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A primeira parte: os estatutos das Filhas de Maria

CAPÍTULO 2 – ASCENSÃO E QUEDA DAS FILHAS DE MARIA

2.3.1 A primeira parte: os estatutos das Filhas de Maria

A primeira parte do Manual é aberta com uma gravura da Imaculada Conceição46 no topo da página e, em seguida, inicia o texto dos estatutos da Pia União das Filhas de Maria. No capítulo I, são elencados os quatro objetivos da entidade, listados no item “fins da associação”, que são estes: “1. Prestar culto especial à Maria Santíssima; 2. Promover o adiantamento de

44 Existiu, no passado, um manual de grande volume, com mais de 600 páginas, que também era adquirido pelas

moças quando do ingresso na entidade, conforme ANDRADE (2008). Porém este, de menor volume, foi editado anos mais tarde, para facilitar o manuseio e o transporte para qualquer lugar.

45 Etimologicamente, o termo indulgência se originou a partir do latim indulgentia, que significa “bondade”, “para

ser gentil” ou “perdão de uma pena”. Segundo o dicionário Aurélio (2008), indulgente significa “pronto a perdoar”, condescendente, complacente.

46 A Imaculada Conceição ou Nossa Senhora da Conceição é, segundo o dogma católico, a concepção da Virgem

Maria sem mancha do pecado original – “não concebeu por meio de sêmen, mas de um sopro místico” (DE VARAZZE, 2003, p. 244).

seus membros na prática das virtudes cristãs; 3. Assegurar a perseverança na pureza dos costumes; 4. Preparar as Filhas de Maria para o estado a que tiverem vocação” (RÖWER, 1953, p. 19-20).

Em vista disso, certamente as participantes eram influenciadas a venerar Maria Santíssima e a preservar as virtudes cristãs, mantendo sempre em seus atos a pureza dos costumes, que perpassava, sem dúvida, pela conservação da virgindade. Por conseguinte, a associação preparava a adepta para a “vocação”, seja esta voltada para a vida religiosa consagrada ou para a vida leiga – posteriormente, se assim quisesse, como mulher casada.

No capítulo II, por sua vez, é explicado como compõem-se a diretoria de uma Pia União, com três categorias de associadas: a primeira formada por aspirantes – que buscavam ser admitidas como Filhas de Maria, mas que poderiam atingir tal grau após determinado tempo dentro da entidade e se cumprissem todas as regras já citadas; a segunda formada pelas Filhas de Maria propriamente ditas, e a terceira de Filhas de Maria por devoção. No caso das admitidas em Nova Trento, não há menção quanto a terceira categoria, embora acredita-se que tenha existido naquela comunidade.

A diretoria era formada por um diretor, que deveria ser o vigário ou o capelão, ou um outro padre escolhido para isso (RÖWER, 1953, p. 20). Eram, ainda, nomeados por aclamação/eleição: uma diretora e uma vice-diretora, presidente e vice-presidente, secretária, tesoureira, conselheiras – tantas quantas o diretor, juntamente com a diretora, achassem necessário), sendo que uma delas era nomeada mestra das aspirantes e, se fosse necessário, uma zeladora para o “culto divino”.

Para a admissão das aspirantes à Filha de Maria eram pontuadas quatro regras principais a serem cumpridas: que a moça tenha manifestado especial amor à Maria Santíssima; que tenha assistido algumas reuniões; que seja ela de conduta honesta e louvável; que obtenha no conselho a maioria dos votos em favor da sua admissão (Ibidem, p. 21). Há ainda a informação de que o diretor poderia admitir – em casos extraordinários – uma candidata, mas esta não poderia ter sido recusada pela maioria do conselho. Como aspirantes, elas possuíam todos os direitos, privilégios e indulgências de uma Filha de Maria, mas não podiam votar e nem ser votadas quando ocorressem as eleições da diretoria.

Uma aspirante também tinha como regra o uso de um distintivo: uma medalha da Pia União benta com indulgência plenária, conforme estabelecido por Pio IX, em 26 de março de 1867 (RÖWER, 1953, p. 21). Esta medalha era posta no pescoço dessa aspirante à Filha de Maria, pendente por uma fita de cor verde. Na insígnia havia a imagem da Virgem Maria sobre um globo, com os braços abaixados e as palmas das mãos voltadas para frente, sendo que, de

suas mãos, emanavam luzes. Ao redor desta imagem constava a frase: “Ó Maria concebida sem pecado”, juntamente com esta: “Rogai por nós que recorremos a vós”, contendo ainda o ano de 1830 talhado nela. Na parte posterior da medalha havia uma letra M, concomitantemente com uma cruz, tendo esta um traço na base e, abaixo deste símbolo, dois corações: um representando Jesus – cercado por uma coroa de espinhos – e o outro representando Maria, com uma espada atravessada. Além disso, a parte de trás da medalha era adornada com 12 estrelas e dois ramos de oliveira, em ambos os lados.

Figura 3 – Fita e medalha das aspirantes à Filha de Maria, década de 1950, em Nova Trento – parte da frente - pertencente à Elvira47

Fonte: Elis Facchini (2018)

No Manual da Pia União das Filhas de Maria, há a explicação de que a imagem de Maria na medalha é da “Santíssima Virgem das Graças acolhendo as suas filhas” (RÖWER, 1953, p. 21). Ela está sobre um globo terrestre, pois para os fiéis esta é considerada a rainha da

47 Optou-se por alterar os nomes das entrevistadas, para manter em sigilo as fontes. Um quadro, com um breve

terra e de todo universo. Já os raios de luz simbolizam as graças concedidas àqueles que são seus devotos. Além disso, a data de 1830 marca o ano das aparições de Nossa Senhora das Graças, na França, à Santa Catarina de Labouré48. A frase “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós”, é uma curta oração que deveria ser repetida constantemente por toda Filha de Maria. Por sua vez, no reverso da medalha o grande “M”, tendo sobre si uma cruz, é a inicial do nome de Maria, e a cruz simboliza Jesus Cristo, que morreu por todos os cristãos. Os dois corações que vêm logo abaixo deste símbolo também possuem um significado especial para os católicos: o da esquerda, envolto por uma coroa de espinhos, simboliza os pecados e as más ações dos cristãos, dissipados pelo sofrimento de Jesus; O da direita, o coração atravessado por uma espada tem como significado a dor sentida por Maria diante da paixão de cristo. E, por fim, as doze estrelas aí retratadas, adornadas por ramos de oliveira, representam a coroa que adorna a mulher revestida de sol, com a lua abaixo de seus pés, descrita no livro do Apocalipse (12: 1). Estas estrelas simbolizariam os cristãos – com as 12 tribos de Israel – e os descendentes dessa mulher seriam as pessoas obedientes em Jesus (Apocalipse 12:17).

O capítulo II tem continuidade com o ponto sobre as Filhas de Maria “propriamente ditas”, admitidas se cumprissem quatro regras: a candidata deveria ter recebido a primeira comunhão; ter sido aspirante por pelo menos três meses; ter assistido às reuniões mensais; e ter tido conduta boa e exemplar, além de ter obtido a maioria dos votos do conselho (RÖWER, 1953, p. 22). Da mesma forma que as aspirantes, elas também utilizavam uma medalha como Filha de Maria – com os mesmos símbolos citados anteriormente, mas a fita desta vez era da cor azul celeste. Este distintivo era entregue solenemente em uma cerimônia de diplomação como Filha de Maria, que geralmente coincidia com a data de celebração da Imaculada Conceição: 8 de dezembro de cada ano.

Ao final, são listadas as informações sobre as “Filhas de Maria por devoção”, categoria pertencente às “donzelas que, sem poderem frequentar a Pia União, desejassem gozar das suas vantagens espirituais; e às viúvas” (Ibidem, p. 22). O manual destaca as vantagens de participar desta categoria, como o direito em assistir às reuniões e demais atos religiosos, usando a

48 Foram duas aparições de Nossa Senhora das Graças, no ano de 1830, conforme história da Igreja Católica.

Segundo esses relatos, a Virgem se manifestou contrária aos pecados do mundo, oferecendo perdão e misericórdia à humanidade pecadora e prevendo severos castigos, caso não se convertesse. Mas também anuncia que, após esses castigos, viria um triunfo esplendoroso do bem. Observação: para a construção desta nota, foram feitas várias pesquisas, até mesmo junto ao livro do DE VARAZZE (2003), porém não encontramos referências à Nossa Senhora das Graças, até porque existem inúmeras “Nossas Senhoras”. Por isso, optamos por descrever esta santa a partir de dados obtidos junto aos sites de cunho católico, como o do Santuário Nacional de Aparecida (www.a12.com).

medalha com a fita azul, bem como o gozo das indulgências e outros benefícios espirituais. Porém, nas eleições elas não poderiam votar e nem ser votadas, diferentemente de uma Filha de Maria propriamente dita.

Figura 4 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte da frente – pertencente à Elvira

Fonte: Elis Facchini (2018)

No capítulo III do Manual da Pia União das Filhas de Maria estão listadas as atribuições da Diretoria Geral da entidade, especificando as atividades para os cargos de diretor, diretora, presidente, secretária e tesoureira. No que compete à diretoria, é citada pela primeira vez a palavra “expulsão”, que deveria ser decidida perante os “membros indignos” (RÖWER, 1953, p. 23), ou, neste caso, às moças que não cumprissem as normas previamente definidas.

Aqui convém dar destaque à diferença entre os cargos de diretor e diretora da instituição. O primeiro, conferido a um vigário, tinha como competência presidir todas as reuniões, dirigir as sessões, propor matérias de deliberação, subscrever as atas e os diplomas das associadas, e presidir o retiro anual. Já a diretora era também responsável por presidir as

reuniões e aos diversos exercícios da Pia União, em caso de ausência do diretor, porém esta exercia forte vigilância sobre os membros do conselho e sobre todas as participantes (Ibidem, p. 24). Ela também ficava responsável por avisar e corrigir uma associada que não procedesse corretamente, avisando o diretor caso fosse preciso. Essa era a função de Amábile Lúcia Visintainer ou Madre Paulina quando assumiu o posto de primeira diretora da entidade, em 1902. Zelar pelas moças que faziam parte da associação era uma tarefa essencial, afinal era necessário preservar a pureza e a virgindade dessas jovens, conforme visto anteriormente. Além disso, era comum que esta função fosse cumprida por uma religiosa. Em Nova Trento, o cargo geralmente era ocupado por alguma Irmã pertencente à Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição.

Figura 5 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte de trás – pertencente à Elvira

Havia, ainda, a função de presidente. Ela era responsável por subscrever as atas das sessões e os diplomas das associadas, “vigiar sobre as associadas e comunicar-lhes as ordens do diretor” (Ibidem, p. 25), recitar orações junto com as demais participantes, apresentar os nomes das jovens que tivessem interesse em ingressar na entidade, e nomear, se fosse necessário, as “zeladoras do altar” que atuariam no mês de Maria e nas principais festas de Nossa Senhora para a ornamentação do local. Por isso, fica evidente que a presidente era uma pessoa de extrema confiança do diretor e da diretora, que denunciaria quem não seguisse as ordens com diligência.

O capítulo IV dos estatutos das Filhas de Maria foi referenciado no último ponto dessa dissertação: são as obrigações e conselhos diretamente dirigidos às participantes da instituição. Por sua vez, no capítulo V são listadas as penas perante o descumprimento de alguma determinação, as quais especificamos a seguir:

1.As repreensões dos superiores devem aceitá-las com humildade, e seguir os bons conselhos e avisos que lhes forem dados; 2. Compete, ordinariamente, ao conselho excluir um membro da associação. A pena será aplicada, exceto o caso de grave escândalo, depois de três admoestações; outras penas, que o conselho pode decretar, são: privar a delinquente de trazer a fita por um determinado tempo, obrigá-la a fazer um ato de reparação, rebaixá-la de categoria, etc. (RÖWER, 1953, p. 29).

Inegavelmente uma moça que burlasse qualquer “obrigação e conselho” previamente definido era fortemente reprimida, conforme as próprias palavras do frei Basílio Röwer. Inclusive elas eram nominadas como “delinquentes”, uma palavra extremamente forte e humilhante. Ser expulsa e/ou não poder utilizar a fita de Filha de Maria por um determinado tempo era algo que feria não só aquelas mulheres, mas também suas famílias. A expulsão gerava uma série de sentimentos e angústias nessas mulheres, muitas vezes difíceis de serem descritas pelas entrevistadas49.

No penúltimo capítulo (VI) dos estatutos, o autor delimita as “disposições regulamentares” das Filhas de Maria, que são seis, no total. Neste item, ganha destaque o regulamento de admitirem apenas moças solteiras na associação – tanto para a primeira, quanto para a segunda categoria – além de uma observação quanto à solenidade de admissão. “Não há

49 No livro Devote della Vergine: histórias de mulheres em Nova Trento (2017), a entrevistada Carmela Ceccato

Dell’Antônia demonstrava muito temor ao contar sua história de vida. Ela foi expulsa das Filhas de Maria após cortar os cabelos. As palavras do padre e das religiosas com quem conviveu, nunca foram esquecidas. Depois de certo tempo, ela pensou em seguir a vida religiosa, mas ao conversar com as Irmãs, uma delas respondeu: “Se não serviu para Filha de Maria, quem dirá para as freiras”. Ela chorou por vários dias e jamais esqueceu o episódio. (FACCHINI, 2017, p. 97).

um dia fixo” (RÖWER, 1953, p. 30), mas havia uma forte influência para que essas cerimônias acontecessem sempre durante alguma festividade de Nossa Senhora – 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, por exemplo.

As disposições continuam com o item 2, relativo à constituição do conselho, em que a diretora e a vice-diretora são nomeadas pelo diretor por tempo indefinido, sendo “conveniente” que sejam Irmãs (Ibidem, p. 30). Já as demais são eleitas pelos votos das Filhas de Maria propriamente ditas, no dia 8 de dezembro ou no domingo seguinte a esta data, juntamente com a profissão das orações prescritas no cerimonial. Elas também poderiam ser reeleitas. Mesmo assim, era sugerida a apresentação de dois ou três nomes para serem votados para o cargo de diretora. Neste caso, o diretor não tinha voto, mas a diretora dispunha de dois deles. Em caso de empate, o diretor colocava numa urna os nomes das que empataram e, a mais nova das eleitoras, extraía um deles, elegendo a nova sucessora.

Quando alguma associada mudasse de cidade, se esta possuísse uma Pia União, poderia pedir uma carta de recomendação de seu diretor, a fim de ser admitida e transferida para aquela entidade (item 3). Em se tratando de enfermidade de alguma Filha de Maria, “as suas irmãs espirituais deveriam visitá-la e confortá-la espiritual e materialmente” (RÖWER, 1953, p. 31). O mesmo congraçamento valia em caso de falecimento: era de suma importância a presença de todas as participantes na missa de enterro de uma colega, inclusive rezando o terço e oferecendo a comunhão. E, no dia 2 de novembro, todas deveriam estar presentes na missa especial dedicada às participantes falecidas, especialmente daquelas associações agregadas à primária (itens 4 e 5).

O último item (número 6) alertava para o fato de que todas deveriam cumprir com as recomendações. “Uma boa Filha de Maria observá-los-á com zelo e exatidão. Nada vale trazer o título de Filha de Maria se a vida de quem o trouxer não for digna desse título” (Ibidem, p. 31). De alguma forma, as palavras eram aplicadas em tom de ameaça, fazendo-as entender que não poderia haver qualquer tipo de falseamento ou desvirtuação. O filósofo Foucault (2014) também nos auxilia nesta questão, ao explicar que essa moral ou esse conjunto de normas foi estrategicamente pensado, escrito e ensinado por homens, ou seja, por um patriarcado que se impunha. Por conseguinte, as mulheres eram vistas apenas a título de objetos ou no máximo “como parceiras, às quais convém formar, educar e vigiar, quando as tem sob poder, e das quais, ao contrário, é preciso abster-se quando estão sob o poder de um outro (pai, marido, tutor)” (FOUCAULT, 2014, p. 30). Mais do que cuidar dessas mulheres, a proposta era o próprio cuidado com o comportamento sexual ou a problematização deste, sendo objeto de reflexão, matéria para estilização.