo obrigatório, pois que o efeito compulsório não compreenderá, para os fins de acordos internacionais:

qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo como consequência de condenação pronunciada por decisão judiciária, contanto que esse trabalho ou serviço seja executado sob a fiscalização e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas; ou pequenos trabalhos de uma comunidade, isto é, trabalhos executados no interesse direto da coletividade pelos membros desta, trabalhos que, como tais, podem ser considerados obrigações cívicas normais dos membros da coletividade, contanto, que a própria população ou seus representantes diretos tenham o direito de se pronunciar sobre a necessidade desse trabalho. (Convenção nº 29, 1930).

A princípio, a Prestação de Serviços à Comunidade, como forma de penalidade, surge no final do século XIX, numa constante busca por formas alternativas ao regime fechado. Essa forma de sanção penal surgiu ante a ideia de que o encarceramento devia ser gradativamente menos utilizado, por trazer maiores consequências com sua aplicação, dentre as quais podemos destacar a superlotação de presídios, os altos custos para a manutenção do sistema e as difíceis relações mantidas pelos presidiários (Cunha, 2016)

Um dos principais impulsos por trás da introdução da prestação de serviços comunitários, na maioria das jurisdições, foi o custo. As ordens de serviço comunitário são menos dispendiosas do que a maioria das outras formas de sentença – pelo menos aquelas envolvendo prisão ou outros tipos de supervisão. No entanto, outros efeitos positivos podem ser observados, como, por exemplo: a unidade familiar não é desnecessariamente interrompida; a atividade profissional pode ser mantida; a escolaridade não precisa ser interrompida; menos danos à autoestima serão acumulados; os riscos alternativos elevados de exposição a elementos indesejáveis serão evitados, entre outras coisas.

A Rússia foi precursora a apreciar a prestação de serviços à comunidade como alternativa à pena privativa de liberdade, no seu Código de 1960. Outros países do leste europeu, como a Bulgária, Hungria, Polônia, Romênia e Tchecoslováquia também introduziram a Prestação de Serviços à Comunidade em suas respectivas legislações (Bandeira, 2006). Já na Europa ocidental, a Inglaterra foi o primeiro país a implantar a prestação de serviços à comunidade (Community Service Order) como pena, por meio do

Criminal Justice Act, em 1972, e, em 1982, como sanção aos adolescentes com idade a partir

de 16 anos (Criminal Justice Act, 1972).

Contagiado pelos festejados sucessos que foram alcançados em alguns países europeus, o legislador brasileiro de 1984 acreditou no potencial não dessocializador da “prestação de serviços à comunidade” e a incorporou ao Código Penal Brasileiro (Decreto-lei

no 2.848, 1940), como uma das penas restritivas de direitos (Bitencourt, 2014) e, em 13 de julho de 1990,7 ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069)

Em 14 de dezembro de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do 8º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, adota as Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas Não-privativas de Liberdade, denominando-as de Regras de Tóquio. Essas Regras Mínimas Padrão exprimem uma série de princípios basais que miram promover o uso de medidas não privativas de liberdade, bem como garantias mínimas para os indivíduos submetidos a medidas substitutivas ao aprisionamento (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2016).

Em 1995, o Brasil estabelece a Lei n. 9.099, que versa sobre os Juizados Cíveis e Criminais e, em 1998, aprova a Lei 9.714, Lei das Penas Alternativas. A Lei 9.099 já traz em seu bojo algumas medidas alternativas à prisão. A Lei 9.714/98, por sua vez, vem sedimentar as penas restritivas de direito, ampliando o leque de medidas até então previstas no ordenamento jurídico brasileiro (Leite, 2016).

Em 2006, se estabelece a regulamentação específica para entidades e/ou programas que executam a medida socioeducativa de prestação de serviço à comunidade, a partir da prescrição de uma equipe mínima e da definição das atribuições, responsabilidades e especificações dos requisitos de cada cargo nas entidades/programas (CONANDA & SEDH, 2006). Por fim, em 2016, o Caderno de Orientações Técnicas do Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto determina padrões mínimos para o exercício da medida e a existência de normas éticas que garantam a adequada relação de cada adolescente com sua práxis, de modo a responsabilizá-lo, pessoal e coletivamente (MDSA, 2016).

7 Segundo Saraiva, (2006, p. 178) “do ponto de vista das sanções, há medidas socioeducativas que têm a mesma

correspondência das penas alternativas, haja vista a prestação de serviços à comunidade, prevista em um e outro sistema, com praticamente o mesmo perfil”. Percebe-se que o Estatuto, mesmo vivendo num período histórico marcado pelo paradigma da proteção e do acolhimento às crianças/adolescentes, ainda adota o adulto como parâmetro para tratar a infância e adolescência.

Como apontam Silva & Torres (2011), nas medidas de prestação de serviços à comunidade, constataremos a assertiva de que a pobreza é uma constante no sistema socioeducativo brasileiro, visto que concentra adolescentes cujas vidas se encontram nos limites da sobrevivência. Tal revelação condiz com a percepção de um Estado Penal, que pode ser caracterizado pelo aumento da repressão estatal sobre as camadas excluídas (Wacquant,1999).

Como visto por alguns autores (Gobbo & Muller, 2009; Junqueira, 2010), a assistência social apresenta-se como área de atuação preponderante entre as entidades conveniadas. Nesse contexto, a PSC encontra local propício para o exercício da prestação de serviços de relevância comunitária pelo adolescente. Apesar de tudo, outros estudos (Miyagui, 2008), embora tratando de situações particulares e, portanto, não generalizáveis, apresentam conteúdos positivos acerca da forma como os socioeducandos concebem a medida. Indicam uma visão mais aberta e apreciativa dos potenciais, das motivações e das capacidades socioeducativas da PSC. Há também, embora escassa, a divulgação de experiências inovadoras, que fortalecem e verificam a possibilidade de se realizar uma PSC com cultura voltada para à promoção dos direitos humanos.

As orientações técnicas mais recentes têm pensado a atividade comunitária como base do processo socioeducativo, não como objeto ou procedimento, mas como matéria-prima da socioeducação, introduzindo-se não apenas a responsabilização, mas também a integração social (MDSA, 2016). Dessa forma, o serviço visa o processo socioeducativo, instruindo para o desempenho da cidadania e o desenvolvimento de potencialidades (Slakmon et al., 2005).

Assim, a medida não deve ser confundida com uma mera punição, por meio da colocação do educando em um trabalho forçado. Dispor o serviço comunitário sob o objetivo de punição comprometeria a socioeducação, posto que foca a medida na imposição de um

suplício ao ofensor e prejuízo das potencialidades restaurativas (Brancher, 2006; Konzen, 2007).

Portanto, a medida deve assegurar a convivência comunitária, na tentativa de fomentar uma recontextualização construtiva do conflito e oportunizar, à sociedade, o empoderamento na busca de resolutividade de seus conflitos (CONANDA & SEDH, 2006). A julgar por isso, observa-se que a medida possui uma diretriz essencialmente restaurativa,8 pois ambiciona a reparação das violações à pessoa e às relações interpessoais, a experiência da vida comunitária, de valores sociais e do compromisso social.

Ressalta-se que a tarefa desempenhada no cumprimento da medida deve ser resultante da articulação entre a escolha do adolescente e a oferta posta pelos locais de prestação de serviços, compatibilizando as habilidades dos socioeducandos, seus interesses e as demandas comunitárias. Assim, cumpre destacar, ainda, que, como assinalam Digiácomo e Digiácomo (2013), o serviço deve ser prestado “à comunidade”, e não “à entidade”. Logo, a entidade não pode se utilizar da tarefa dos jovens em substituição aos profissionais da instituição, tampouco fazê-los trabalhar em função da missão organizacional.

Além disso, não é, pois, possível a prestação de serviço numa entidade privada que não cumpra nenhum programa comunitário, porque, nesse caso, haveria apropriação indevida de mão de obra, evitando, por desvio ou abuso na execução, que a medida dê margem para exploração do trabalho do adolescente pela entidade (Queiroz, 2008). Como expõe Liberati (2006), o serviço pode ser uma tarefa, que se pode traduzir também em trabalho, atividade física ou mental (diversa da relação de emprego), mas, como alerta o Caderno de orientações

técnicas: Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, é importante que a PSC não

8A definição dos objetivos das medidas socioeducativas, descritos no artigo 1º, § 2º da lei do SINASE, oferecem

se confunda com atividades laborais, pois as exigências educativas devem prevalecer sobre o aspecto laboral da atividade.

Em resumo, a PSC pretende ser transformadora, construtiva e positiva. O desempenho do adolescente está intimamente relacionado ao processo de tornar-se membro funcional de uma comunidade, possibilitando maior confiança, crença pública e apoio a sanções comunitárias.