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NÍSIA: A VIAJANTE E OS INTELECTUAIS

CAPÍTULO 3 AS IDEIAS, OS IDEAIS E OS PENSAMENTOS: OUSADIA E

3.4 NÍSIA: A VIAJANTE E OS INTELECTUAIS

Foram longos 52 dias para a chegada de Nísia e seus filhos à Europa. Ao Brasil retornou entre 1852 e 1855. Andou por diversos países como Itália, Alemanha, Portugal, Bélgica, Grécia e Inglaterra. Como não poderia deixar de ser, ela faz comparações das paisagens europeias às brasileiras. Segundo Stella Franco (2008, p. 229) a natureza brasileira torna-se incomparável: “Ó doces reminiscências de infância! Ó imagem impagável da Pátria...! Que encanto sob o céu estrangeiro, por mais sedutor que seja, jamais vos poderá ser comparado?” (FLORESTA, 1998ª, p. 162-163)60.

Numa de suas viagens à Itália, narra um fato curioso, o qual diz ter sido vítima de preconceito europeu, que pensavam que todos brasileiros seriam índios. Veja a narrativa a seguir, quando teve que apresentar passaporte:

Entrando em uma pequena sala bastante confortável, deparamo-nos com um velho de ar doentio, que nos recebeu com grande polidez e, fazendo-nos sentar, pareceu interrogar com o olhar, muito espantado, o empregado que nos conduzira. Depois, voltando-se para nós, disse; “Perdão, senhoras, por tê-las incomodado, mas são de fato as senhoras brasileiras cujos passaportes acabo de ver?” – “Absolutamente certo” – respondi-lhe, “por que essa dúvida? Temos pressa em atravessar vosso magnífico Pó, cuja planície não me parece bem sadia” – “não, eu não duvido, senhora” – disse-me ele, “mas, chegando à minha idade sem jamais ter visto brasileiros e sabendo por seu passaporte que duas senhoras daquele país passavam por aqui, não quis perder a oportunidade de satisfazer a curiosidade, vendo as habitantes de um país de que li as descrições mais belas”. – “E as mais grotescas, a respeito de seus habitantes, não é?”, disse-lhe, interrogando-o com bonomia. “O senhor esperava ver duas boas selvagens, pitorescamente vestidas de plumas, ou mesma sem esta vestimenta, como seus ancestrais as encontraram na América e como alguns dos escritores europeus ainda se comprazem em pintar aquele povo, superior, sob muitos pontos de vista, a seus irmãos de além-mar”. – “Ai de mim! A senhora tem razão, e eu me libertei de um grande erro, no qual envelheci. Agradeço- lhe infinitamente a amabilidade, e, se tornar a passar por aqui e tiver necessidades dos serviços de alguém, peço-lhe dar preferência ao chefe”. Agradeci-lhe o oferecimento apertando-lhe a mão, que me estendeu com respeitosa amabilidade. E nos separamos: a velha Europa, espantada com sua ignorância, e a jovem América, indulgente com seus detratores. Atravessei o Pó sem o prazer que experimento ordinariamente à vista de um belo rio (FLORESTA: 1998a, p. 352 – 353).

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Era o retrato que certamente os europeus tinham do Brasil. Assim como seus colonizadores, enxergavam nossa terra como um paraíso de índios e índias. A curiosidade do alfandegário refletia um pensamento generalizado.

Mas Nísia em suas andanças fez amizades com pessoas reconhecidamente importantes dentro do mundo literário e filosófico europeu. Alexandre Herculano, escritor e historiador português, um dos principais poetas do período; Alexandre Dumas (pai); Lamartine, Duvernoy, pianista e compositor; Victor Hugo; George Sand; Manzoni, escritor e poeta italiano; Azeglio, pintor e político e Augusto Comte, com quem trocaria cartas durante um ano, quando de seu retorno ao Brasil.

Esta amizade com Augusto Comte rendeu-lhe alguns boatos, como a que dizia que eram apaixonados e tinham uma relação amorosa. Na realidade o filósofo francês tinha em Clotilde de Vaux a sua grande paixão. As cartas trocadas entre os dois eram motivos de orgulho entre os positivistas. Mas Nísia não adotou completamente esta linha de pensamento, já que, segundo DUARTE (2003)61 :

Ao fazer a sua leitura do Positivismo e ao destacar nele os pontos que mais atendiam a seus interesses intelectuais, Nísia Floresta adquiriu um certo verniz positivista que enganou a muitos que viram aí uma adesão completa. Tanto foi apenas superficial esta identificação, que não se encontra em seus escritos nenhuma outra referência a Comte ou à sua filosofia que não esteja diretamente relacionada com a melhoria da condição feminina. Ela, portanto, navegou sim nas águas positivas, mas, em determinado momento — mais precisamente na definição de uma sociedade burguesa desenvolvida e moderna — enquanto a barca de Comte parece ir para um lado, a de Nísia Floresta buscava outros portos. A dele esbarra na intolerância ao questionamento de seus "dogmas"; e na contradição patente entre o princípio do amor — "viver para outrem" — e o do autoritarismo, a que se soma a disciplina despótica da "Religião da Humanidade". E termina por naufragar quando prega o princípio de força como o fundamento necessário ao governo, e nega o pacto social e a liberdade de consciência. A barca de Nísia — felizmente, é preciso confessar — passa ao largo dessas turbulências e reencontra outros rumos que a leva em direção a um pensamento mais identificado com o liberalismo revolucionário.

Estas cartas encontram-se hoje arquivadas em dois locais: na Igreja da Humanidade ou Apostolado Positivista do Brasil estão as cartas que Comte enviou à Nísia com datas de 19 de agosto, 9 e 18 de dezembro de 1856; 18 de abril, 24 de maio, 24 e 29 de agosto de 1857. Já em Paris, na Maison d’Auguste Comte, residência do filósofo e hoje um museu, as cartas que Nísia lhe enviou: 19 de agosto e 17 de dezembro de 1856; 5 e 17 de abril , 23 de maio de 1º de julho de 1857. É fato que Nísia já bem antes, em 1851, se interessou pelas conferências de

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61 FLORESTA, Nísia. Cartas de Nísia Floresta & Augusto Comte. Prefácio e notas de Constância Lima Duarte.

Comte sobre a História Geral da Humanidade, curso pelo qual o pensador propagava seus pensamentos e que impressionou Floresta.

São mais cartas de cortesia, agradecimentos, informações sobre doenças e tratamentos. Mas, pela análise de Duarte (2003), estas cartas vão além deste conteúdo. Trazem particularidades da amizade que os unia, bem como admiração mútua e respeito intelectual. A figura 8 nos mostra uma carta de Nísia, datada de 17 de abril de 1857

Figura 8 - Carta de Nísia ao filósofo Comte

Fonte: Duarte (2006, p. 60).

A seguir, trechos de uma carta de Nísia ao filósofo e deste para Nísia, pontos que podem ser utilizados para conhecer melhor um pouco mais a história pessoal e intelectual de ambos e mesmo a época. Fragmento de uma carta de Nísia, de 19 de agosto de 1856:

Senhor,

Uma leve indisposição que me acometeu no dia seguinte àquele em que tive o prazer de vê-lo e o estado de saúde de minha filha querida, que depois se agravou, me impediram de ir, tão logo quanto o desejara, exprimir-lhe, de viva voz, minha gratidão pela felicidade de que o senhor me fez desfrutar ao me enviar sua fotografia. Oferecida pelo senhor mesmo, ela se torna duplamente preciosa à estrangeira (...)62.

Em uma carta de 24 de agosto de 1857, Comte dirigiu-se à Nísia realçando sua amizade e uma descrença com a medicina, mostrados com os pedidos de Floresta para que o filósofo se cuidasse:

Minha Senhora,

Em resposta à sua carta, muito afetuosa, porém pouco judiciosa, posso limitar-me a desenvolver a minha profunda convicção de que, se me tivesse infelizmente submetido às preocupações vãs emanadas da ciência falaz das ‘notabilidades médicas’, estaria atualmente morto. Sr. Audiffrent, que veio generosamente de Marselha para certificar-se sobre o meu estado, admitiu por completo esta opinião; deixou-me na última segunda feira, depois de doze prolongadas visitas diárias, plenamente tranqüilizado quanto à minha convalescença longa e trabalhosa, porém já certa e gradual, dentro de um mês ela acabará lá para os fins de setembro, sem a menor intervenção medical. (...)

Depois de me haver libertado da teologia, da metafísica e mesmo da ciência, conservando somente delas o que cada uma tem de incorporável ao positivismo, emancipei-me finalmente da medicina; o que não podia ter lugar pelos melhores discursos, porém por uma conduta decisiva, num caso verdadeiramente grave.63

Não demoraria muito para que esta doença que acometia Comte o matasse. Em 5 de setembro daquele ano falecia o filósofo e amigo. Nísia foi uma das quatro mulheres que acompanhou o cortejo fúnebre até o cemitério de Père Lachaise, em Paris.

Mas o que houve em comum entre os dois foi o pensamento de que a educação e a valorização feminina eram fundamentais para buscar a igualdade de direitos. Nísia permaneceu independente em suas ideias, apesar da forte amizade. A identificação com o positivismo foi então através da supremacia feminina, de acordo com seus interesses, luta que já travava bem antes.

A produção literária de Nísia na Europa foi muito grande, fruto de suas viagens e impressões. Visitou as grandes cidades europeias e viajar era quase como um bálsamo para ela, como deixou escrito:

Viajar, repito-lhes, é o meio mais seguro de aliviar o peso de uma grande dor que nos mina lentamente. Desde que deixei Paris para visitar a Bélgica e a Alemanha, os _______________

62 Cf. Cartas de Nísia Floresta & Augusto Comte, p. 63. 63 Ibidem, p. 93-94.

dias não mais parecem ter a lentidão que me matava. (FLORESTA, apud DUARTE, 2006, p. 63)

Pelo olhar atento de Duarte (2006, p. 64), o que realmente importa para ela e seus leitores são as impressões diante do que vê. E, como ocorre em quase todos os seus livros, a narradora confunde-se com a autora e não esconde a condição biográfica da escritura. Ao contrário, revela-a com informações precisas de sua vida, como o nome dos filhos e dos irmãos, as datas de morte da mãe e do esposo, além de muitas outras inúmeras referências passíveis de serem confirmadas em sua biografia64. A figura 9 mostra seu último endereço em Paris.

Figura 9 - Último endereço em Paris, Rua Royer Collard, 9

Fonte: Duarte (2006, p. 58).

Quando aconteceu a Comuna de Paris65 em 1871, Nísia viu-se envolvida naquele ambiente conturbado e sangrento. Entre os combates, teve as janelas e portas de seu apartamento quebradas. Com ajuda de amigos, conseguiu hospedagem em cidade do interior da França. Por solicitação da família retornou ao Brasil, ficando por lá somente sua filha

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64 DUARTE. Fotobiografia, p. 64.

65 Governo paralelo ao governo republicano francês que pretendia estabelecer a ditadura proletária defendida

pelos princípios socialistas. Disponível em: < http://www.mundoeducacao.com/historiageral/comuna-paris.htm>. Acesso em: 30/10/2013.

Lívia, que não sentia tantas saudades das terras brasileiras. Após uma breve estada por aqui, retornou à Europa.

Em 1875 retorna ao velho mundo. Vai primeiro para Londres, onde a filha morava. Após, irá morar numa cidade chamada de Ventnor, conhecida como a ‘Nice britânica’.

Neste mesmo ano recebe a notícia da morte do irmão, Joaquim. No ano de 1878, a última obra da autora: Fragmentos de uma obra inédita: notas biográficas. Muda-se, então, para uma cidadezinha medieval francesa chamada Rouen, famosa por ser palco da morte de Joana D’Arc e terra de Flaubert. Neste seu último livro, Nísia homenageia a irmã, e dedica boa parte dele a falar do irmão Joaquim, além de lançar alguns dados biográficos.

Nísia faleceu num dia de muita chuva, em uma quarta-feira. Aquela mulher batalhadora, pensadora e defensora da liberdade e igualdade entre os gêneros partia já cansada de tantas injustiças que enxergava. Foi enterrada num cemitério local, chamado de Bonsecours. A figura 10 mostra seu último endereço.

Figura 10 - Último endereço de Nísia, Grande Route, 121

Seus filhos Augusto e Lívia morreram, respectivamente, em 1889 e 1912, não deixando nada dos pertences da grande escritora. O Museu Nísia Floresta, localizado na cidade de mesmo nome, no Rio Grande do Norte, foi erguido para lembrar a autora que deu nome à cidade e constantemente realiza oficinas e encontros para manter viva a memória de Nísia Floresta Brasileira Augusta.

Muitas homenagens foram realizadas aqui no Brasil para marcar a passagem da ousada Nísia. Além de medalhões de bronze, feitos em Paris, que estão hoje numa praça em Natal desde 1911, selos, placas e Medalha de Mérito criada pelo Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres e das Minorias de Natal, a primeira turma que formou-se na Escola Doméstica de Natal em novembro de 1919, teve no discurso de Manuel Oliveira Lima seu ponto culminante. Diz o escritor: “a mais notável mulher de letras que o Brasil produziu, quer pela amplitude da visão, quer pela suavidade do estilo66”.

Mas o Brasil queria trazer Nísia para casa. Assim, em 23 de junho de 1953, pela lei 1.892, o governo foi autorizado a fazer o traslado da escritora e levá-la ao mausoléu construído para ela. Muita divulgação, notícias em jornais e panfletos jogados sobre a cidade de Nísia Floresta. Interessante o testemunho67 do Dr. Nilo Pereira, quando da chegada:

O fim dessa peregrinação aí o temos. É ela afinal que volta. E todos nós voltamos com ela, porque fomos buscá-la no seu último retiro solitário e dizer-lhe que era tempo de repousar. O corpo quase intato denota – quem sabe! – a espera longa e ansiosa. (Revista Bando, janeiro de 1955, p. 135)

E assim repousava por definitivo a admirada Nísia. Mas seus escritos e palavras ainda ecoam em defesa dos menos privilegiados e da mulher como uma eterna lutadora pelos seus direitos.

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DUARTE, 2006, p. 84.

3.5 REALIDADE À MOSTRA: PALAVRAS OUSADAS, ESCRITOS QUE

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