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Acerca da tarefa prescrita na Prestação de Serviços à Comunidade

3. O prescrito, real e o real da atividade

3.1. Acerca da tarefa prescrita na Prestação de Serviços à Comunidade

Para a Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), a tarefa é um componente para o qual convergem ações coordenadas daquilo que faz parte do essencial da medida socioeducativa. Em outras palavras, é a tentativa de efetivação, em termos de iniciativa institucional, corporificada na proposta socioeducativa, do que foi prescrito. Não obstante, o texto legal é, em seu formato atual, bastante sucinto e genérico, de modo que, já de partida,

aspectos importantes ficam implícitos, o que abre diversas vertentes possíveis de concretização do prescrito.

A definição de tarefa possui numerosas facetas, como apontado por Abbagnano (2007). O conceito é recorrente desde a filosofia antiga até a contemporânea, com repercussões em vários domínios da psicologia, como é o caso da psicologia do trabalho e da psicologia escolar. Platão, em A República (versão de 2000), compreendia por tarefa referente a uma coisa, aquilo que se sabe fazer, ou ao menos que se faz melhor, seja qual for a coisa. Com o mesmo significado, Aristóteles, em Ética a Nicômaco (versão de 1991), utilizou esse entendimento, quando declarava que a tarefa do homem é a atividade da alma conforme à razão.

Na Psicologia, segundo a perspectiva de Pichon-Rivière (2005), a tarefa relaciona-se com o direcionamento de um grupo ou de um sujeito para suas metas; ela é, concomitantemente, uma ação e um itinerário de qualidade multifacetada e dialética. Tarefa é, portanto, uma atividade – individual ou coletiva – que tem relação com demandas sociais e objetivos específicos. Para a abordagem da clínica do trabalho, a tarefa traduz-se em todos os objetivos que foram definidos pela organização do trabalho e concedidos à pessoa que trabalha, que deverá buscar meios (internos a ela própria e externos) para realizá-la. Pelo exposto, vamos definir a tarefa como Leontiev (2004), como um dado propósito, sob condições específicas que condicionarão sempre o resultado final.

A noção de tarefa expressa na peça jurídica retrocitada (Lei nº 8.069, 1990) comporta um significado ativo, relacionado pela mobilização do indivíduo e suas habilidades para completar tarefas e atingir as metas sociopedagógicas estabelecidas. Nessa perspectiva, busca- se “promover o adolescente pessoal e socialmente” e “(...) ajudá-lo a desenvolver suas competências pessoais (aprender a ser) e suas competências relacionais (aprender a conviver)” (Costa, 2006, p. 95). As tarefas são, portanto, prescritas e endereçadas aos adolescentes-

participantes, em conformidade com o regramento jurídico-institucional, esperando-se que, à medida que se envolvem nas tarefas prescritas, evoluirão em termos éticos, pedagógicos e formativos.

Conforme discutido acima, as noções de tarefa e de trabalho são cruciais na presente análise e têm especial relevo para o SINASE. O conceito de trabalho admite múltiplos significados, vinculados a formas históricas específicas nos diferentes modos de produção da existência humana. Para compreendermos o trabalho em toda sua extensão, desde sua essência, ou seja, até seus diversos aspectos históricos, é imperioso considerarmos uma série de fatores, dentre os quais o fato de que o trabalho é instrumento para fazer uso da natureza, modificar o ambiente e satisfazer as necessidades humanas (Albornoz, 1994). Sobre isso, Marx escreveu:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (1867/2014, pp. 326-327)

À vista do exposto, é importante, ainda, citar que, antes de mais nada, o trabalho é caracterizado por dois elementos interdependentes: um deles, é a fabricação de instrumentos (Engels, 1925/2000), o outro, se efetua em condições de atividade comum coletiva, de modo que o homem, no seio desse processo, não entra apenas numa relação determinada com a natureza, mas com outros homens, membros de uma dada sociedade (Leontiev, 2004).

Como posto por Leontiev:

O trabalho humano é em contrapartida, uma atividade originariamente social, assente na cooperação entre indivíduos que supõe uma divisão técnica, embrionária que seja, das funções do trabalho: assim, o trabalho é uma ação sobre a natureza, ligando entre os participantes, mediatizando a sua comunicação. (2004, p. 81)

O trabalho, é, portanto, desde a origem, mediatizado ao mesmo tempo pelo utensílio (instrumento) e pelo coletivo. Em função disso, o trabalho torna-se artefato de autoconsciência, de si e para si. Logo, por intercessão do trabalho é possível se cultivar e aperfeiçoar, mas também se emancipar, visto que pode agir sobre o mundo natural (Hegel, 1807/1992).

Por esse motivo, Leontiev (2004) afirma que o trabalho, atividade vital humana, por sua vez, é o processo por meio do qual se dá, em nível filogenético, a passagem do ser biológico para o ser sócio-histórico e, em nível ontogenético, a possibilidade – mais ou menos plena – de objetivação da personalidade humana. Lukács (2004) considera o trabalho como a categoria ontológica fundamental do ser social, entende que as características ontológicas do ser humano seriam aquelas que surgiram historicamente e se incorporaram de modo irreversível e permanente ao gênero humano, transformando-se em um elemento constitutivo do ser social.

Nesse sentido, o trabalho é uma categoria ontológica capital, visto que não pode haver a humanidade sem o trabalho, por mais não civilizado que ele seja. De acordo com Lukács (2004), “o trabalho é antes de mais nada, em termos genéticos, o ponto de partida da humanização do homem, do refinamento das suas faculdades, processo do qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo” (p. 87).

Porém, como observou Marx (1932/2004), o trabalho tomou um papel negativo nas sociedades capitalistas. Para o autor, se o trabalho é o fundamento do processo do tornar-se homem (destacando-o de sua determinação natural), é, também, e ao mesmo tempo, fonte cotidiana de alienação e de mortificação dos trabalhadores, tendo em vista o esvaziamento das capacidades humanas em favor do capital.

O trabalho efetivado na coletividade capitalista traz os sinais dos mecanismos de alienação vivenciados pelos homens na contemporaneidade, um mecanismo de afastamento e

de conflito entre a riqueza material e intelectiva do ser humano e a vida de cada sujeito (alienação). Marx e Engels (2012) evidenciam que, à medida que a atividade de trabalho se esvazia, mais aproxima o homem de sua condição animal, quer dizer, o trabalho alienado não possibilita ao trabalhador o completo desenvolvimento de suas competências e capacidades, mas, sim, estimula seu empobrecimento físico-mental.

Podemos descobrir ainda muitos outros, mas o que é mais importante reter é que todos fazem parte do conceito simples, totalizando uma fração na diferença. Portanto, a partir desta concepção ontológica, o trabalho, como nos mostra Kosik (1986), não se reduz à atividade laborativa ou emprego, mas à produção de todas as dimensões da vida humana. Na sua dimensão mais crucial, o trabalho aparece como atividade que responde à produção dos elementos necessários e imperativos à vida biológica dos seres humanos, como seres ou animais evoluídos da natureza. Concomitantemente, porém, responde às necessidades de sua vida intelectual, cultural, social, estética, simbólica, lúdica e afetiva. Tratam-se de necessidades, que, por serem históricas, assumem especificidades no tempo e no espaço.

O trabalho, assim como a tarefa, é também uma atividade que permite organizar as subjetividades individuais e coletivas. Nesse sentido, as duas almejam, em seus aspectos positivos, criar espaços para que o sujeito, situado organicamente no mundo, empreenda, ele próprio, a construção do seu ser em termos individuais e sociais. Apesar disso, as duas noções comportam entre si aspectos negativos, como, por exemplo, não permitem ao trabalhador o pleno desenvolvimento de suas capacidades e faculdades, mas, sim, provocam seu esvaziamento físico e mental.