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2.3 TEORIAS DA CORRUPÇÃO

2.3.1 A visão liberal

Para a vertente liberal existe necessariamente uma oposição entre a sociedade civil e o Estado. A primeira tendo características virtuosas e se constituindo antes do Estado, e esse pensado como virtualmente corrupto, ao menos no âmbito de possibilidades intrínsecas.

Como aponta Guimarães (2011), o liberalismo identifica uma dicotomia entre liberdade e Estado, sendo essa uma relação inversamente proporcional, maior um, menor o outro. Esse enquadramento coloca as bases, ainda, para identificar o Estado como naturalmente ineficiente e, portanto, como fonte potencial da corrupção.

Conforme destaca Filgueiras (2008a, p. 19-20), nesse discurso:

[...] a corrupção é resultado de uma natural ineficiência do Estado e de seus órgãos burocráticos. A política é, naturalmente, o espaço dos vícios, em que impera a corrupção como prática corriqueira. O mercado, por definição, é o melhor espaço institucional de construção de bens públicos. [...]. O resultado é uma crescente despolitização do Estado, que modifica a relação entre corrupção e democracia.

Segundo aponta o cientista político Álvaro de Vita (2008), o liberalismo acaba por constituir duas vertentes principais de visão ética. Na primeira, busca reduzir ao máximo a presença do Estado, que deve ser um garantidor da ordem, da propriedade, dos contratos e das normas. Já a segunda pensa um papel para os cidadãos que devem buscar dotar as instituições da sociedade de (2008, p. 97) “[...] um 'procedimento justo', que distribua

oportunidades sociais e recursos sociais escassos de forma a permitir que cada cidadão tenha como viver de acordo com os fins que julga mais corretos e exercer seus direitos civis e políticos de forma efetiva [...]”.

Guimarães (2011) afirma que a narrativa liberal é predominante nos estudos e pesquisas das ciências humanas e sociais sobre corrupção. Segundo ele, a construção dessa visão de mundo tem cinco momentos-chave, sendo eles: o primeiro – e fundador dessa explicação – seria a visão de John Locke (1632 – 1704) na qual a sociedade civil – o espaço por excelência do privado – é entendida como anterior ao Estado, fundando os direitos naturais, em especial o de propriedade. A sociedade civil limita e condiciona a ação do Estado que deve ser mínima, voltada para a defesa da segurança das pessoas, das liberdades individuais e, como já destacado, da propriedade. O segundo momento significativo da construção da visão liberal de mundo vem com a economia clássica inglesa, que tem como seus principais representantes Adam Smith (1723 – 1790) e David Ricardo (1772 – 1823). Aqui a sociedade civil, mesmo fundada nos interesses privados, é vista como virtuosa e tem ou deve ter autonomia em relação à regulamentação estatal.

Guimarães (2011) prossegue apontando o terceiro, quarto e quinto momentos fundamentais da estruturação da cosmovisão liberal, sendo eles, respectivamente, construídos a partir das contribuições do utilitarismo inglês, especialmente no pensamento de John Stuart Mill (1806 – 1873), Karl Emil Maximilian Weber, conhecido como Max Weber (1864 – 1920), e, por fim, Norberto Bobbio (1909 – 2004). Para Mill, a construção e reprodução dos interesses, e de sua representação política, é um fruto autônomo que só pode ser limitado pelo Estado quando gerar problemas manifestos à liberdade e ao bem-estar dos outros cidadãos. Para Weber, as tensões entre a sociedade civil e o Estado geram um risco para o humanismo. Sendo assim, para a garantia das liberdades, o Estado deveria ter limitada a sua capacidade de intromissão e regulação, visto que os efeitos dessas últimas sobre a sociedade civil, especialmente no âmbito econômico, teriam consequências deletérias. Para Bobbio, a corrupção, num sentido mais amplo de degeneração, é a marca central do Estado contemporâneo. Isso se dá pela incapacidade de concretizar as promessas da democracia, que, na visão desse filósofo italiano, segundo Guimarães (2011, p. 86), seriam: “[...] a apatia dos cidadãos, a intransparência do Estado, a burocratização das decisões e a complexidade da vida moderna, que tornam incertos os controles democráticos [...]”.

Assim, para o liberalismo, ao menos nas vertentes acima apontadas, a presença do Estado, seja de forma intrusiva, seja por incapacidade de estabelecer procedimentos adequados, gera ou estimula a corrupção. Como afirma a economista Anne Osborn Krueger (1974, p. 291, tradução nossa):

Em muitas economias de mercado, restrições do governo sobre a atividade econômica são fatos da vida. Essas restrições permitem o aparecimento de uma variedade de formas de renda que serão disputadas pelos indivíduos. Algumas vezes, essa disputa é perfeitamente legal. Em outras ocasiões, essa caçada de renda pode tomar a forma de suborno, corrupção, contrabando e mercado negro82.

Em vista disso, como destaca Nogueira de Sá (2004, p. 61), nessa formulação, a corrupção “[...] é vista como um fenômeno derivado do excesso de regulamentação [...], da ausência de um sistema de punição eficiente que oferece risco baixo para o cometimento de um crime [...]”. Basicamente, instâncias que são, digamos, responsabilidades do Estado.

Os cientistas políticos Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras (2011b) destacam que até a década de 1970 a abordagem funcionalista era a predominante na análise da corrupção, já a partir do decênio seguinte, a visão econômica passou a ser preponderante. Na primeira, os elementos centrais de análise colocam que a corrupção é fruto de práticas tradicionais, que têm aceitação ou, ao menos, tolerância social, nas sociedades subdesenvolvidas, ou em desenvolvimento, como se coloca atualmente, mas que ainda não possuem um grau razoável de institucionalidade política. Ocorrendo a corrupção, conforme essa visão, em momentos de transição sociopolítica, quando pode acontecer uma certa disrupção do funcionamento das instituições – políticas e governamentais – que ela colabora para “pacificar”. Como os autores apontam (2011b, p. 10), “[...] a corrupção pode ser funcional ao desenvolvimento, por poder “azeitar” as relações políticas entre o governo e os empresários e pacificar as clivagens sociais, contribuindo, assim, para estabilidade política”. Já na segunda vertente, o destaque vai para ação racional dos agentes econômicos individuais, interessados na maximização dos seus lucros, burlando as regras do sistema, sendo considerado o Estado a fonte dos 82 “In many market-oriented economies, government restrictions upon economic activity are pervasive facts

of life. These restrictions give rise to rents of a variety of forms, and people often compete for the rents. Sometimes, such competition is perfectly legal. In other instances, rent seeking takes other forms, such as bribery, corruption, smuggling, and black markets” (KRUEGER, 1974, p. 291).

problemas, o que demanda a redução de seu tamanho e aparato regulatório. Diferenciando-se, entretanto, da visão funcionalista por considerar a corrupção um problema, e não um benefício, para as sociedades. Segundo os autores, inúmeros economistas, mesmo tendo modificado a compreensão dos impactos da corrupção, passando de uma que a percebia como uma graxa para o funcionamento do sistema para uma que a identifica os prejuízos que ela causa aos indivíduos e empreendimentos econômicos, continuam a ver a questão de uma perspectiva de custo-benefício. Disso decorre que, para se combater a corrupção, deve-se reduzir o tamanho e o papel do Estado, favorecendo o mercado que, supostamente, irá diminuir os incentivos às práticas corruptas, ampliando os seus custos.

Bignotto (2011), no entanto, destaca uma visão bastante crítica dessas teorias, pois, segundo ele, o ganho no entendimento do fenômeno da corrupção, proporcionado pelas visões econômica e funcionalista, acabam por prejudicar o entendimento político do fenômeno, por obscurecer as maneiras pelas quais a corrupção se desenvolve numa sociedade e simplesmente trabalhar com aquilo que as sociedades consideradas desenvolvidas têm e nós não, definindo, dessa maneira, padrões que devemos seguir.

Em que pese aceitar a ideia de que os mecanismos da corrupção podem ser compreendidos na medida em que analisamos as relações entre o público e o privado, Bignotto (2011) se nega a concordar com a ideia da corrupção como fenômeno exclusivo, ou até principalmente, estatal, pois segundo ele (2011, p. 33), não podemos esquecer que “[...] a vida política de uma nação existe além de suas instituições estatais. Muitos aspectos importantes da corrupção ficam escondidos quando restringimos sua análise àquilo que ocorre na esfera pública e entre os funcionários do Estado”.

Sem procurar exatamente definir o que vem a ser corrupção, o economista Robert Klitgaard (1994) nos fornece, dentro do campo liberal, com um viés econômico, uma análise que busca uma compreensão da vasta amplitude do fenômeno, no entanto, mesmo não estando expresso de forma evidente, coloca o espaço público como fonte originária ou causadora do problema, em que pese o reconhecimento do problema no âmbito privado. Segundo ele (1994, p. 11),

acima dos das pessoas e ideais que ele está comprometido a servir. Ela aparece sob múltiplas formas e pode variar de trivial a monumental. Pode incluir o abuso de instrumentos de políticas públicas [...] ou procedimentos simples, pode ocorrer no setor privado ou no setor público – e amiúde ocorre simultaneamente em ambos. Pode ser rara ou disseminada; em alguns países em desenvolvimento a corrupção tornou-se sistêmica. A corrupção pode envolver promessas, ameaças ou ambas; pode ser iniciada por um servidor público ou por um cliente interessado; pode acarretar atos de omissão ou comissão; pode envolver serviços ilícitos ou lícitos; pode ocorrer dentro ou fora da organização pública.

Klitgaard (1994) rejeita a abordagem do tema por um viés moralista, afirmando não concordar com a ideia de que a corrupção seja específica de determinados povos, culturas ou locais, mas reafirma o seu postulado liberal econômico ao destacar que os países em desenvolvimento estão mais sujeitos à corrupção, pois nesses o governo ocupa papel econômico preponderante que, em sociedades desenvolvidas, são deixadas à iniciativa privada. Klitgaard (1994) também relembra a chamada falácia da composição83 para negar – aquele que é um discurso comum sobre o tema a corrupção –

que é o fato de quando um ou alguns membros de uma organização são acusados de atos de corrupção, logo se afirma que toda aquela instituição está corrompida.

A visão liberal, com viés econômico da corrupção, por fim, leva em conta nos seus estudos dois elementos centrais para a análise do problema: o chamado custo de oportunidade, qual seja: quais são as oportunidades de perdas e ganhos para corrupto e corruptor; e o que podemos definir como custo de implementação e execução: quais serão os custos de uma política anticorrupção e que benefícios ou retornos ela produz (KLITGAARD, 1994).

Filgueiras (2008a) critica a visão liberal, ao mesmo tempo que destaca a necessidade de uma compreensão mais ampla do fenômeno, ao afirmar que corrupção não se resume a dinheiro, uma vez que ela tem custos, mas é algo mais amplo que isso, expressa a necessidade de pensarmos normas e valores de uma sociedade.

Assim, com uma visão centrada, fundamentalmente, no papel positivo do espaço privado, e até mesmo do indivíduo, como construtor de desenvolvimento e de valores benéficos

83 Para explicar a falácia da composição, usada pelos lógicos, nos utilizamos do economista Thomas C.

Schelling (1974, p. 83-84 apud KLITGAARD, 1994, p. 12) que destaca “Esperar que uma organização reflita as qualidades dos indivíduos que trabalham para ela ou imputar aos indivíduos as qualidades que vemos na organização é cometer o que os lógicos denominam 'falácia de composição'. A falácia não é um erro, claro, mas pode ser traiçoeira”.

para as sociedades, e, ao mesmo tempo, do espaço público – tomado sempre como sinônimo de estatal e/ou coletivo – como indutor ou realizador de elementos negativos, até mesmo corruptos ou corruptores, do desenvolvimento e dos valores da sociedade, a teoria liberal da corrupção está orientada para a redução da presença do Estado no âmbito político, econômico e social. Tanto do ponto de vista da ação, quanto da regulação, percebendo-se a construção do interesse público e do bem comum a partir da ação dos indivíduos, com seus interesses, qualidades e competências, e do mercado. Para o liberalismo, de modo geral, as instituições devem servir para a garantia daqueles elementos mínimos e necessários para uma – suposta – disputa em igualdade de condições entre os livres competidores. Portanto, tais instituições devem ter sua capacidade de ação reduzida vis a vis a ampliação das condições de atuação dos indivíduos e das empresas. No entanto, como destaca o economista e cientista social Eduardo Giannetti (1993, p. 96), “Há uma tensão, difícil de ser calibrada, entre as exigências da vida comunitária e as exigências da liberdade individual”. Não nos parece, no entanto, que se resolverá a questão apostando – como fazem muitos liberais – numa solução que privilegie um dos aspectos dessa tensão, não, ao menos, de forma duradoura e peremptória.