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1.1 A REPÚBLICA E O REPUBLICANISMO NO BRASIL

1.1.1 A Primeira República (1889 – 1930): disputas e afirmação da oligarquia

Apesar das muitas esperanças despertadas em inúmeros setores da sociedade brasileira que cercaram a passagem da Monarquia para a República, as transformações acabaram por se revelar de pouca monta. O mais significativo nesse momento, podemos destacar, foram o estabelecimento da liberdade religiosa ampla, com o fim da ligação da Igreja com o Estado, e a expansão das capacidades legislativas e tributárias das províncias, a partir dali denominadas de estados. Apesar da propagada igualdade de todos perante a lei, o sistema político e social, o aparato estatal de forma geral, continuaram, na prática, serem

locus de privilégios.

Como destaca Carvalho (1987, p. 161), a República “[...] consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do envolvimento popular no governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico”.

Os historiadores Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota (2012, p. 599) caminham no mesmo diapasão ao afirmar que o sistema político implantado na Primeira República era o de uma “democracia dos mais iguais”, dos grupos oligárquicos que lutavam entre si para manter o controle dos instrumentos de poder, desde os empregos do aparelho estatal até as verbas públicas a serem distribuídas. Assim, logo ficou evidente, para inúmeros grupos da sociedade brasileira, que as mudanças almejadas não se concretizaram.

Aqui não podemos deixar de lembrar da obra clássica, Revolução dos Bichos, publicada em primeira edição no ano de 1945, pelo escritor inglês George Orwell (2009),

pseudônimo de Eric Arthur Blair, quando o sétimo mandamento da revolução (2009, p. 17), liderada por Major, Bola de Neve e Napoleão, “Todos os animais são iguais”, foi transformado no único e modificado para “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros” (2009, p. 78). Um elemento básico da República liberal, que se afirmava construir, e aqui estamos pensando em seus próprios termos, era o da igualdade jurídico-política, mas isso foi ostensiva ou dissimuladamente negado aos cidadãos brasileiros. Mesmo o mais básico dos direitos políticos liberais, franquia que se expandia em todo o Ocidente, e representava uma ampliação da arena pública, o direito de voto aos homens maiores de idade, era negada à ampla maioria dos brasileiros, conforme já apontamos. Difícil, desse modo, construir, mesmo que progressivamente, um sentido de público, de bem comum, parte fundamental do ideário republicano, numa arena pública que, sendo o esteio da liberdade, representasse a pluralidade de interesses da sociedade.

Também o historiador João Luís Fragoso (1990) aponta as limitações das mudanças no âmbito socioeconômico e seu diminuto impacto na esfera política, destacando que, apesar do, então recente, fim da escravidão o campo brasileiro não vivenciou amplo desenvolvimento de relações capitalistas e o poder restava concentrado nos agrupamento rurais, em que pese algum crescimento das cidades e das atividades industriais, que seguiam instrumentalizando o aparato estatal aos seus interesses, fossem de classe, fossem individuais.

1.1.1.1 Como viemos a construir uma República assim limitada?

O fim da Monarquia no Brasil, no ano de 1889, veio sem surpresa. Caso único de monarquia no continente34, a substituição pela República era esperada. Ainda no período

colonial, inúmeros movimentos colocavam a necessidade de transformação do regime político em nosso país, aqui podemos citar, por exemplo, as conjurações Mineira (1789) e Baiana (1798). Também no período monárquico revoltas com pretensões republicanas despontaram em vários pontos do Brasil, destaque-se a Sabinada (1837 – 1838), na Bahia, e a Farroupilha (1835 – 1845), no Rio Grande do Sul. Jornais faziam proselitismo em torno do ideário republicano e, até mesmo, um Partido Republicano foi criado em 34 Além do Brasil, somente o Haiti e o México tiveram experiências monárquicas no continente americano.

1870 (LOPEZ; MOTA, 2012).

A perda de legitimidade e sustentação política do regime monárquico no Brasil data deste período, início da década de 1870. São vários os aspectos que fazem com que a monarquia e D. Pedro II se vejam, progressivamente, sem a sustentação daqueles setores e instituições que tinham significação política no Brasil. Aqui, num brevíssimo sumário, podemos lembrar as disputas e desgastes que o Império terá com os militares, especialmente após o seu retorno da chamada Guerra do Paraguai (1864 – 1870); os confrontos com setores da Igreja Católica em torno de questões entre esta e a Maçonaria; a disseminação do ideário republicano, e, por vezes, federalista, em contraposição ao centralismo monárquico, em setores sociais urbanos e rurais, e, por fim, aquela que se tornou a mais palpitante das questões: a luta pelo fim da escravidão (IGLÉSIAS, 1993).

Como destaca o historiador Francisco Iglésias (1993, p. 179):

Então a campanha [abolicionista] fica avassaladora. Formam-se sociedades abolicionistas em todos os pontos. Certas províncias, a começar pelo Ceará e Amazonas, chegam a suprimir o estatuto. [...]. Pode-se dizer que a abolição foi obra da rebeldia do negro e do empenho da sociedade, da nação no seu todo, mais do que de seus dirigentes. [...]. Terminava a escravidão, mas a Monarquia era abalada em suas bases com a recusa de apoio dos grandes proprietários. Eles não se conformaram [...]. Se não abalou a produção agrícola, como temiam os senhores, abalou profundamente o trono. A Monarquia perde o apoio dos latifundiários, de expressão decisiva na política.

Perde o Império – ordenado em um sistema político oligárquico – a sua possibilidade de sustentação e reprodução. O apoio, das principais classes, grupos e instituições, que o mantinha à frente da sociedade brasileira esvaiu-se. Um poder político organizado dessa forma não tinha como se sustentar sem os seus apoiadores centrais que eram, de fato, os dominantes na sociedade, na política e na economia.

O sistema político no Brasil monárquico foi marcado por amplos processos de exclusão, dominado por elites oligárquicas que centralizavam a ocupação dos espaços de poder, se utilizando do mesmo para seus benefícios pessoais e de grupo. Como destacam os historiadores Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado (1999), os pobres e miseráveis eventualmente tinham direito a participar do processo eleitoral apenas no nível da eleição paroquial e se submetendo ao controle das elites que, como eleitores de província, elegiam os representantes da sociedade.

Também a historiadora Lilia Moritz Schwarcz (1998) aponta para a oligarquização do sistema político monárquico ao afirmar que a atividade política, especialmente a partir da década de 1850, ficará restrita a um grupo de poucos.

Mas para uma operação “perfeita” do sistema, o mesmo era complementado pela utilização do aparelho estatal para benefício desses grupos que o dominavam. Como afirmam Neves e Machado (1999, p. 276-27):

Contudo, o sistema não poderia funcionar sem um mecanismo que aglutinasse a base ao topo e que desse espaço, ao mesmo tempo, às manifestações de incompatibilidade, ainda presentes, no dia a dia das elites locais. Se o bipartidarismo parlamentar, regido pelo Poder Moderador da Coroa, atendeu a essa última necessidade, quanto ao primeiro aspecto, foi o clientelismo a força propulsora encontrada para fazer a máquina funcionar. [...]. Direcionou a preocupação dominante dos políticos do Império para a concessão de cargos públicos, proteção e outros benefícios, em troca de lealdade política e pessoal. Significou a arte de pactuar, criando procedimentos e práticas que marcaram profundamente a vida política brasileira, e que, com pequenas variações, continuaram a integrar o cotidiano do país até muito recentemente, senão até hoje.

Reforçando o elemento da exclusão, mas já caminhando para destacar, principalmente, esse processo de privatização do poder estatal, temos a historiadora Emília Viotti da Costa (1999) destacando que o clientelismo e o patronato, de origem colonial, impediam a organização da burocracia, mantendo-a como um grande sustentáculo das famílias políticas e seus dependentes. O público era visto como extensão, ou mesmo parte, do privado, os favores garantiam a manutenção do poder.

Por certo, como amplamente analisado por Carvalho (1987), os anos iniciais da República, especialmente na capital do país, foram de disputas, de agitação política de desabrochar de ideais. Liberais, positivistas, socialistas e anarquistas, entre outros grupos, já disputavam os caminhos da construção da cidadania no nascente regime. No entanto, o estudioso, afirma que a concepção vitoriosa foi a liberal que, destaque-se, mesmo do liberalismo ficou distante, impedindo ou dificultando a participação das pessoas nos processos políticos, mantendo o poder refém dos interesses privados das elites governantes. Um liberalismo amparado na desigualdade política, um contrassenso nos seus próprios termos.

Em obra posterior, Carvalho (1990) preocupa-se em analisar como teria conseguido o novo regime republicano se consolidar. Busca compreender como – para além – irá a nascente República conseguir a sua legitimação, e, nesse processo, analisa (1990, p. 9) as “[...] três correntes que disputavam a definição da natureza do novo regime: o liberalismo à americana, o jacobinismo à francesa, e o positivismo. [...], até a vitória da primeira delas, por volta da virada do século”.

Analisando cada uma dessas três correntes, a partir de elementos da disputa simbólica em torno de questões como os mitos de origem, do herói e da mulher República, bem como da nova bandeira nacional, Carvalho (1990) apresenta as principais utopias e visões desses grupos políticos. O grupo vitorioso, que o autor denomina de liberais à americana35, defendia o liberalismo individualista, a liberdade negativa, dos modernos, e

opunha-se à expansão da participação política e enfatizava a necessidade de organização do poder, em bases federalistas. Já os republicanos radicais, ou jacobinos, lutavam pelos ideais de liberdade, igualdade e ampla participação política, ou a liberdade dos antigos. Enquanto os positivistas se pautavam pelos ideais de progresso, identificado pelo desenvolvimento industrial e a inclusão dos trabalhadores à sociedade e pela defesa de um Executivo forte para implementar medidas necessárias ao crescimento.

Como destaca o historiador Lincoln de Abreu Penna (1997, p. 100):

Tanto o liberalismo como o federalismo, fundamentos essenciais desse projeto, tiveram uma recepção marcada pela superficialidade, característica de uma elite voltada para os encantos do eruditismo pernóstico e inconsequente. De um modo geral, os intérpretes nacionais procuravam adequar essas ideias ao restrito universo dos proprietários, reduzindo seus princípios às questões menos substantivas, ocultando propositadamente aquelas cujo significado mais progressista traria potencialmente embaraços às estruturas da sociedade brasileira ainda imersa no leito neocolonial em que se encontrava.

Como salienta Carvalho (1987), se muitos brasileiros ficaram bestializados36 com a

35 Apesar dessa denominação, cumpre observar, como Carvalho destaca (1990, p. 25), que “O modelo

americano, [...], se atendia aos interesses dos proprietários rurais, tinha sentido profundamente distinto daquele que teve nos Estados Unidos. [...]. Nessas circunstâncias, o liberalismo adquiria um caráter de consagração da desigualdade, de sanção da lei do mais forte. Acoplado ao presidencialismo, o darwinismo republicano tinha em mãos os instrumentos ideológicos e políticos para estabelecer um regime profundamente autoritário”.

36 Conforme destaca Carvalho (1987, p. 160) “[...] o bestializado era quem levasse a política a sério, era o

política brasileira na Primeira República, ou assumiram uma postura bilontra37, também,

outros tantos envolveram-se como nosso sistema político. Já a historiadora Hebe Mattos (2012) aponta que em que pese as tentativas de restrição da participação política, como, por exemplo, a proibição do direito de voto aos analfabetos, os brasileiros mesmo assim se faziam presentes no espaço público. A construção do movimento sindical e as lutas operárias por direitos trabalhistas, o surgimento e crescimento de veículos alternativos de imprensa, as atividades culturais e educacionais dos setores pobres, mostram uma dinâmica de envolvimento dos cidadãos e expressão de suas demandas. Como afirma Iglésias (1993, p. 211) “A política dos governadores e outros arranjos de cúpula não significa que o país vivesse em perfeita ordem, com aceitação geral de quanto era feito [...]”.

A historiadora Maria Efigênia Lage de Resende aponta a contradição que marcou a história republicana brasileira nas quatro primeiras décadas. Segundo ela (2003, p. 91),

É da coexistência de uma Constituição liberal com práticas políticas oligárquicas que deriva a expressão liberalismo oligárquico, com que se caracteriza o processo político da República no período compreendido entre 1889 e 1930. Ambígua e contraditória, a expressão revela que o advento da República, cujo pressuposto teórico é o de um governo destinado a servir à coisa pública ou ao interesse coletivo, teve significado extremamente limitado no processo histórico de construção da democracia e de expansão da cidadania no Brasil. [...] um sistema baseado na dominação de uma minoria e na exclusão da maioria do processo de participação política. [...].

Analisando, então, esse período da Primeira República, do ponto de vista dos principais elementos propostos pela moderna tradição do republicanismo, já discutidos anteriormente, podemos verificar que muito pouco está presente nesse momento de nossa história. Por certo, houve um repúdio à forma monárquica de governo, mas àqueles que são os aspectos mais salientes dessa matriz, vita activa, virtude cívica, a preocupação com o interesse público e a liberdade como ausência de opressão, como não possibilidade de interferências discricionárias e como possibilidade de participação, estão basicamente ausentes de nosso sistema político formal, bem como presentes apenas em alguns poucos momentos, na ação de alguns poucos grupos.

37 Conforme destaca Carvalho (1987, p. 160) “O povo sabia que o formal não era sério. [...]. Quem apenas

assistia, como fazia o povo do Rio de Janeiro por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra”.

Disso decorre, para a discussão mais geral deste trabalho, a estruturação de um Sistema de Integridade Nacional que pouquíssimo foi feito no período em questão, que foi a criação do Tribunal de Contas da União, até porque, como apontado, a distinção entre o público e o privado não se dava. Ademais, percebe-se, de maneira relativamente rápida, aquilo que a crítica de Rui Barbosa de 1919 apontara, faltava-nos República, sobrava-nos reprivada, o que, pensando na corrupção conforme apontada pelos gregos da Antiguidade, denotava a corrupção, a degradação, a degeneração, do sistema político. Apontando, assim, e desde já, as dificuldades que a sociedade brasileira enfrentaria no sentido de afirmação da ética e dos interesses públicos nas atividades governamentais e no funcionamento do sistema de poder.

De mais a mais, mesmo que se busque pensar numa perspectiva liberal, a partir das ideias de interesses e incentivos, podemos perceber que esses, ainda que estivessem presentes nas expectativas dos cidadãos, não possuíam, fossem nas instituições, fossem na arena pública, espaço para sua representação, dessa forma, contribuindo para uma postura bilontra, de descrédito e afastamento do público por parte de amplos setores, dificultando, assim, a construção de uma cultura política da virtude cívica, que poderia fazer avançar o bem comum, que separasse o público do privado.

1.1.2 A Segunda República (1930 – 1964): tensões e construção de elementos de