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A PRIMEIRA OBRA: ABRINDO CAMINHOS E CONTROVÉRSIAS

CAPÍTULO 3 AS IDEIAS, OS IDEAIS E OS PENSAMENTOS: OUSADIA E

3.1 A PRIMEIRA OBRA: ABRINDO CAMINHOS E CONTROVÉRSIAS

Nísia Floresta tinha motivos de sobra para ir ao lado contrário daquela sociedade que vivia e acompanhava, submetendo as mulheres e demais classes a papeis subalternos. Para isso usou seu talento para fazer o que sabia de melhor: escrever. Em 1832 escreve seu primeiro livro ao qual deu o nome de ‘Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens’. Como já dissemos, ela mesma disse que era uma ‘tradução livre’ do livro de Mary Woolstonecraft (1759-1797), o que gerou dúvidas e discussões.

Era uma obra que abria caminhos e mostrava a insatisfação das mulheres de seu tempo no Brasil, passando a partir deste momento a usar o pseudônimo que a caracterizaria e levaria para o resto de sua vida. Mas para entendermos o significado deste livro, é importante conhecer quem foi a autora inglesa que inspirou Floresta..

Segundo o Almanaque Histórico (BARBOSA, 2006, p. 19), Mary sempre lutou pelos direitos das mulheres, contagiada que foi quando era correspondente de um jornal londrino em Paris, em 1792. Seu livro, ‘Em defesa dos direitos da mulher’ (Vindication of the Rights of Woman) foi considerado a primeira carta do feminismo moderno. Um livro produzido em apenas seis semanas e que respondia à Declaração Universal dos Direitos dos Homens, reivindicando a emancipação feminina e objetivando um destino desatrelado do marido e filhos. Seu nascimento coincidia com a vigência do Ato de Harwicke39 que limitava em muito o sexo feminino. A especialista em história das mulheres, a historiadora Michelle Perrot40 cita em seu livro o filósofo francês Sylvain Maréchal (1750-1803), quando este refere-se às mulheres com enorme ênfase no papel que elas deveriam desempenhar: “Quer a razão que as mulheres não metam jamais o nariz num livro, jamais a mão numa pena”. Mary _______________

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Ato que dava ao marido amplos poderes sobre a esposa, sendo esta desprovida de direitos patrimoniais, direitos sobre os filhos e até mesmo do direito à proteção a integridade física dentro de sua própria casa. Mary Woolstonecraft e Nísia Floresta: diálogos feministas. Raquel Martins Borges Carvalho Araújo, licenciada em Letras pela Universidade de Brasília, 2010, p. 2. Disponível em: <http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/256/210.pdf>. Acesso em: 25/10/2013.

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(figura 5) que viveu na França durante a Revolução, pregava a mesma ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, que caracterizou aqueles tempos, para as mulheres também.

Figura 5 - Mary Woolstonecraft

Fonte; Almanaque Histórico

Percebe-se a contradição entre o que pregava o liberalismo então vigente entre os principais intelectuais franceses e o espaço privado a que as mulheres se viam prisioneiras. A própria revolução tentava delimitar o espaço ocupado pelos diferentes sexos. O questionamento que surge é como este processo pode ser controlado se o seu lema principal diz exatamente ao contrário. As revoluções caracterizam-se por mudanças em toda a sociedade. Segundo Raquel Araújo (2010, p. 4) “as contradições, por anos abafadas, ressurgem fortes; afinal, como falar de liberdade, igualdade e fraternidade se não é relegada a condição de cidadão à metade dos seres humanos?”.

Mesmo assim, a educação e o contexto europeu eram bem diferentes da nossa realidade. Essa particularidade não tira o mérito de Nísia ter feito em sua primeira obra uma adaptação do livro de Mary, pelas peculiaridades que apresentava o mundo cultural brasileiro e aquela sociedade fortemente marcada pelo patriarcado. O historiador Boris Fausto41 cita em

seu livro o forte papel desempenhado pela igreja no período:

[...] como tinha em suas mãos a educação das pessoas, o controle da alma na vida diária, era um instrumento muito eficaz para veicular a ideia geral de obediência e, em especial, a de obediência ao poder do Estado.

Portanto, é prudente salientar que há uma linha separatória entre as duas obras, mas pontos em comum, como a busca de direitos das mulheres frente às situações que se

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desenhavam. Nísia buscava uma crítica à situação da mulher brasileira, enquanto Mary dirigia sua obra ao público europeu.

É interessante mostrar a opinião de duas estudiosas sobre as comparações efetuadas entre as obras das duas escritoras. Janaína Fontes42 afirma que,

Em Vindication of the Rights of Woman, manifesto escrito com ardor em apenas seis semanas, Woolstonecraft expressa com impetuosidade suas visões sobre a real e crua situação das mulheres na época, quando a esperança de mudança radical se espalha pela Europa com os desdobramentos da Revolução Francesa.

Em contrapartida, a brasileira Constância Duarte considera esta antropofagia literária43 não uma opção, mas uma ‘fatalidade histórica’44. Diz ela:

Vejo-o como uma resposta brasileira ao texto inglês; a nossa autora se coloca em pé de igualdade com a Woolstonecraft e até com o pensamento europeu, e cumprindo o importante papel de elo entre as ideias europeias e a realidade nacional. (DUARTE, 1997, p. 3)

Estas diferenças de ideias criaram, em cada uma, obras direcionadas à realidade de seus respectivos contextos. Enquanto na Europa Woolstonecraft tornava seu manifesto em defesa da igualdade e liberdade, pois eram requisitos para a mudança estrutural que começava a varrer o velho mundo, Nísia se preocupava muito em derrubar velhos conceitos e preconceitos contra as mulheres arraizados na cultura brasileira. Mas as duas tinham em comum a educação como o caminho para atingir tais objetivos.

Nísia, com esta primeira obra, daria início a uma reação feminina mais aguda e abrangente. Por isso o título de precursora do feminismo no Brasil. De fato, ela não queria provocar uma rebelião das mulheres contra os homens, mas mostrar que as consideradas relegadas naquela sociedade também tinham sua contribuição a dar, não sendo assim tão desprezíveis quanto eles pensavam:

De quanto tenho dito até o presente não tem sido com a intenção de revoltar pessoa alguma de meu sexo contra os homens, nem de transformar a ordem presente das coisas, relativamente ao governo e autoridade. Não, fiquem as coisas no seu mesmo estado[...] (FLORESTA, 1989, p. 89)45

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42

FONTES, 2008 apud ARAÚJO, 2010, p. 8.

43A antropofagia literária consiste na apropriação do texto europeu não para produzir uma réplica, mas para

metamorfoseá-lo com elementos da cultura local. (ARAÚJO, 2010, p. 8.)

44

DUARTE, 2003 apud ARAÚJO, 2010, p. 8.

45

Talvez para não criar animosidades ao ambiente que vivia e sofrer críticas contundentes, suas palavras assim foram amenas o suficiente para poder expor suas ideias. É este lado oprimido e desfavorecido que Nísia aborda em ‘Direitos das mulheres e injustiças dos homens’. Segue um trecho de seu pensamento46:

Os homens não podendo negar que nós somos criaturas racionais, querem-nos provar a sua opinião absurda, e os tratamentos injustos que recebemos, por uma condescendência cega às suas vontades; eu espero, entretanto, que as mulheres de bom senso se empenharão em fazer conhecer que elas merecem um melhor tratamento e não se submeterão servilmente a um orgulho tão mal fundado.(FLORESTA, apud Projeto Memória BB)

Pelas circunstâncias da época não é difícil concluir que, assim como arregimentou simpatizantes à sua causa, da mesma maneira sua ‘ousadia’ causava espanto. Num tempo em que as mulheres eram relegadas ao silêncio e invisibilidade, Nísia transpôs ainda mais os seus pensamentos, principalmente quando mudou-se para a Europa e quando teve a coragem de abrir um colégio somente para meninas no Rio de Janeiro.

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