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O enfoque educacional da PSC: educação pelo trabalho ou socioeducação?

2. Fundamentação teórica

2.2. A interface SUAS e SINASE

2.2.4. O enfoque educacional da PSC: educação pelo trabalho ou socioeducação?

Antes de tudo, parece importante resgatar os antecedentes históricos implicados na conjuntura que culminaram no advento da referida medida. Sabe-se que, em meados do século XVI, o trabalho passou a ser incutido por um novo ethos, que suscitou uma abrupta mudança mundial, no cenário político, econômico e social. Diferentemente de outrora, o trabalho não está posto para a condição humana apenas como labor, subsistência, em vez disso, está especialmente dotado de valor intrínseco (Weber, 2007).

Destarte, o aviltamento do trabalho manual que, na formação da cultura ocidental, figurou, desde a antiguidade clássica, como expressão do indigno, passou a também designar, nas sociedades escravistas, em especial na cultura brasileira, a diferenciação entre as relações sociais de produção. O modo de produção escravista afastou a mão de obra livre do trabalho manual e impôs a depreciação pelos ofícios artesanais e manufatureiros, na época do Brasil Colônia e Império (Cunha, 2000). Os trabalhos cultos e eruditos eram privilégio das classes senhoriais, sobrando, à maior parte dos indivíduos livres e pobres, o trabalho braçal. Dessa maneira, a atividade manual fora abandonada pelos trabalhadores brancos e livres, de maneira que o trabalho físico era imposto aos escravos e seus descendentes, em especial aos que não possuíam meios para resistir, crianças e adolescentes.

Os preconceitos contra o trabalho manual não envolviam apenas a mera discriminação em direção a atividade física, mas também, e principalmente, contra aqueles que a realizavam. Por conseguinte, a atividade manual era definida socialmente como objeto de rejeição. Diante de tal situação, “o resultado foi o trabalho e a aprendizagem compulsórios: ensinar ofícios a crianças e jovens que não tivessem escolha” (Cunha, 2005, p. 23). Dessa forma, sob o delineamento de diversos projetos e programas de ensino,5 se desejou a instrução de crianças para a construção de um país em que as estruturas e as desigualdades sociais continuassem inalteradas, sob o pretexto de uma educação elementar comum e de uma cidadania administrada e restrita para a grande parte da população (Schueler, 1999).

Na transição do trabalho escravo para o livre, ocorre a emergência histórica da separação entre trabalho e educação.

A partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho (Saviani, 2007, p. 155).

Durante o caminho do império para a república, a conjuntura política e social, no início do século XX, era demasiadamente conturbada. Nesse contexto, se estabelecia a inquietação com a “delinquência” juvenil. A ênfase no combate à situação irregular das crianças e adolescentes agregava uma concepção mais extensa de controle social, político e cultural. Nesse diapasão, o ensino de ofícios artesanais e manufatureiros se revestiu de uma aparência educacional/correcional com o fim de auxiliar e reabilitar a infância pobre e criminalizada (Pilotti & Rizzini, 2011).

5 Ver Colégio das Fábricas (1808) (Recuperado de http://linux.an.gov.br/mapa/?p=3451); Instituto de Menores

Artesãos da Casa de Correção da Corte (1861) (Recuperado de http://linux.an.gov.br/mapa/?p=7419); Asilo dos Meninos Desvalidos (1874) (Recuperado de http://linux.an.gov.br/mapa/?p=7459).

Sob essa atmosfera, vigorou, nas instituições de internamento infantojuvenil do século XX, o trabalho manual e físico, como prática de “ressocialização”. Neste ínterim, originaram- se as entidades que se utilizavam do trabalho como elemento educativo, disciplinador, formativo e reabilitador (Londono, 1997; Passetti, 1997). Assim, as instituições disciplinares, orientadas a partir do art. 202 do Código Mello Mattos, poderiam oferecer o aprendizado de diversos ofícios, como, por exemplo: costura e trabalhos de agulha; lavagem de roupa; engomagem; cozinha; manufatura de chapéus; datilografia; jardinagem, horticultura, pomicultura e criação de aves (Decreto nº 17.943-A, 1927).

É oportuno consignar que que tal proposta não se fundamenta no projeto educacional de Educação pelo Trabalho, implantado pelo pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa (Costa, 2006), que consiste em um processo formativo com vistas a promoção de uma cultura da trabalhabilidade. Ao contrário, o trabalho é concebido como mecanismo de conservação do

status quo vigente, que mirava o desenvolvimento de mão de obra barata, disciplinada e com

escassa capacidade reivindicativa (Foucault, 1999).

Em 1985, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), na sua resolução 40/33, estabelece as Regras de Beijing e convida os Estados membros a adaptarem, quando possível, as suas leis, normas e políticas nacionais, assim como a dá-las a conhecer. As regras, entre outras coisas, enumeram práticas importantes adotadas com sucesso em diferentes sistemas jurídicos, para evitar, tanto quanto possível, o internamento. Assim, as autoridades competentes são encorajadas a segui-las e aperfeiçoá-las. Nessa vereda, a AGNU assevera que a prestação de serviços à comunidade “deve ser sistematicamente planificada e implementada e fazer parte integrante do esforço de desenvolvimento nacional” (Resolução 40/33, 1985).

Paralelamente ao processo internacional de reestruturação da Justiça da Infância e da Juventude, o período de redemocratização brasileira (1985-1988) se caracterizou pela

internalização de uma série de normativas mundiais e nacionais para elaboração e implementação de políticas sociais destinadas ao atendimento à criança e ao adolescente (Passone & Perez, 2010). Assim, diversos marcos legais foram estabelecidos para a elaboração de um novo padrão político, jurídico e social de justiça juvenil.

Neste passo, o ECA (Lei nº 8.069, 1990) estabeleceu uma nova base doutrinária, que resultou na total interrupção da norma menorista e, por consequência, instaurou uma nova diretriz em relação ao que deve ser feito para encarar as circunstâncias de violência que envolvem adolescentes em conflito com a lei. Desta feita, o Estatuto institui um padrão de responsabilidade juvenil assentado na Doutrina da Proteção Integral e, diante de tal sorte, dá- se início o emprego da PSC no contexto socioeducativo. Conforme a letra da lei, a medida incide na imputação de tarefas gratuitas e ocorrerá em entidades públicas ou em estabelecimentos congêneres, tal qual em programas comunitários ou estatais. Sob a égide do Direito Penal Mínimo, a medida guarda coerência com a pedagogia socioeducativa e opõe-se aos exemplares de justiça fundamentados na perspectiva correcional e repressora (Bandeira, 2006).

Sendo assim, pressupõe-se que o serviço comunitário se trate do provimento de utilidades, dispostas para a satisfação das necessidades gerais (Lei nº 8.069, 1990). Portanto, deve ser considerado como prestação de serviços as tarefas de relevância pública, que ambicionem uma dinâmica educativa que beneficie a eclosão de novas competências e integração social (CONANDA & SEDH, 2006).

Pelo exposto, vimos que a análise dos dispositivos sociais e conceituais que motivaram o trabalho e o ensino de ofícios às, então denominadas, crianças “pobres” e/ou “desvalidas” evidencia sua relação com o contexto de transformação das relações de trabalho e, consequentemente, com o uso e a exploração da força de trabalho infantojuvenil e a manutenção do status quo. Nesse âmbito, a (re)introdução dos serviços e tarefas na gestão do

atendimento da justiça juvenil significa um aparente avanço na administração da Justiça da Infância e da Juventude, especialmente em atenção à restauração das relações, a reorganização dos envolvidos e ao empoderamento do coletivo social. Apesar disso, resta ainda incerto se tal medida não se trata de uma nova técnica coercitiva empregada para reprimir a juventude envolvida com atos infracionais.