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6. Análise dos dados obtidos

6.2. Resultados obtidos na fase qualitativa

6.2.1. Perfil de caracterização dos participantes

Dois2 adolescentes participaram da fase qualitativa, após estabelecimento de contatos preliminares, em que se lhes explicou o que deles se esperava. Os elementos de informação oriundos desta etapa de análise tiveram o intuito de complementar as informações oriundas do corpo de análises descritivas, a partir de um olhar voltado para as vivências dos entrevistados. Os participantes foram convidados a integrar o estudo por meio de contato telefônico, a partir de registros do Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) da Secretaria de Trabalho e Assistência Social da Prefeitura do Natal. As entrevistas foram realizadas nas dependências do referido serviço.

O participante 1 (P1), apreendido pela prática de um roubo majorado,3 cumpriu a PSC em 2015, durante seis meses, época em que contava com 17 anos. Consta no PIA que, ao longo desse tempo, foram-lhe atribuídas/ofertadas as funções de conservação e limpeza em uma escola municipal. À época, o jovem residia na região oeste do município, a renda mensal familiar era inferior a 1 salário mínimo e ele não frequentava instituição de ensino. O

2 Acredita-se que o pouco efetivo de participantes deve-se ao desejo de esquivar-se da reconstituição de aspectos

e vivências de problemas ou situações que podem gerar algum tipo de estresse.

3 O roubo majorado caracteriza-se pelo emprego de arma e/ou na companhia de outro(s) (Decreto-lei nº 2.848,

participante 2 (P2) teve ato infracional igualmente tipificado como roubo majorado e cumpriu a PSC em 2015, durante seis meses, contando, então, com 17 anos. Foram-lhe conferidas funções administrativas em uma unidade de proteção social básica do serviço socioassistencial do município. Naquele tempo, estava domiciliado na região norte da cidade, apresentava renda mensal familiar inferior a 1 salário mínimo e frequentava o ensino médio.

6.2.2. Causas

Segundo registros, os entrevistados passaram a se envolver com atos infracionais quando tiveram contato com drogas, para a manutenção do consumo.

Comecei fumando maconha e logo fui me envolvendo. Estava com vontade de experimentar, mas não fiquei viciado. Usava pouco, era mais antes de ir para o crime. Meu negócio mesmo era dinheiro. Procurei emprego, mas não consegui. Tinha que ter estudo, aí fui roubar. (P1)

Eu fumava maconha. Fumei uma, duas, três e fui me viciando. Comecei a usar todo dia, duas vezes no mesmo dia e foi só aumentando. Quando a pessoa que me dava foi presa, até hoje ele se encontra no sistema penitenciário, aí eu já comecei a fazer algumas coisas erradas: tentar fumar maconha, cheirar cocaína e papel. Certo tempo, eu comecei a traficar. Quando vi que o tráfico não estava dando certo, comecei a praticar assaltos. (P2)

6.2.3. Tarefas prescritas

Quando convidados a apresentar narrativas sobre acontecimentos ou situações acerca das regras e objetivos fixados pela equipe técnica de atendimento socioeducativo, em relação à proposta de engajamento na PSC, ficou evidente o desconhecimento dos adolescentes- participantes acerca das atribuições, responsabilidades e especificações das tarefas que lhes foram atribuídas:

Pensei que iria assinar só a presença. Quando disseram que tinha que trabalhar, então pensei que iria para a horta, igual o povo faz na prisão. Ela [profissional do CREAS] falou que seria um trabalho, tipo um ajudante ou ASG. Disse que o guia socioeducativo4 passaria o serviço e pronto. Na escola, a educadora de referência5 disse para acompanhar a ASG e assim comecei. (P1)

Fiquei um pouco nervoso, porque não sabia o que aconteceria. Eu achava que se errasse voltaria preso. Mas eu vi que aqui é uma ajuda, a ajuda que eu precisava. As pessoas me receberam bem, me explicaram o serviço e me deixaram a vontade para fazer. (P2)

6.2.4. Tarefa real

Os relatos dos participantes evidenciam o caráter empobrecido das tarefas efetivamente realizadas:

Foi como eu se eu tivesse trabalhando de ASG. Eu ajudava no que eu podia: varria uma sala, organizava as cadeiras, colocava o garrafão de água no bebedouro, pegava os pesos que as merendeiras não podiam. Era só pedir que eu fazia. Já trabalhei na roça, limpando mato, esses negócios. (P1)

Eu fazia a digitação e entregava as fichas para o pessoal que vinha chegando, ficava no atendimento. (P2)

6.2.5. Avaliação da PSC

A medida foi, para ambos, vivenciada como oportunidade para atribuir novos significados à trajetória pessoal, tanto positivos quanto negativos: para P1, a medida contribuiu para atenuar sua situação envolvendo as necessidades da vida cotidiana, como

4 Guia socioeducativo é a designação dada ao profissional do local de prestação de serviço diretamente

encarregado do acompanhamento da atividade realizada pelos adolescentes (SEDH & CONANDA, 2006).

5 Educadora de referência é a profissional de nível superior ou com função de gerência ou coordenação, nos

locais de prestação de serviço comunitário, responsável geral tanto pelo acompanhamento dos adolescentes prestadores de serviço comunitário quanto pelo funcionário guia (SEDH & CONANDA, 2006).

alimentação, ao mesmo tempo que lhe atraía atributos negativos relacionados à periculosidade e indesejabilidade. Para P2, a PSC privilegiou a descoberta de novas potencialidades, direcionando seu futuro construtivamente.

Fui bem recebido, soube agradar. Foi bom! Foi uma oportunidade. Devido o que eu fazia, assalto, o povo me interpretava mal. Eu não esperava ser recebido daquela forma, fui bem recebido, apesar do que eu fiz e de com quem eu estava, ele era bem conhecido lá na comunidade. Me senti bem na presença deles, porque quando eu ia lá eles me davam café, me ajudavam, sabe? Se eu estava precisando de um negócio, um dinheiro emprestado, eu pedia emprestado, eles me davam. Me ajudaram bastante. Teve uns momentos que foram difíceis. As crianças ficavam dizendo as coisas, ficavam dizendo: “oh! o vagabundo”, “oh! o ladrão”, aí aquilo ia me deixando mais tenso, com vontade de desistir, mas não podia, tinha que cumprir. (P1)

A PSC foi muito importante, pois me mostrou que posso realizar um bom trabalho, ser útil e que tenho valor. Lá eu aprendi a ter responsabilidade, fui bem recebido, aprendi a praticar determinadas funções em equipe, a cumprir horário. Aprendi que, como eu, todos devem ter uma segunda chance. (P2)

6.2.6. PSC e perspectivas de inclusão social

Os comentários, aqui, reconhecem a ajuda e o apoio representados pela PSC, com nuances relacionadas à carência de formação técnico-profissional e à escassez de oferta de empregos:

Para a vida do crime de novo, nunca mais. Não vale a pena. Estou à procura de emprego, espero conseguir, para me virar. A medida ajudou, né? Trabalhei lá na escola, mas não me deram nenhum curso que me ajudasse. O que fiz lá eu já sabia, era costumado. Quando a gente sai, não tem o que fazer. (P1)

Hoje já faço alguns trabalhos que aprendi no curso, quero terminar os estudos e fazer o Enem esse ano. A medida foi boa, porque tive a oportunidade de estar perto de pessoas que acreditavam em mim. (P2)

Tal como apontado nos dados quantitativos (seção Tarefas), os depoimentos assinalam que as tarefas são prescritas sem esclarecimento prévio e sem pactuação com os próprios sujeitos. A atividade proposta é, frequentemente, desconhecida pelo adolescente até seu efetivo início e, por consequência, a subprescrição da tarefa conduz a explicações, crenças e

ideias que evocam no adolescente representações relacionadas ao caráter de quitação de “débito” com a justiça, preponderantemente à perspectiva de inclusão social por meio do trabalho.

As transcrições das entrevistas com os adolescentes P1 e P2 evidenciam, ainda, certa pobreza das tarefas prescritas, notadamente em termos de qualificação e competências necessárias à sua realização. Esse não é o espírito da norma enquanto prescrição, mas o exame dos dados oriundos dos PIAs, assim como das transcrições das entrevistas, permite avaliar certo caráter de “trabalho vazio” (Lhuilier, 2005). Pode-se inferir, interpretativamente, dos relatos de P1 e P2, que a PSC tem méritos sociais importantes (P2: “(...) A medida foi boa, porque tive a oportunidade de estar perto de pessoas que acreditavam em mim.”), ao mesmo tempo em que submete os adolescentes participantes a uma atividade que aparece, para eles próprios, como pouco qualificada (P1: “Foi como eu se eu tivesse trabalhando de ASG. Eu ajudava no que eu podia: varria uma sala, organizava as cadeiras, colocava o garrafão de água no bebedouro, pegava os pesos que as merendeiras não podiam. Era só pedir que eu fazia. Já trabalhei na roça, limpando mato, esses negócios.”).