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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Elis Facchini

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Academic year: 2021

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PUC-SP

Elis Facchini

“Toda mulher em liberdade é um perigo”:

A Pia União das Filhas de Maria no município de Nova Trento-SC

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo 2019

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PUC-SP

Elis Facchini

“Toda mulher em liberdade é um perigo”:

A Pia União das Filhas de Maria no município de Nova Trento-SC

Mestrado em Ciência da Religião

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciência da Religião - área de concentração Estudos Empíricos da Religião, sob orientação da professora Dra. Maria José Fontelas Rosado Nunes.

São Paulo 2019

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Banca Examinadora: ____________________________________________

____________________________________________

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A todos os meus antepassados e, em especial, à minha avó, Maris Stella Cadorin Dalri (in memorian), por ter me ensinado que a vida pode ter um pouco mais de ternura e amor. À minha família, especialmente meus pais, Genésio e Zaide, que sempre me incentivaram a prosseguir com os estudos. Ao meu marido, Paulo, que está presente em todos os momentos.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)/PROSUC e Fundação São Paulo, entre os anos de 2017-2019. Código de financiamento no 88887.199021/2018-00.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)/PROSUC and Fundação São Paulo, between the years of 2017-2019. Finance Code no 88887.199021/2018-00.

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Muitas vezes palavras não são suficientes para expressar nossos mais sinceros sentimentos de gratidão. São muitas pessoas que estiveram envolvidas com a gente ao longo da nossa trajetória acadêmica, especialmente no mestrado. Mas pretendo condensar as pessoas e instituições que foram muito importantes para a conclusão deste trabalho.

Primeiramente, meu sincero agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), juntamente com a Fundação São Paulo (FUNDASAP) por terem me agraciado com a bolsa de estudos. Sem este auxílio, jamais conseguiria realizar este curso e finalizá-lo.

À Paróquia São Virgílio de Nova Trento (SC), que me possibilitou o acesso aos livros de atas e outros documentos das Filhas de Maria, manuscritos entre os de 1902 e 1964.

À Rosiana, da cidade de Joinville-SC, que num gesto de profundo carinho me cedeu o xerox de um livro raro, já que este não existe mais, nem mesmo em sebo. Ao Rodrigo Sartoti, que me enviou a cópia de um outro livro sobre Nova Trento, este também bastante antigo, que eu pensei nunca mais encontrar. E ao André Martinello, namorado da minha amiga, Magali Moser, que me indicou das muitas obras que estão nesta dissertação. Muito obrigada por este gesto lindo de vocês!

Às minhas quatro queridas entrevistadas e ao meu único entrevistado, Renzo. Com a ajuda de todas/os vocês, foi possível que eu estruturasse este texto! Agradeço as longas conversas, os cafés, o carinho, as palavras de incentivo para que eu não desistisse. Muito obrigada!

Ao meu marido, Paulo, que não me permitiu desistir, embora em muitos momentos eu quisesse fazer isso. Foi ele quem me incentivou a voltar aos estudos, a entrar novamente na universidade e que, durante esta trajetória acadêmica, comprou muitos dos livros que eu precisava para finalizar esta dissertação! Te amo e te quero muito bem!

À minha família, que sempre me incentivou a estudar – desde os primeiros anos do colégio até a faculdade – e que acreditou em mim. Palavras de agradecimento são poucas aqui para expressar minha gratidão e amor.

A todos os professores do curso de Ciência da Religião e, em especial, à Zeca – Maria José Fontelas Rosado Nunes, que abraçou a minha pesquisa com muito carinho. Fico muito grata e honrada de ter sido sua aluna e de ter você como minha orientadora!

Aos professores que estiveram presentes na minha banca de qualificação: Ênio da Costa Brito e Brenda Carranza. Suas contribuições foram fundamentais para que eu desse

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aceitarem participar da minha banca (oficial): será uma honra tê-los novamente neste momento tão significativo da minha vida!

Um agradecimento muito especial, ao professor Fernando Torres-Londoño, que me possibilitou enxergar com outro olhar a história da Companhia de Jesus, retratada brevemente aqui. E ao professor e coordenador deste curso, Frank Usarski, por ter me indicado algumas obras sobre teoria da transplantação religiosa. Muito obrigada por toda força e pelo conhecimento compartilhado!

À Andreia Bisuli de Souza, secretária deste curso, sempre muito solícita e atenta a todos os prazos. Qualquer ajuda ela sempre nos atendia com muita educação e carinho! Fico feliz por ter te conhecido ao longo dessa trajetória! Muito obrigada!

À minha psicóloga, Janete, que ingressou na minha vida no meio da correria do mestrado, me apontando caminhos, me fazendo refletir sobre inúmeros acontecimentos e me segurando na mão (embora não fisicamente). Sua ajuda foi primordial para que eu conseguisse vencer meus medos, minhas angústias, a ansiedade e o stress. Sem palavras para expressar minha gratidão por sua contribuição nesta fase final!

Agradeço, também, a todos os professores de língua italiana que passaram por mim ao longo dos últimos anos: ao meu primo, Juliano Martins Mazzola, à Valdirene Dalla Brida e à Kamila Trainotti. Esta última, minha grande amiga, que sempre atendeu aos meus chamados quando eu tinha alguma dúvida com o italiano e/ou o dialeto, muito solícita e muito carinhosa, e que me ajudou na tradução do resumo! Muito obrigada por todas as tuas contribuições.

À Manuela Ribeiro, que no período de conclusão desse texto me apontou caminhos que eu não havia percebido até aquele momento. Sua cooperação foi muito importante para que eu chegasse até aqui! Muito obrigada!

E, a todos os colegas – do mestrado e do doutorado também – que, de alguma forma, passaram por mim durante o curso de Ciência da Religião. Em especial, quero agradecer às pessoas que me ajudaram durante o processo de construção desse texto: Marco Antônio de Sá, Sabrina Alves e Ana Trigo. E, um agradecimento caloroso à minha colega de turma, Solange, e à minha amiga, Silvia Geruza, que me ajudaram na tradução (para o Inglês) do resumo.

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“Porque há uma história que não está na história e que só pode ser resgatada apurando o ouvido e ouvindo os sussurros das mulheres” (Rosa Montero)

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Maria no município de Nova Trento-SC. 2019. 212 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da

Religião) – Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2019.

RESUMO

A Pia União das Filhas de Maria foi uma instituição vinculada à Igreja Católica com a proposta de congregar mulheres solteiras, promover as virtudes cristãs e preservar a pureza com a proteção da Virgem Maria e de Santa Inês. A pesquisa cumpriu dois objetivos maiores: preservar a memória de mulheres que participaram desta entidade, no município de Nova Trento, Estado de Santa Catarina, especialmente entre os anos de 1902 e 1964, período em que a entidade esteve ativa, investigando a atuação desta perante essas senhoras e suas descendentes. E mostrar como as Filhas de Maria absorvem os princípios da moral católica repressora e se submetem ao controle da Igreja, mas, ao mesmo tempo encontram formas de transgredir algumas regras, de contestá-las e aproveitar o espaço de socialização que significavam as reuniões e outras atividades da organização. A pesquisa adentrou nesse mundo ambíguo da religião. Foram utilizados três métodos de análise: documental, buscando informações mais detalhadas nos livros de atas e no manual da associação; pesquisa de campo, por meio de entrevistas semiestruturadas com questões em aberto, iniciadas após prévia aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa e consentimento esclarecido oral das entrevistadas e do entrevistado. Foram realizadas quatro entrevistas com mulheres – ex-participantes da instituição referida, e um homem, o sociólogo italiano Renzo Maria Grosselli; e, por fim, a bibliográfica, nas áreas de Ciência da Religião, Gênero, Sociologia, História, Filosofia e Psicologia. Para examinar todo este material, foram utilizados os recursos oferecidos pelo método de análise de conteúdo. Ao concluir, pode-se dizer que ao estudar as Filhas Maria, observa-se um forte disciplinamento, que afetou profundamente a vida afetiva, familiar e social dessas mulheres. Porém, mesmo diante destas relações complexas, elas encontraram brechas para transgredir as regras a que eram submetidas. Encontra-se, assim, um cenário bastante contraditório e, ao mesmo tempo, muito interessante: as participantes desta associação ora seguiam com firmeza todas as determinações estabelecidas pela Igreja Católica, sendo seu espaço social e de encontro, ora optavam pela transgressão das regras e assumiam sua autonomia.

Palavras-chave: Filhas de Maria – Disciplinamento – Transgressão – Igreja Católica – Nova

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of Mary in the county of Nova Trento- SC. 2019. 212 f. Dissertation (Master of Science in Religion) - Post-graduate Program in Religion Science, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2019.

ABSTRACT

The Pia Union of the Daughters of Mary was an institution connected to the Catholic Church with the intent to congregate single women, promoting Christian virtues and preserving purity with the protection of the Virgin Mary and Saint Agnes. The research accomplished two major objectives: to preserve the memory of women who participated in this entity, in the municipality of Nova Trento, State of Santa Catarina, especially between the years 1902 and 1964, during which the entity was active, investigating those ladies and their descendants, and to show how the Daughters of Mary absorbed the principles of the repressive Catholic morality and submitted to the Church control, but at the same time they found ways to infringe some rules, to challenge them and to take advantage of the space of socialization that the meetings and other activities meant. Thus, the research has entered into the ambiguous world of religion. We used three methods of analysis: documentary, searching for more detailed information in the books of the minutes and in the manual of the association; field research, through semi-structured interviews with open questions, initiated after prior approval of the Research Ethics Committee, and informed oral consent of the interviewed and the interviewer. Four interviews were conducted with women - former participants of the referred institution, and one man, the Italian sociologist Renzo Maria Grosselli; and, finally, the bibliographical, in the areas of Religion Science (Religion Studies), Gender, Sociology, History, Philosophy and Psychology. We also used the resources offered by the content analysis method to examine the material. In conclusion, we can affirm that we found a strict discipline that deeply affected the daughters of Mary’s lives in their family, and in their emotional and social dimensions. However, even in the face of these complex relationships, they found loopholes to transgress the rules to which they were subjected. That is a very contradictory and at the same time interesting scenario: at times, the participants of that association thoroughly complied to all the rules established by the Catholic Church, which was their social and meeting space, and at other times they opted for the transgression of the rules and took control of their autonomy.

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Maria nel comune di Nova Trento-SC. 2019. 212 f. Tesi di laurea (Master in Scienza della

Religione) - Programma Post-laurea in Scienza della Religione, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2019.

RIASSUNTO

La Pia Unione delle Figlie di Maria era un'istituzione legata alla Chiesa Cattolica con la proposta di unire le donne single, promuovere le virtù cristiane e preservare la purezza con la protezione della Vergine Maria e di Santa Agnese. La ricerca ha raggiunto due obiettivi principali: preservare la memoria delle donne che hanno partecipato a questa entità, nel comune di Nova Trento, nello stato di Santa Catarina, in particolare tra gli anni 1902 e 1964, durante i quali l'entità era attiva, indagando il suo ruolo nella vita di queste signore e dei loro discendenti. E mostrare come le Figlie di Maria assorbono i principi della morale cattolica repressiva e si sottomettono al controllo della Chiesa, ma allo stesso tempo trovano il modo di trasgredire alcune regole, sfidarle e approfittare lo spazio di socializzazione che erano gli incontri e le altre attività dell'organizzazione. La ricerca è entrata in questo ambiguo mondo della religione. Sono stati utilizzati tre metodi di analisi: documentario, alla ricerca di informazioni più dettagliate nei libri dei verbali e nel manuale dell'associazione; ricerca sul campo, attraverso interviste semi-strutturate con domande aperte, iniziate dopo l’approvazione del Comitato Etico della Ricerca e con il consenso orale delle intervistate e dell'intervistato. Quattro interviste sono state condotte con donne - ex partecipanti dell'istituzione citata, e un uomo, il sociologo italiano Renzo Maria Grosselli; e, infine, la bibliografia, nelle aree della Scienza della Religione, Genere, Sociologia, Storia, Filosofia e Psicologia. Per esaminare tutto questo materiale, sono state utilizzate le risorse offerte dal metodo di analisi del contenuto. In conclusione, studiando le Figlie Maria, si osserva un forte disciplinamento, che ha influenzato profondamente la vita affettiva, familiare e sociale di queste donne. Ma anche di fronte a queste relazioni complesse, hanno trovato delle scappatoie per trasgredire le regole a cui erano soggette. Questo è uno scenario molto contraddittorio e allo stesso tempo molto interessante: le partecipanti di questa associazione in determinati momenti seguivano tutte le determinazioni stabilite dalla Chiesa Cattolica, essendo il loro spazio sociale e d’incontro, ed in altre ocasioni decidevano trasgredire le regole, assumendo la loro autonomia.

Parole chiave: Figlie di Maria – Disciplinamento – Trasgressione – Chiesa Cattolica – Nova

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Figura 1 – Foto de um dos primeiros “barracões” construídos em Nova Trento, em 1875.

Percebe-se que não há mulheres nesta foto ... 35

Figura 2 – Registro do Monte Barão de Charlach – o mais alto do município, com 1.148 metros.

Na virada do século 19 para o século 20, os montes mais altos receberam cruzes como esta ... 50

Figura 3 – Fita e medalha das aspirantes à Filha de Maria, década de 1950, em Nova Trento –

parte da frente – pertencente à Elvira ... 72

Figura 4 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte da frente

– pertencente à Elvira ... 74

Figura 5 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte de trás –

pertencente à Elvira ... 75

Figura 6 – Primeira página do livro de registros das aspirantes – Registro delle Aspiranti alla Pia Unione delle Figlie di Maria, com início em 1902 ... 88 Figura 7 – Primeira ata do Diário da Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, datada de

01 de novembro de 1903 ... 91

Figura 8 – Filhas de Maria da década de 1950, ao lado da Igreja Matriz São Virgílio, em Nova

Trento. Elas usam vestido especial, completamente branco, com mangas até o punho e saias abaixo do joelho. A fita azul, com a medalha na ponta, é ostentada em seus colos ... 118

Figura 9 – Igreja Matriz São Virgílio, década de 1940. Destaque para os fundos da igreja, onde

situava-se a Cappella della Madonna del Buon Consiglio, na qual as Filhas de Maria se reuniam. Esta capela foi demolida na década de 1980, quando foi aberta a rua dos Imigrantes ... 126

Figura 10 – As Filhas de Maria reúnem-se para uma nova foto, desta vez com um vestido

confeccionado especialmente para o trabalho voluntário que estavam prestando em uma das festas da Paróquia São Virgílio. A saia foi feita com tecido de chita, e a manga é mais curta que a habitual. Década de 1950, Nova Trento ... 128

Figura 11 – As Filhas de Maria são flagradas pelo fotógrafo Amadeu, na descida do Morro da

Cruz, sul monte da onça. Década de 1950, Nova Trento ... 131

Figura 12 – Uma das entrevistadas, após o matrimônio, utiliza a fita azul de Filha de Maria. A

tradição era retirar a faixa após a cerimônia religiosa. Década de 1950, Nova Trento ... 138

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INTRODUÇÃO ... 13

CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO SOCIORRELIGIOSA DE NOVA TRENTO ... 23

1.1 – O povoamento no Sul do Brasil e em Nova Trento ... 25

1.1.1 A questão da transplantação ... 36

1.2 – O contato com os povos originários ... 39

1.3 – A construção de uma cultura religiosa em Nova Trento ... 41

1.4 – A chegada da Companhia de Jesus ... 46

1.5 – A constituição das escolas para a formação religiosa ... 51

CAPÍTULO 2 – ASCENSÃO E QUEDA DAS FILHAS DE MARIA ... 57

2.1 – A liderança de Amábile Lúcia Visintainer ... 57

2.2 – A criação das Filhas de Maria em Nova Trento ... 60

2.3 – O Manual da Pia União das Filhas de Maria ... 69

2.3.1 A primeira parte: os estatutos das Filhas de Maria ... 70

2.3.2 A parte final dos estatutos: as indulgências ... 78

2.3.3 Segunda e terceira partes: os cerimoniais e o devocionário ... 81

2.4 – Vigiar é preciso: os livros de atas da associação ... 83

2.4.1 O diário das atividades e o livro de consultas: as condutas de uma “boa” Filha de Maria ... 90

2.4.2 O protesto de fidelidade e a queda das Filhas de Maria... 99

CAPÍTULO 3 – AS FILHAS DE MARIA: LEMBRANÇAS E VIVÊNCIAS SOCIORRELIGIOSAS ... 105

3.1 – A medida dos cabelos ... 107

3.2 – “A virtude da delicadeza”: a mulher constantemente cerceada ... 109

3.3 – O uso das roupas brancas, do véu e da fita ... 113

3.4 – “Deus me livre alguma de vocês dançar” ... 120

3.5 – Práticas comuns de uma “verdadeira” Filha de Maria ... 124

3.6 – O contato com a Itália e a Santa Sé ... 132

3.7 – Vida religiosa ou vida leiga? O dilema em optar pela vida consagrada ou pela vida de mulher casada ... 135 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 145 FONTES DE PESQUISA ... 151 APÊNDICES ... 154 Apêndice A ... 154 Apêndice B ... 155 Apêndice C ... 156

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INTRODUÇÃO

Falar de religiosidade e falar de Nova Trento, para mim, é praticamente a mesma coisa. Nova Trento, município localizado no estado de Santa Catarina, recebe hoje o título de Capital Catarinense do Turismo Religioso1, e não é em vão: é a única cidade do país que possui dois santuários religiosos: o de Santa Paulina e o de Nossa Senhora do Bom Socorro, este último localizado a 525 metros de altitude, que foi erguido com força dos imigrantes trentino-italianos (tiroleses), que levaram para este monte uma imagem de Nossa Senhora com mais de 700 quilos, ainda no início do século 20 – época em que não havia roldanas e muito menos guindastes para carregá-la até o alto. Além disso, o município concentra pouco mais de 20 capelas e igrejas, espalhadas por toda sua extensão territorial. E, num contexto de apenas 14 mil habitantes, diria que este número é bastante expressivo. Em Florianópolis, por exemplo, apenas para fazer um pequeno comparativo, existem 19 paróquias2, num espaço de pouco mais de 400 mil habitantes3.

Nasci e me criei em Nova Trento. E, desde jovem, aprendi que a religiosidade4 faz parte do dia a dia da comunidade, que está tão entrelaçada com as pessoas que é difícil discernir uma da outra. Tomo como exemplo minha falecida avó, Maris Stella Cadorin Dalri, que atuou como benzedeira e sempre esteve envolvida com a Igreja Católica. Foi ela quem me ensinou que a religião foi passada de geração para geração na família. E foi “Dona Stella” que me apresentou às Filhas de Maria e me fez compreender que nossa família sempre esteve envolvida com esta entidade. No início, não entendia muito bem suas histórias, ficava maravilhada (ou espantada) com as proibições a que eram submetidas, e nunca me esqueci desta frase dela: “a gente arrotava vela de tanto que a gente ia na missa”.

1 Projeto de Lei (no 136/10), de 2010, aprovado pela Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina. Hoje o

município recebe aproximadamente 45 mil turistas e visitantes por mês, segundo dados da SANTUR (Santa Catarina Turismo S/A, do governo do estado), cuja pesquisa foi realizada em julho/2018. Informações disponíveis em: < http://turismo.sc.gov.br/institucional/index.php/pt-br/informacoes/estatisticas-e-indicadores-turisticos/category/49-estudo-da-demanda-turistica-municipal-2018>, acesso em 20 de março de 2019. A maioria vem em visita ao Santuário Santa Paulina, considerada a primeira santa do Brasil, canonizada pelo Papa João Paulo II, em 19 de maio de 2002.

2 Informações colhidas do site da Arquidiocese de Florianópolis. Disponível em:

<https://arquifln.org.br/paroquias/>, acesso em 14 de março de 2019.

3 O último censo realizado em 2010, em Florianópolis, contabilizou 421.240 habitantes, conforme informações do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/florianopolis/panorama>, acesso em 14 de março de 2019.

4 Há uma diferença entre os termos religiosidade e religião. A primeira refere-se a um sentimento, algo que você

vivencia em seu dia a dia, na prática, enquanto que a segunda refere-se a uma escolha, um sistema simbólico, sendo que pode se compor de várias dimensões, cumprindo funções individuais e sociais (USARSKI, 2006, p.125).

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Atuando como jornalista, entre 2001 e 2003, fui percebendo que muitas pessoas a minha volta – especialmente meus amigos, com a mesma idade que eu – não sabiam o que eram e o que foram as Filhas de Maria. Mas analisando sociologicamente a atuação desta entidade entre mulheres como a minha vó, percebi que ela tinha muita influência na formação das futuras famílias neotrentinas e, principalmente, agia fortemente com as moças, ou as futuras senhoras. Por isso, ao findar o curso de Jornalismo, na Univali, em Itajaí-SC, decidi que iria trazer à tona as histórias dessas mulheres. A proposta era resgatar essa memória, um tanto esquecida pela comunidade, já que as Filhas de Maria haviam finalizado suas atividades ainda na década de 1960 do século passado, ou seja, há pouco mais de 50 anos. Muitas pessoas a minha volta se surpreenderam com a escolha do tema, pois, afinal, por que revirar o passado? Por que era tão importante contar as histórias dessas mulheres?

O Trabalho de Conclusão do Curso, com a proposta de livro-reportagem chamou atenção da banca à época e foi indicado para publicação. Concretizei o sonho da obra impressa apenas 12 anos depois da minha formação em Jornalismo, ou seja, em 2017. Naquela ocasião, o tema ganhou repercussão na mídia local e regional. A imprensa me questionou quanto ao tema escolhido. E as minhas respostas se concentravam no seguinte: a proposta era dar vez e voz a essas mulheres que sequer foram ouvidas, ou nunca foram percebidas pela comunidade, que sempre deu mais atenção aos homens ou a pesquisas realizadas por eles. Mulheres simples, que dedicaram boa parte de suas vidas ao trabalho doméstico ou “da roça”; mulheres voltadas à vida religiosa, ora como leigas, ora como religiosas; mulheres dedicadas à casa, ao marido e aos filhos; mulheres que, com certeza, tiveram participação decisiva na construção da família, da sociedade.

Após este período do lançamento do livro-reportagem, que culminou, inclusive, com a apresentação da pesquisa na cidade de Altopiano della Vigolana, no Trentino Alto-Ádige (Itália), em julho de 2017, a ideia de ingressar no mestrado em Ciência da Religião chegou em um bom momento. Era hora de voltar à pesquisa sobre as Filhas de Maria, mas dessa vez com um novo olhar: com o recorte de gênero e da Ciência da Religião. A minha grande preocupação, no entanto, era encontrar as fontes: mulheres que, porventura, tivessem participado da entidade e se colocassem à disposição para novas entrevistas, já que grande parte das minhas primeiras entrevistadas havia falecido. Não demorou muito para que elas aparecessem: o livro lançado recentemente mexeu um pouco com as “moças” que participaram da instituição. Muitas delas – que eu nem conhecia – mantiveram contato para comentar sobre o texto e propor uma conversa. Claro, as mulheres que participaram das Filhas de Maria na fase mais aguda – com regras mais rígidas e cobranças mais austeras – não estavam mais entre nós – décadas de 1930

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e 1940, principalmente. Algumas delas foram retratadas no meu livro-reportagem. Restaram as participantes da década de 1950, ou seja, as últimas vivas que ainda podem contar um pouco desse passado não tão longínquo.

Foi em meio ao relato dessas mulheres que iniciei o trabalho de pesquisa no mestrado, procurando, então, envolver os elementos do campo empírico-religioso com as discussões científicas, especialmente àquelas relacionadas ao disciplinamento de corpos5 e à punição. As Filhas de Maria, antes de tudo, foram mulheres dedicadas integralmente à vida da comunidade religiosa, muito embora fossem leigas e não frequentassem uma congregação do tipo confessional. Elas deveriam seguir à risca as determinações impostas pela família e pela Igreja Católica. Entre as principais regras estavam: não cortar o cabelo, não assistir aos jogos de futebol, não usar saias acima dos joelhos, não usar mangas curtas, não dançar, não andar de bicicleta – depois esta ordem foi abdicada – não responder aos pais e aos avós, ir à missa sempre que possível, e assim por diante. Parti, então, do pressuposto – hipótese do trabalho – que, diante da forte atuação das Filhas de Maria, essas mulheres foram “moldadas”, seguindo o ideal católico daquela época: “promover as virtudes cristãs e preservar a pureza com a proteção da Virgem Maria e de Santa Inês” (FACCHINI, 2017, p. 53). A proposta era, então, analisar a Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, especialmente entre os anos de 1902 e 1964, período em que ela esteve ativa, investigando a atuação perante essas senhoras e suas descendentes.

Diante deste vasto campo empírico que se descortinou, o trabalho de dissertação possuía dois grandes objetivos: primeiramente, preservar a memória de mulheres que participaram desta entidade; e segundo, mostrar como as Filhas de Maria absorvem os princípios da moral católica repressora e se submetem ao controle da Igreja, mas, ao mesmo tempo encontram formas de transgredir algumas regras, de contestá-las e aproveitar o espaço de socialização que significavam as reuniões e outras atividades da organização. Para alcançar estes objetivos gerais, elencaram-se alguns objetivos específicos:

→ contextualizar como ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento; → investigar, nos livros de atas e no Manual das Filhas de Maria, as particularidades da atuação dessa entidade junto à comunidade;

→ registrar, através da oralidade, os relatos colhidos da memória social dessa comunidade; → investigar as influências da Igreja Católica e a construção da vocação religiosa entre essas mulheres e suas descendentes, por meio de entrevistas;

5 Segundo Michel Foucault (1987), ocorreu um disciplinamento dos corpos, para regular a população; são

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→ explicar como estas mulheres tiveram suas vozes silenciadas ao longo desses anos. A proposta foi bastante ousada e, até robusta, uma vez que mexer com o campo empírico requer preparo, jogo de cintura, uma dose de coragem e muita paciência. Entrevistar idosas traz à tona inúmeras histórias, até mesmo aquelas que não fazem parte do seu objeto de pesquisa. Mas, de qualquer forma, é muito gratificante ouvi-las, revirar este passado e fazer com que elas confiem na sua própria fala6, expressem seus sentimentos, seus anseios, seus sonhos não alcançados.

Ao adentrarmos no campo da memória, percebemos como o idoso tem a função social de lembrar e aconselhar, conforme escreveu Marilena Chauí no prefácio do livro Memória e Sociedade, de Ecléa Bosi (1994, p. 18). E ela continua: “Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a essência da cultura” (Ibidem, p. 18). Para a pesquisadora, o velho numa sociedade capitalista como a nossa, sobrevive – muitas vezes é impedido de lembrar e sofre os mais diversos tipos de adversidades. Por isso, realizar um trabalho de pesquisa envolvendo memória e idosos nos tempos atuais é como concretizar um ato revolucionário. Segundo Chauí, decaiu muito a arte de contar histórias. “‘Talvez porque tenha decaído a arte de trocar experiências’. Porque matamos a sabedoria” (CHAUÍ, In: BOSI, 1994, p. 28). O velho é alguém que se retrai em seu lugar social e, por isso, trazê-lo à luz é possibilitar que ele traga sua contribuição e sua sabedoria para o grande grupo. Produzimos, assim, com esta dissertação, uma espécie de obra de arte.

Para obter o máximo proveito das entrevistas, foi elaborado um roteiro semiestruturado7, para captar as principais informações dessas mulheres. No entanto, ao me aproximar do objeto, surgiam outras perguntas, outros questionamentos que, com certeza, não foram deixados de lado no momento do diálogo. Assim, foi possível assimilar muitos outros detalhes que, se estivesse num roteiro muito rígido, não seria possível observar. O roteiro prévio das entrevistas está disponível no Apêndice A desta dissertação.

As entrevistadas e um entrevistado foram delimitados a um grupo de cinco pessoas, ainda na fase de construção do projeto, no primeiro semestre do mestrado. Primeiramente porque precisava estabelecer um recorte com um número máximo de pessoas, para compor o projeto perante o Comitê de Ética em Pesquisa. E, segundo, porque o tempo para finalizar o

6 Esta explicação tem inspiração em Paul Thompson, em A Voz do Passado (1998).

7 O termo significa que as entrevistas contaram com uma série de perguntas abertas, ou seja, foi elaborado um

roteiro prévio de perguntas, mas o entrevistado e as entrevistadas tiveram grande liberdade para responder às questões e comentar sobre outros assuntos relacionados ao tema, de acordo com suas perspectivas.

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mestrado era curto e não me permitiria avançar ainda mais na pesquisa de campo. Acredito que, num futuro doutorado, isso poderá ser feito um maior número de pessoas.

No universo dessas cinco pessoas, quatro delas são mulheres que participaram da Pia União das Filhas de Maria em Nova Trento. Como cheguei até elas? Duas delas estiveram presentes no lançamento do meu livro-reportagem, porque estavam retratadas na capa da minha obra. Assim, em conversa informal, elas se colocaram à disposição para o diálogo. Lembrando que nenhuma delas participou da primeira pesquisa da graduação – levei em consideração a questão do autoplágio, reforçado pela academia. As outras duas mulheres surgiram ao longo da pesquisa, por indicação de amigos ou familiares próximos. Interessante é que, em nenhum momento, eu estabeleci um recorte específico, comum num trabalho socioantropológico, e as entrevistas se encaixaram perfeitamente, levando sempre em consideração a participação – ativa ou não – nas Filhas de Maria. Optamos por manter em sigilo os nomes das entrevistadas e, assim, todas elas receberam um pseudônimo. Um breve perfil – com um quadro resumo – e o conteúdo completo das entrevistas pode ser conferido nos Apêndices B e C desta dissertação.

Para completar este bloco de cinco entrevistas, optei por incluir o diálogo estabelecido com o italiano Renzo Maria Grosselli, sociólogo, jornalista e doutor em História que esteve no Brasil no mês de abril de 2018, realizando um ciclo de conferências em diversas comunidades que possuem um número significativo de descendentes trentino-italianos e/ou tiroleses. Nova Trento foi a primeira cidade a receber a conferência, no dia 7 de abril do ano passado. Considerei interessante e oportuno entrevistar Grosselli, pois suas pesquisas – de cunho sociológico – retratam: os motivos do grande fluxo migratório da Europa para o Brasil, especialmente do Trentino; a análise de documentações – da saída da Itália e da chegada ao continente sul-americano, bem como o registro de boa parte dos imigrantes trentinos, vênetos e lombardos que se estabeleceram no Brasil e, principalmente, em Santa Catarina, entre 1875 e 1900. Em meio a todos esses dados, o sociólogo traz detalhes em suas obras – algumas já traduzidas para o português8 de que a religião foi o fio condutor de todo processo migratório. Isso, para mim, já era motivo suficiente para não perder a oportunidade de entrevistá-lo, tendo em vista que suas visitas ao Brasil ocorrem esporadicamente.

8 Renzo Maria Grosselli possui diversos livros lançados, mas podemos destacar estes: 1. Vincere o Morire - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane – Santa Catarina 1875-1900. Trento, 1986; 2. Colonie Imperiali nella Terra del Caffè - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane. Espírito Santo 1874-1900. Trento, 1987; 3. Dove cresce l’araucaria. Dal Primiero a Novo Tyrol - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane. Paraná 1874-1940. Trento, 1989; 4. Da schiavi bianchi a coloni. Un progetto per le fazendas - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane. São Paulo 1875-1914. Trento,

1991; 5. Noi Tirolesi Sudditi Felici di Dom Pedro II. Trento, 2008. Grande parte destas obras já estão traduzidas para o português, mas hoje encontram-se esgotadas, pois o lançamento ocorreu há mais de 30 anos.

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Vale pontuar que todas as entrevistas foram gravadas, concomitantemente em que as anotações pessoais eram realizadas em um caderno à parte. O recurso foi utilizado para não se perder nenhum detalhe que, por ventura, poderia ocorrer se não fosse usado o gravador. Senti, em muitos momentos, que as mulheres ficavam um pouco intimidadas com o aparelho – principalmente no início da entrevista, mas depois se deixavam envolver pela conversa e, logo, abriam o cabedal de memórias. Em muitas situações, precisei voltar às perguntas para conseguir captar alguns dados mais detalhados desse passado. O medo de revelarem algumas particularidades era muito presente e perceptível nas transcrições das entrevistas, conforme é possível acompanhar no Apêndice.

Devido à falta de pesquisas e/ou livros que retratem a história das Filhas de Maria em Nova Trento, a alternativa encontrada foi ter acesso – novamente – aos livros de atas da instituição, localizados atualmente na Paróquia São Virgílio do município. A secretaria da paróquia me possibilitou ficar alguns dias debruçada sobre estes livros (no total, são oito), num espaço reservado, que foi a sala de reuniões. Não tive permissão, desta vez, de levar esses documentos para casa – quando da pesquisa, em 2005, para o TCC da faculdade, isso me foi permitido. Por isso, optei por fotografar (página por página) dos manuscritos, até porque não poderia ir a Nova Trento com tanta frequência. Isso me deu uma certa autonomia, pois a qualquer momento poderia analisar ou colher alguma informação desses livros no conforto da minha casa.

No entanto, minha dificuldade quanto a estes registros se concentrou na questão da língua. Até por volta da década de 1930, os documentos foram escritos em italiano. E, em grande parte das páginas, não era o italiano gramatical que estava aí retratado e, sim, o italiano dialetal, próprio da região de onde partiram os imigrantes, boa parte deles do Trentino e/ou do Vêneto. Por exemplo, as Filhas de Maria não utilizavam o termo “suora” para designar “freira”, mas, sim, o termo “moneche”, muito comum no dialeto praticado na minha cidade. O que me ajudou bastante, nesse sentido, foi a experiência que adquiri com o dialeto no período em que atuei como “ponto” no grupo de teatro dialetal Anima Trentina, e dos diálogos que tabulava com a minha vó, praticante do dialeto Vêneto. Em alguns outros momentos, quando não compreendia o que estava escrito, recorri aos amigos e parentes que são professores de língua italiana na minha cidade e fora dela.

Além disso, outra dificuldade foi a caligrafia: as moças utilizavam-se das canetas-tinteiro para compor os manuscritos. E, por fazerem uso do “mata-borrão”, havia momentos nos livros de atas que era quase impossível compreender a escrita. Mas, aos poucos, com muita paciência e em conversa com algumas pessoas da comunidade, consegui descobrir o que estava

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aí inserido, descortinando uma série de elementos e particularidades da história das Filhas de Maria e da própria cidade. Foi curioso para mim constatar em ata como as moças eram expulsas da associação – na frente de todas as participantes, cerca de 100 a 150 mulheres; descobrir como elas tiveram participação decisiva na construção da atual Igreja Matriz São Virgílio, realizando o bingo e promovendo festas para angariar recursos; como estas mulheres foram e são corajosas por enfrentar o clero e toda a pressão da sociedade em favor de um ideal que não era delas, mas de todo um conjunto de fatores e de imposições criadas ao longo de inúmeros anos entre a Igreja e a comunidade. São centenas de descrições – impossíveis de retratar todas, nesta dissertação – mas que foram fundamentais para a construção deste texto. Só posso agradecer à Paróquia por ter me permitido ter acesso a esses livros e contar um pouco dessas histórias aqui.

Fez parte da pesquisa documental, também, a análise do pequeno Manual da Pia União das Filhas de Maria. Não era o manual extenso – com mais de 600 páginas – comumente presente nas bibliotecas das Filhas de Maria, mas o manual compilado, uma espécie de resumo, que elas levavam para a Igreja em todas as reuniões que frequentavam. Uma das minhas entrevistadas possuía um desses pequenos manuais – livrinho de bolso, datado da década de 1950 – mas ela não me permitiu ficar com ele durante a pesquisa. Por isso, tive que sair em busca de um desses raros livrinhos. Consegui adquirir um deles em um sebo on-line, pagando um valor alto, claro, por se tratar de uma obra rara. Este, por sua vez, foi editado em 1953, sendo a 24ª edição elaborada pelo frei Basílio Röwer: uma compilação contendo as principais orações, cerimônias e regras das Filhas de Maria.

Por fim, as entrevistas – pesquisa de campo – também resultaram em uma série de informações, que refletem o modo de pensar, as características da sociedade da época, a memória dessas senhoras, entre outras singularidades que só são possíveis de conferir numa pesquisa qualitativa. Foi a partir daí que se iniciou a análise de conteúdo. Esta pode ser aplicada a tudo o que é dito em entrevistas ou depoimentos, bem como também nos livros de atas, em algumas cartas – que estão presentes nestes registros – em imagens e, inclusive, na comunicação não-verbal: gestos, posturas, maneiras de falar das entrevistadas.

Com todo esse vasto conteúdo em mãos, era hora de analisar o material com base nas teorias previamente escolhidas, lidas e consultadas. Procurei efetuar a investigação – pesquisa bibliográfica – a partir de autores nas áreas de Ciência da Religião, Gênero, Sociologia, História, Filosofia e Psicologia.

Para a hipótese do trabalho, encontrei respaldo nas teorias desenvolvidas pelo filósofo Michel Foucault, quando ele trata das questões sobre disciplinamento, poder, cuidado de si. Nesse sentido, os livros História da Sexualidade 3 (1985) e Vigiar e Punir (1987) foram os que

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mais trouxeram subsídios para compreender como ocorreu o processo de repressão dessas mulheres – desde o século 17 até o século 20 – e como esse poder direcionou os hábitos e fez do corpo objeto de proibições/articulações do prazer.

Além de Foucault, trouxe para esta dissertação teóricas feministas como a historiadora francesa Michelle Perrot (As mulheres ou os silêncios da história), a filósofa italiana Silvia Federici (Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva) e a cientista social, Raewyn Connell (Gênero em termos reais), proporcionando, assim, uma visão feminista sobre a história dessas mulheres e da minha própria cidade.

O referencial teórico contou ainda com bibliografias da área da sociologia, com Zaíra Ary (Masculino e feminino no imaginário católico: da Ação Católica à Teologia da Libertação), Maurice Halbwachs (A memória coletiva) e Paul Thompson (A Voz do Passado: história oral); área da psicologia, com Vera Paiva (Evas, Marias, Liliths... As voltas do Feminino) e Ecléa Bosi (Memória e Sociedade: lembranças de velhos); e da área da teologia, com Uta Ranke-Heinemann (Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica) e Ivone Gebara (Mulheres, religião e poder: ensaios feministas).

Para fechar este escopo de teorias, utilizamos pesquisas de diversos historiadores, que deram sustentação em inúmeros momentos da pesquisa. Aqui damos destaque à Maria Luiza Renaux e Luiz Felipe de Alencastro (História da vida privada no Brasil: Império); Peter Burke (Cultura popular na Idade Moderna); Roger Chartier (com textos sobre dominação e diferenças entre os sexos); Mary del Priore (Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia e Histórias das Mulheres no Brasil); Thomas Laqueur (Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud); Marilda Checcucci Gonçalves da Silva (Imigração italiana e vocações religiosas no Vale do Itajaí), além da feminista Rose Marie Muraro (Sexualidade da Mulher Brasileira: corpo e classe social no Brasil). Especificamente sobre a história de Nova Trento, diversos autores trouxeram subsídios para a escrita: Ivete Marli Boso (Entre passado e futuro: bilinguismo em uma comunidade trentino-brasileira); Jonas Cadorin (Nova Trento outra vez...); Renzo Maria Grosselli (Vencer ou Morrer); Ana Maria Marques (Nova Trento inCanto de fé); Walter Fernando Piazza (Nova Trento e A Igreja em Santa Catarina); Débora Izabela Ruberti (Vassoura, remédio e rosário); Vanessa Célis Ruberti (Per fare l’América: uma história de sonho, trabalho e fé) e Anderson Sartori (O cotidiano de Nova Trento durante o processo de construção da Igreja Matriz).

Em suma, todo esse referencial teórico possibilitou responder às perguntas/problemas da pesquisa, que foram as seguintes: Como ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento? O que foram as Filhas de Maria e qual a sua influência na vida social das

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mulheres? Como foi a atuação da Pia União em Nova Trento e de que forma esta afetou a constituição das famílias e de suas descendentes?

Posto isso, no primeiro capítulo explico de que forma ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento, no Estado de Santa Catarina, alicerçado numa cultura religiosa muito forte, especialmente trazida pelos imigrantes provenientes do norte da Itália, em sua maioria. Essa explicação é fundamental e muito importante, tendo em vista que a primeira diretora e fundadora das Filhas de Maria de Nova Trento foi a imigrante Amábile Lúcia Visintainer, hoje conhecida como Santa Paulina, também fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição.

Contextualizo, ainda, neste primeiro capítulo, o contato dos imigrantes com os povos originários, a construção dessa cultura religiosa – que teve forte influência da Companhia de Jesus, que chegou na cidade praticamente junto com os italianos e com os outros grupos de etnias – além da constituição e a influência das escolas na formação religiosa da população. Por fim, trago para o foco a questão da transplantação, esclarecendo como o imigrante italiano ali instalado tentou reproduzir seu padrão de cultura e religião em solo brasileiro. Transplantou, assim, os costumes e as crenças religiosas – especificamente a religião católica – para o núcleo colonial que fora designado. Utilizamos, aqui, as teorias de Michael Pye (2013).

Importante ressaltar que as Filhas de Maria não aparecem neste primeiro capítulo da dissertação. Considerei oportuno contextualizar, num primeiro momento, como foi formado o cotidiano de Nova Trento, entendendo que esse cenário foi decisivo para a criação, posteriormente, de diversas instituições, entre elas a Pia União.

No segundo capítulo, aí sim é dado ênfase à história da Pia União das Filhas de Maria: desde sua criação, em Roma (século 12), e a sua fundação em Nova Trento, no início do século 20. Por conta da falta de uma literatura específica sobre este tema, buscamos aporte no Manual da Pia União, datado de 1953, que evidenciamos acima, bem como nos documentos da instituição neotrentina. Trouxermos à luz as muitas histórias relatadas nesses manuscritos – principalmente o Diário da entidade – entre os anos de 1902 e 1964. Aqui é importante destacar a preservação dessas narrativas – até mesmo para a posteridade – já que até o momento não havia ganhado destaque ou a devida valorização.

O terceiro capítulo considero o coração deste projeto: nele esboço como foi a atuação das Filhas de Maria em Nova Trento e de que forma esta afetou a constituição das famílias neotrentinas e de suas descendentes, entrelaçado pelas histórias de vida das mulheres que aceitaram participar das entrevistas. Foi muito prazeroso constatar que, sem que houvesse uma combinação ou uma estratégia, as histórias dessas mulheres eram diferentes e muito

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particulares: uma delas foi expulsa da instituição, uma outra atuou como Filha de Maria em outra cidade (Blumenau), outra foi presidente, se destacando como líder da entidade e, por fim, uma simples congregada. Essa diversidade de histórias possibilitou que o capítulo final fosse construído com muita leveza e, ao mesmo tempo, com muita excentricidade.

Concluindo, acredito que os dois primeiros capítulos são o alicerce para o terceiro, onde demonstro, com as entrevistas, como as Filhas de Maria foram realmente moldadas e encaminhadas para seguirem um projeto extremamente forte, que visava a criação de mulheres puras e castas, conduzindo-as – na maioria das vezes – para o casamento. Contudo, elas encontraram brechas para transgredir muitas das imposições, o que será possível observar através do relato dessas senhoras: ora elas trazem à memória a saudade dos tempos da juventude – seguindo à risca as regras da instituição, ora optavam pelo rompimento, assumindo suas autonomias.

Por fim, destaco como surgiu a ideia do título deste trabalho. Ele foi modificado inúmeras vezes ao longo da pesquisa. Encontrei dificuldades para condensar, em poucas palavras, o verdadeiro teor desta dissertação. Mas, durante a última orientação com a Zeca, ela me permitiu enxergar uma frase importante, que está retratada no texto da historiadora Michelle Perrot: “Toda mulher em liberdade é um perigo” (2005, p. 447). O título, portanto, é uma citação desta escritora, presente no livro As mulheres ou os silêncios da história, e também mencionada aqui no texto.

Despeço-me neste ponto, convidando você para a leitura desta dissertação. Como uma Filha de Maria que entrega sua fita azul e segue rumo a uma nova caminhada, ofereço este texto, a fim de que você possa conhecer um pouco mais sobre a vida dessas mulheres, que em muitos momentos abdicaram dos seus sonhos, dos seus objetivos, dos seus ideais, para cumprir com os princípios de uma educação familiar rígida, embasada nos valores cristãos da Igreja Católica. Boa leitura!

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CAPÍTULO 1: A CONSTRUÇÃO SOCIORRELIGIOSA DE NOVA TRENTO

Nova Trento é um pequeno município localizado no Vale do Rio Tijucas, a aproximadamente 80 quilômetros da capital do estado de Santa Catarina, Florianópolis. Possui pouco mais de 14 mil habitantes, conforme informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)9. O município guarda forte vínculo com a religião católica desde a época de sua criação. Os imigrantes, em sua maioria oriundos da região norte da Itália10, hoje denominado Trentino Alto-Ádige, trouxeram na “bagagem” seus ritos, usos e costumes.

Lá na Europa, homens e mulheres estavam intimamente ligados à religiosidade11 católica. A Igreja assumia com facilidade seu papel norteador da comunidade. Basta analisarmos a infraestrutura das pequenas cidades da região do Trentino e do Vêneto – de onde partiram a maioria dos imigrantes que colonizaram Nova Trento – para perceber que a religião era a instituição principal das cidades. Na Itália, cada pequeno vilarejo possuía, e ainda possui, a sua igreja e o seu santo protetor principal, ou padroeiro. Por exemplo, na comunidade de Vigolo Vattaro, local de nascimento de Amábile Lúcia Visentainer, Santa Paulina, a paróquia é dedicada a São Jorge (San Giorgio). Em Besenello, outro pequeno lugarejo do Trentino, a padroeira é Santa Ágata. Já a paróquia dedicada a São Roque (San Rocco) está localizada na cidade de Nave San Rocco, e a de São Vigilio (San Vigilio), bispo de Trento, até hoje é o padroeiro da capital do Trentino Alto-Ádige12.

Interessante observar, nesse contexto, que os imigrantes trouxeram para o Brasil os seus respectivos santos de devoção, provenientes de suas cidades de origem. Na bagagem carregaram seus livros de oração (devocionários), quadros ou imagens de algum santo. Por isso, em cada bairro de Nova Trento encontramos uma igreja que fora construída por moradores de determinada região, com o padroeiro da vila de proveniência. No bairro Besenello, por exemplo, está a Capela Santa Ágata; no bairro São Roque, é onde está localizado o Oratório a São Roque; no bairro Vígolo, encontra-se a Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, mas que possui em seu interior uma imagem de São Jorge – mesmo santo padroeiro de Vigolo Vattaro, no

9 A população estimada, segundo dados do IBGE, é de 14.312 pessoas, numa área de 402,891 m2. Disponível em

<https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/por-cidade-estado-estatisticas.html?t=destaques&c=4211504>, acesso em 20 de fevereiro de 2019.

10 Importante ressaltar que quando a imigração se inicia (a partir de 1875), o Trentino Alto-Ádige não fazia parte

da Itália e, sim, do Império Austro-Húngaro. O Trentino só foi integrado à Itália em 1919, após a primeira guerra mundial (RUBERTI, 1999, p. 20).

11 Como já mencionado, a religiosidade é um sentimento, algo que está manifestado fortemente em seu dia a dia.

Ela consiste em uma série de ações/práticas que a pessoa dedica à sua religião.

12 A Diocese de Trento, Itália, possui hoje 452 paróquias, assistidas por mais de 400 sacerdotes. Informações

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Trentino Alto Ádige. À época da colonização, os imigrantes renderam muita devoção à Nossa Senhora de Lourdes13 e, não por acaso, lutaram para conseguir uma imagem dessa santa para o bairro. E, por fim, mesmo não sendo a última, no centro da comunidade está a igreja dedicada a São Virgílio, que é hoje o padroeiro de Nova Trento14, da mesma forma que em Trento, na Itália.

Além disso, as linhas do interior – uma forma que o governo, à época, registrava as demarcações dos terrenos – receberam nomes como Vígolo, Besenello, Valsugana, Vasca, Tyrol, Lombardia, ou seja, os imigrantes batizaram suas localidades com os mesmos nomes das cidades ou regiões que habitavam, outrora, na Europa.

Não é de se estranhar que, em cada pequeno vilarejo formado, foram sendo edificadas igrejas e capelas batizadas com os nomes de seus santos de devoção. No total, há hoje mais de 20 igrejas, oratórios, capelas e Santuários religiosos – como o de Santa Paulina e o de Nossa Senhora do Bom Socorro – que traduzem bem este espírito religioso e devocional do povo neotrentino.

Com base neste breve cenário, a proposta deste primeiro capítulo é explicar a construção sociorreligiosa desse município, contextualizando como ocorreu a vinda desses migrantes ao Brasil, a religião católica sempre tão entrelaçada com o cotidiano, o papel da mulher na construção desse espaço e na difusão dessa cultura religiosa, além da inserção da Companhia de Jesus como um dos fatores decisivos no controle/direcionamento dessa população. Neste capítulo também damos evidência à inserção da escola e a direta ligação com a formação religiosa da população. Com relação às mulheres, especialmente àquelas que depois passarão a fazer parte da Pia União das Filhas de Maria, a proposta é trabalhar em torno de como elas foram inseridas na formação da população, muito embora isso não receba a devida atenção por parte da população como um todo. Além disso, damos ênfase de como estas

13 As aparições de Nossa Senhora de Lourdes começaram em 11 de fevereiro de 1858, sendo que a Igreja Católica

reconheceu estas manifestações por volta de 1860. Não por acaso, as/os imigrantes já trouxeram da Europa sua devoção à Virgem de Lourdes (França). Informações colhidas do site oficial do Santuário de Lourdes, disponíveis em: <www.lourdes-france.org>, acesso em 20 de março de 2019.

14 No passado, o centro de Nova Trento possuía duas igrejas: uma dedicada a São Virgílio – cujo nome foi

“aportuguesado”, pois o verdadeiro nome é Vigilio, como em Trento, na Itália – e outra dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. No final dos anos de 1930, os padres resolveram definir que apenas uma igreja ficaria concentrada no centro e seria a sede da paróquia. Por esta razão, a igreja São Virgílio, construída na Praça Getúlio Vargas foi demolida, assim como a igreja do Sagrado Coração de Jesus, localizada junto à antiga Praça da Bandeira, hoje Praça del Comune. Uma nova igreja foi edificada pelos descendentes de trentinos e vênetos, entre os anos de 1940 e 1942, no mesmo lugar da igreja do Sagrado Coração de Jesus, porém em honra a São Virgílio. Esta foi inaugurada em 1942, inclusive com a presença do governador do Estado à época, Nereu Ramos. Informações obtidas da monografia de Anderson Sartori (2000), historiador neotrentino.

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mulheres perpetuaram a fé e a educação, mas, ao mesmo tempo, foram de certa forma excluídas, ignoradas e, até mesmo, silenciadas da historiografia tradicional.

1.1 – O povoamento no Sul do Brasil e em Nova Trento

“Mérica, Mérica, Mérica, cossa saràlo 'sta Mérica? È un bel massolino di fior!”15 Cada família neotrentina sente-se fortemente ligada às suas origens – especialmente com o Trentino Alto-Ádige, na Itália, embora o município também tenha recebido imigrantes de outras etnias, mas em menor porcentagem, como poloneses, alemães e, também, portugueses e espanhóis. Algumas características são facilmente percebidas pelas pessoas que visitam a cidade: a culinária típica, com a polenta, a pizza, o vinho, o suco de uva; o dialeto italiano – muito embora isto está se perdendo um pouco ao longo dos últimos anos; os grupos de canto e de dança típica, com inspiração na região norte da Itália e, claro, a religiosidade, sempre presente em cada canto do município, como referenciamos acima com as capelas e as igrejas que estão espalhadas por toda a extensão territorial.

A primeira leva de imigrantes começa a chegar naquela que seria a futura Nova Trento em 1875 – até 1892 o território pertenceu à Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro. São homens e mulheres provenientes, em sua maioria, do antigo Tyrol (ou Süd Tyrol) do Império Austro-Húngaro, hoje Trentino Alto-Ádige, além do Vêneto e da Lombardia italianas16. Grande parte dessas pessoas eram camponesas e camponeses: na Europa eles viviam (ou sobreviviam) com recursos provenientes da venda de produtos da lavoura, especialmente milho, batata e batata doce17. Porém, com a invenção do motor a vapor e seu emprego em máquinas, isso substituiu paulatinamente a tração animal e dispensou o excesso de mão-de-obra. As trabalhadoras e trabalhadores, que produziam em escala doméstica, encontraram fortes concorrentes nas indústrias. As mulheres, da mesma forma que os homens, trabalhavam assiduamente nas

15 Tradução nossa: “América, América, América, o que será esta América? É um belo buquê de flores!”, trecho da

canção do folclore italiano até hoje entoada pelos moradores de Nova Trento. Os imigrantes vieram para o Brasil cheios de esperanças e na expectativa de construir uma nova vida na América.

16 Antes da chegada dos italianos, a localidade já havia recebido imigrantes de outras nacionalidades. Entre eles

havia um inglês, chamado Christovão Bonsfield, que recebeu concessão do governo imperial (1835) para explorar madeira. Dois anos mais tarde, uma firma estadunidense (Wells, Pedrich & Gonçalves) compra esta serraria e explora a região até o ano de 1838, quando passou para as mãos de um senhor chamado Pedro Höhn e que, logo em seguida, transfere o negócio para o governo provincial. Além dessas etnias, a região também recebeu imigrantes portugueses e espanhóis (CADORIN, 1992, p. 24)

17 Informações divulgadas pelo sociólogo e historiador, Renzo Maria Grosselli, durante palestra realizada em Nova

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lavouras para dar sustento às suas filhas e filhos. Em épocas de muito frio, ficavam em casa, sozinhas com os pequenos, enquanto os maridos saíam em busca de novas oportunidades de trabalho pela Europa. Especialmente no inverno, quando a neve chegava, era quase impossível plantar e colher. Restavam, então, os trabalhos alternativos, como a limpeza de chaminés ou os ofícios de pedreiro e carpinteiro, conforme elucidou Renzo Maria Grosselli, durante palestra em Nova Trento. Tamanha era a coragem dessas mulheres em permanecer por meses sozinhas, às vezes grávidas, parindo em muitos momentos com a ajuda de vizinhas ou outras parentes próximas.

Além dos problemas da produção agrícola, as trabalhadoras e os trabalhadores enfrentavam as modificações da “política fundiária, instituída por ocasião da unificação italiana18 em 1861, que fez com que milhares de agricultores tivessem suas terras confiscadas pelo governo”, aponta o historiador Jonas Cadorin (1992, p. 15). As atividades no campo, então, iam sendo cada vez mais inviabilizadas e ficavam concentradas em torno dos grandes benfeitores. As leis fundiárias e a indústria atraíram para as grandes cidades massas de agricultoras e agricultores, que vendiam sua mão-de-obra a preços reduzidos. Somado a tudo isso, não havia leis trabalhistas. Elas só surgiram após arbitrariedades praticadas no decorrer da Revolução Industrial, inicialmente em países não católicos, como o Reino Unido. Consequentemente, a Itália vislumbrou esse processo muito mais tarde. O resultado desse processo – principalmente em localidades que viviam da agricultura – foi o desemprego, que trouxe inúmeras intempéries para a população.

No final do século 19, em virtude disso tudo, a Itália passava por uma grande crise no setor de alimentos. A comida, que já era escassa, passou a um nível baixíssimo, a tal ponto que a população começou a passar fome. Mulheres e crianças foram as que mais sofreram. Com a falta de nutrientes, muitas mulheres não conseguiam gerar o leite após o parto. As crianças, subnutridas, eram alimentadas com uma espécie de “papinha”, feita de milho ou outro tipo de farinha misturada ao leite da vaca. Com dois ou três meses as crianças morriam, possivelmente contaminadas por tais alimentos. Nos registros de óbitos dos trentinos, do final do século 19, é possível verificar que as mulheres tinham filhos praticamente todos os anos19, sendo que estes

18 O Reino da Itália foi um Estado fundado em 1861 após o rei Vitor Emanuel da Sardenha ter sido proclamado

rei da Itália. O Estado foi fundado como resultado da unificação italiana, sob a influência do Reino da Sardenha, que era seu Estado antecessor legal. Este reino existiu até meados de 1946, quando os italianos optaram por uma constituição republicana, mediante plebiscito (RUBERTI, 1999, p. 20).

19 Importante destacar que um dos principais motivos das mulheres engravidarem todos os anos era a influência

da própria Igreja Católica. Na Europa e, posteriormente, no Brasil a Igreja perpetuava a ideia de que evitar filhos era pecado. Isso nos remete ao vídeo elaborado por Monty Python, grupo de comédia britânico, que parodiou esta situação em “O sentido da vida” (1984), com a canção: “Todo esperma é sagrado, todo esperma é grandioso, se um esperma é desperdiçado, Deus fica bastante irritado”. Disponível em:

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não chegavam a completar seu primeiro ano de vida. O índice de mortalidade infantil era altíssimo20.

Por isso, entre ficar na Itália, assimilar um novo modo de produção (industrial) e enfrentar todos esses problemas sociais, um grande contingente de pessoas vislumbrou uma outra solução para sair da crise: emigrar! O objetivo sonhado pelo migrante casou perfeitamente com a proposta do governo brasileiro, que iniciou uma ampla campanha, incentivando a vinda de jovens “sadios, agricultores, laboriosos e moralizados, nunca menores de dois anos, nem maiores de 45, salvo se forem chefes de família”, como consta no decreto no 6.663, de 17 de junho de 1874, assinado por José Fernandes da Costa Pereira Júnior e Joaquim Caetano Pinto Júnior21. Estes senhores eram contratantes responsáveis pelos europeus que se instalaram na Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro, comprometidos com o governo imperial de transportar para Santa Catarina, num período de 10 anos, cem mil imigrantes22.

Além da proposta de povoamento e da substituição gradual da mão-de-obra escrava, neste caso na região sudeste do país – especificamente – o governo tentou fazer da imigração um instrumento “civilizatório”, ou seja, buscaram expandir o “embranquecimento do país” (ALENCASTRO; RENAUX, 1997, p. 293). Até aquele momento, já havia se consolidado – especialmente no sul do Brasil – diversas comunidades de origem alemã. Porém, estes imigrantes traziam consigo uma cultura religiosa diferente daquela que o governo instituíra como “ideal” – a grande maioria era de origem Protestante. Havia, portanto, o privilégio pelos católicos, já que esta era a religião oficial do Estado à época. Essa mesma discussão em torno da religião e da cultura ocorreu durante a tentativa de trazer imigrantes chineses e asiáticos. Inclusive, logo no início da República, em 1889, um decreto foi publicado proibindo a entrada de asiáticos e africanos no Brasil. Nota-se, assim, que houve um favorecimento do ingresso no país de pessoas brancas e católicas. Tudo foi milimetricamente pensando e executado pelo

<https://www.youtube.com/watch?v=TKXffnb79bg>, acesso em 10 de janeiro de 2019. Esta nota foi feita com base nas anotações do curso Poder, Sexualidade e Performatividade de Gênero, realizado no primeiro semestre de 2018.

20 Informações divulgadas pelo sociólogo e historiador, Renzo Maria Grosselli, durante palestra realizada em Nova

Trento-SC, no dia 07 de abril de 2018.

21 O decreto com todas as informações deste contrato firmado com Joaquim Caetano Pinto Júnior está no livro Nova Trento outra vez..., do historiador Jonas Cadorin (1992, p. 16-20).

22 A imigração foi a solução pensada pelos líderes políticos do império brasileiro para sanar o baixo contingente

populacional que havia diante da vastidão do território. Resolvido esse interim, ficariam as fronteiras demarcadas e a posse de terra garantidas, pois uma das inquietações do governo imperial brasileiro à época, Dom Pedro II, era justamente com os vizinhos latinos: Argentina, Uruguai e Paraguai. Este acreditava, assim como uma elite da época, que através da pequena propriedade rural autossuficiente o modelo de desenvolvimento do Brasil seria alcançado. Firmou-se, então, um contrato com Joaquim Caetano Pinto Júnior, acordo esse que previa a introdução de cem mil imigrantes europeus no Brasil, num período de dez anos. (CADORIN, 1992, p. 16).

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governo e, claro, foi ao encontro das necessidades enfrentadas pelos italianos e tantos outros trabalhadores braçais da Europa daquele tempo.

Porém, nem tudo eram flores, como dizia a canção destacada no início desse texto. Das pequenas vilas italianas, as pessoas se deslocaram de trem ou de carroça até o porto mais próximo. Sabe-se que grande parte das/dos imigrantes italianos embarcaram no porto de Gênova, norte da Itália. Ali permaneceram, duas ou três noites, “ao ar livre, agachados como cães pelas ruas” (DE AMICIS, 2017, p. 19). Muitos nem puderam embarcar, pois antes de entrar na máquina a vapor rumo à América, um médico fazia um exame minucioso, impedindo de viajar quem estivesse com alguma enfermidade. Entre os diagnósticos, o mais comum era a pelagra23, que às vezes atingia toda a família, conforme explica De Amicis (2017). Revolta, frustação, aborrecimento e uma série de sentimentos assombravam as pessoas que estavam prestes a deixar a sua terra de origem. Além disso, como referido por diversos autores, inclusive por Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux grande parte das mulheres – mães, esposas e filhas – não embarcavam no navio por vontade própria, mas eram, sim, impulsionadas ou, melhor, obrigadas pelos pais ou maridos. Elas “embarcavam na aventura da imigração para o Império por escolha dos maridos ou dos pais, e não por vontade própria – e tinham consciência da carência que afligiam os imigrantes” (In: ALENCASTRO, 1997, p. 324). Essas mulheres, então, ficavam submissas às vontades do patriarcado, tendo suas vozes silenciadas.

Ao analisar a narrativa de De Amicis (2017), é possível supor a melancolia que estas mulheres enfrentavam ao abandonarem suas casas no norte italiano, venderem tudo o que possuíam – inclusive seus animais domésticos, como a vaca, a única que a ajudava na lavoura e de onde provinha o leite para o sustento da família – bem como o pequeno palmo de terra. O sociólogo Renzo Maria Grosselli pontuou, durante palestra em Nova Trento, que muitos acabavam vendendo até mesmo as portas e as janelas de suas residências para bancar as passagens até os portos e migrar com uma certa quantia no bolso. É interessante refletir a respeito do desespero dessas famílias em deixar tudo – inclusive sua história, seus familiares – apostando em algo provavelmente incerto, que não lhes proporcionaria, num primeiro momento, nenhuma garantia. Mas, o terror da fome e da apatia falaram mais alto, juntamente com o sonho de conseguir uma maior quantidade de terra para plantar e, quem sabe, enriquecer. Somado a tudo isso, havia outros dois fatores que impulsionavam as famílias a emigrarem para a América e outras regiões do globo em busca de melhores condições. O primeiro fator era o medo das consequências que poderiam surgir a partir dessa nova ordem

23 Doença de pele causada pela deficiência nutricional do ácido nicotínico ou pela falta de triptofano. Isso ocorria

Referências

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