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A primeira versão e a segunda versão em Phil Found

O aporte da carta à Maxwell permite esclarecer melhor as duas versões do texto. As versões de 1966 e 1974 (segunda edição) são as seguintes:

1966 1974

Esse ponto de vista é às vezes chamado de concepção “ins- No que diz respeito à natureza das teorias e às entidades trumentalista” das teorias. Está próximo à posição defen- mencionadas nas teorias, existem atualmente duas con- dida por Charles Pierce […] cepções principais, frequentemente rotuladas de “instru- mentalismo” e “realismo”. O ponto de vista instrumenta- lista está próximo à posição defendida por Charles Peirce […]

Minha concepção, que não vou elaborar aqui, é que o con- Minha concepção, que não vou elaborar aqui, é essenci- flito entre as duas abordagens é essencialmente linguístico. almente esta. Creio que a questão não deve ser discutida É uma questão de qual maneira de falar deve ser preferida na forma: “São as entidades teóricas reais?” mas, ao in- em função de um determinado conjunto de circunstâncias. vés, na forma: “Devemos preferir uma linguagem da física Dizer que uma teoria é um instrumento confiável — isto é, (e da ciência em geral) que contenha termos teóricos, ou que as previsões de eventos observáveis que ela gera serão uma linguagem sem tais termos?” Desse ponto de vista a confirmadas — é essencialmente o mesmo que dizer que questão torna-se uma de preferência e decisão prática.* a teoria é verdadeira e que as entidades teóricas, entidades

não-observáveis sobre os quais ela fala, existem. Assim, não há incompatibilidade entre a tese do instrumentalista e a do realista. Ao menos, não há incompatibilidade desde que o primeiro evite afirmações negativas como “…, mas a teoria não consiste em sentenças que são verdadeiras ou falsas, e os átomos, elétrons e similares não existem real- mente”.*

[*em nota de rodapé:] “Uma discussão esclarecedora dos [*em nota de rodapé:] “Na minha opinião, uma maior cla- dois ou três pontos de vista dessa controvérsia, é dada por reza resulta muitas vezes quando as discussões sobre se Ernest Nagel, The Structure of Science (New York: Harcourt, determinadas entidades são reais são substituídas por dis- Brace & World, 1961), Chapter 6, ‘The Cognitive Status of cussões sobre preferências de formas de linguagem. Essa

Theories’.” concepção é defendida em detalhes no meu “Empiricism,

Semantics, and Ontology,” Revue internationale de philo-

sophie, 4 (1950), 20-40.”

Como vemos, há mudanças textuais significativas. Principalmente com a carta resposta a Maxwell, é possível depreender que Carnap apenas fez correções das formulações devido a confusão terminológica originada pela falta de distinção entre as duas versões do instrumentalismo.

Muito embora as mudanças textuais, não vejo indícios suficientes que sugiram que as altera- ções entre as versões constituam uma mudança de opinião de Carnap. Essa interpretação é obviamente fadada a ser especulativa. Ela é, contudo, parcialmente justificada, por exemplo, pela ausência de um aviso explícito. Carnap, como é sabido, quando convencido por um argumento melhor, não tinha pro- blemas em mudar de opinião. E quando o fazia, tinha por costume incluir nos prefácios das edições posteriores os pontos onde sua posição havia mudado [vários outros casos também são encontrados na seção de discussão de Replies [1963]]. Não é o caso aqui. Mesmo que não seja Carnap que redige, mas Martin Gardner, o Foreword anuncia as modificações como expondo apenas um esclarecimento das passagens — e redigidas por Carnap:

Além de poucas correções triviais, as únicas alterações textuais importantes estão nas pá- ginas 255 e 256. Em resposta a uma carta amigável de Grover Maxwell, Carnap concordou (pouco antes de sua morte em 1970) que seus muito breves comentários sobre o conflito entre instrumentalismo e realismo, com respeito à natureza das teorias científicas, fossem esclarecidos. Com isso em mente, ele fez algumas alterações nas duas páginas e acrescentou uma nova nota de rodapé referente a um artigo de 1950 que apresenta suas opiniões com mais detalhes (R. Carnap, 1974, Foreword)

Outro indício que fora, de fato, apenas uma confusão com os termos, está na nota de rodapé da versão de 66. Carnap fala sobre “dois ou três pontos de vista dessa controvérsia”. O que, provavelmente, é um resquício da distinção entre instrumentalismo negativista e neutro [além do realista] que, assim como ele esclarece na carta, o manuscrito original continha.

É fato, no entanto, que nas mudanças implementadas para a versão de 74, Carnap não qualifica as terminologias, mas opta pela remoção das partes. Ou seja, em vez de reescrever o trecho especificando melhor a referência à versão neutra do instrumentalismo, ele retira a descrição específica e conduz à discussão para o problema metaontológico, incluindo então a referência a “Empirismo, Semân- tica e Ontologia”. A primeira alternativa certamente seria a melhor: afirmar que o conflito entre as formas realista científica e instrumentalista científica (a versão neutra, mencionada na carta) é “essencialmente” linguístico e que a incompatibilidade apareceria apenas nas versões metafísicas dessas teses. Ou seja, a posição irênica poderia ser melhor defendida se a alegação fosse revisada para que mantivesse o caráter essencialmente linguístico, e se o par fosse identificado entre o realismo científico e o instrumentalismo científico (ou a abordagem das sentenças-Ramsey). Nesse caso, Carnap estaria adotando a postura irê- nica a respeito das linguagens e neutro a respeito do problema metafísico. Mesmo que tenhamos poucos

indícios de uma mudança significativa de opinião; a forma como as mudanças foram realizadas entre as duas versões dificulta uma classificação unívoca da sua opinião final.

O que Carnap quer dizer quando afirma que o conflito entre o “ponto de vista” instrumenta- lista e realista é essencialmente linguístico? Se ele afirma que obviamente as duas linguagens não dizem “exatamente a mesma coisa”, o conflito não pode ser classificado como um conflito linguístico no sentido — comumente entendido por essa expressão — de “meramente verbal”. Se uma linguagem diz mais que outra, elas não são intercambiáveis pelo nome. O que Carnap afirma é que o conflito é “essencialmente linguístico”, no sentido de que as duas versões, prevenidas de suas interpretações metafísicas, dizem aproximadamente/em termos práticos, a mesma coisa.130 Na medida em que a questão seja sobre o “entendimento” dos termos teóricos, ou seja, sua funcionalidade nas teorias, as duas opções são modos diferentes de falar sobre essa funcionalidade. Essa interpretação da passagem explica, a meu ver, a res- salva final sobre que o instrumentalista deveria evitar a afirmação negativa: a ressalva existe para que “instrumentalismo” seja separado da versão metafísica com o mesmo nome. “Instrumentalismo”, na primeira versão, deve ser lido como “Ramsey view”. De um ponto de vista geral, Carnap está reafirmando a mesma concepção que conclui Found. Log. Math. [1939] sobre a inutilidade e a impossibilidade da exigência de uma tradução explícita dos termos teóricos em termos observacionais:

entendemos ‘E’ se “entendimento” de uma expressão, sentença ou teoria significa capaci- dade de seu uso para a descrição de fatos conhecidos ou a previsão de novos fatos. Um “entendimento intuitivo” ou uma tradução direta de ‘E’ em termos referentes a proprieda- des observáveis não é nem necessário, nem possível. A situação do físico moderno não é essencialmente diferente. Ele sabe como usar o símbolo 𝜓 no cálculo para derivar previsões que podemos testar por observações. […] Assim, o físico, embora não possa nos dar uma tradução para a linguagem cotidiana, entende o símbolo 𝜓 e as leis da mecânica quântica. Ele possui aquele tipo de entendimento que por si só é essencial no campo do conhecimento e da ciência. (Found. Log. Math. [1939], pp. 68, 69)131

Ou seja, a princípio, parece que Carnap consegue compatibilizar as duas teses, a realista e a instrumentalista, a partir de uma fundamentação sobre a escolha prática acerca da linguagem preferida a ser usada na descrição das teorias. A ressalva importante aqui é que a compatibilização proposta não é entre as teses metafísicas do realismo e do instrumentalismo. Essa compatibilização seria impossível, dada a consideração que, além de diretamente opostas (contraditórias), ambas são teses metafísicas e,

130Ou, citando a máxima pragmática de Pierce, adaptada por Feigl: “A difference that is to be a difference (i. e., more

than a merely a verbal or an emotive one) must make a difference.”

131Na verdade, creio que é possível voltar ainda mais atrás; por exemplo, no esquema proposto de Aufbau. A ambição

do projeto ficava retratada na sua generalidade. O início do cap. A de Aufbau, Carnap introduz dois tipos de descrições possíveis para objetos em quaisquer domínios: descrições de propriedades e descrições de relações. O edifício, portanto, — e a radicalidade da tese de Carnap — é demonstrar também que a “ciência lida apenas com a descrição de propriedades estruturais dos objetos” (Aufbau [1928], p. 19). As descrições de propriedade indicam as propriedades individuais de cada objeto em um determinado contexto, já as descrições de relação evitam qualquer atribuição de propriedades absolutas dos indivíduos, indicando apenas asserções relativas, ou seja, as relações que esses objetos mantêm entre si: “Relation descriptions form the starting-point of the whole constructional system and hence constitute the basis of unified science. Furthermore, it is the goal of each scientific theory to become, as far as its content is concerned, a pure relation description. It can, of course, take on the linguistic form of a property description; this will sometimes even be an advantage; but it differs from a genuine property description in the fact that it can be transformed, if necessary, without loss into a relation description. In science, any property description either plays the role of a relation description except that it is in more convenient form, or else, if transformation is not yet possible, it indicates the provisional character of the theory in question (Aufbau [1928], p. 20)”

para Carnap, não possuem sentido [cognitivo]. Obviamente, não há possível compatibilização de teses sem sentido. Como teses metafísicas elas são irreconciliáveis. A opção de Carnap é, então, diplomática: orientando a solução, ou melhor, a dissolução do problema metafísico, pela concessão entre as partes em evitar os componentes de cunho metafísico de suas teses.132 Ou seja, o realista concederia evitando afirmar que as entidades teóricas “realmente existem” [o “surplus meaning”] e o instrumentalista que as mesmas “não existem realmente” [no sentido de existir independente de qualquer framework]. Ao aceitar esse acordo, podemos estar na condição de optar pela linguagem simplificada do realismo justamente pela consideração de que a forma Ramsey [Ramsey view] é também uma possível descrição satisfatória das teorias científicas. O que prevalece aqui, podemos perceber, não é uma neutralidade no sentido de uma compatibilização de pseudoteses, mas a apresentação de uma alternativa irênica, ou seja, concili- atória. A qualificação de “neutralidade”, ao menos nesse ponto, se assumida — por não apresentar um privilégio essencial por nenhuma das partes — pode confundir a solução proposta como uma adequação entre teses ontológicas opostas, e não é isso que Carnap está fazendo. A solução é uma proposta de neu- tralidade, não uma neutralização: as teses metafísicas não permanecem intactas. O concerto necessário — e isso fica claro na segunda versão do texto — é “que as questões devam ser tratadas” na forma de

preferências de linguagens.

Ou seja, Carnap é “neutro” apenas na medida em que não se considera obrigado a optar por nenhuma das alternativas metafísicas. Mas, ao mesmo tempo, aquele que escolhe entre a linguagem contendo termos teóricos não é internamente neutro: ao optar pela linguagem realista, assume-se a responsabilidade interna com os compromissos dela.

A questão agora é investigar se esses compromissos, mesmo que internos, não são equivalen- tes aos compromissos metafísicos tradicionais. Ou seja, se os compromissos internos não sejam também compromissos maiores que aqueles que um “neutralista” ficaria satisfeito em assumir. O desarme dessa situação é ESO [1950]. Não é surpreendente, portanto, que na segunda versão do texto, Carnap indique justamente ESO [1950] como o gatilho para dissolver o problema ontológico. Isto também esclarece a afirmação que “a questão problemática que ela evita não é ‘Elétrons existem?’ mas, ‘Qual é o significado exato do termo elétron?’ ”; visto que ele considera que a primeira questão já estava resolvida em ESO [1950].

Principalmente pelo seu caráter abstencionista e de dissolução — que pode ser interpretado como desabonador — a posição de Carnap descontenta instrumentalistas e realistas.133Essa apreciação do problema fica patente na versão de 74, que é onde mais claramente fica exposta uma tentativa de “mu- dança de assunto”, e que parece, portanto, fadada a desagradar. Dificilmente realistas e instrumentalistas [metafísicos] estariam dispostos conceder as afirmações sobre as asserções de conteúdo metafísico de suas teses, visto que isso seria equivalente [em alguns casos] a abandonar a sua posição.134 Mas, como

132Salmon (1994, p. 6), discutindo as revisões de R. Carnap (1974), chega à mesma conclusão.

133Em uma apresentação de Friedman (2011), Friedman inclusive menciona o descontentamento geral como um indica-

tivo de que a solução possa ser, ao final, adequada.

134Obviamente a pluralidade de posições possíveis do debate exige uma particularização dessas posições, há mais nas

duas posições que apenas a afirmação da tese metafísica, mas, ao menos de um modo geral, as afirmações metafísicas são as que mais claramente diferenciam as duas posições e podem, mesmo que fracamente, ser identificadas com elas.

Creath (2016, p. 197) defende, relacionado à disputa nominalismo/platonismo — mas que pode ser enxertada à discussão do realismo sem prejuízos — Carnap em nenhuma medida está iludido sobre que o platonista tradicional ou um nominalista tradicional, expostos à [dis]solução proposta, imediatamente reconheceriam que era tal o que eles sempre pensaram; ou seja, que as divergências pudessem ser re- duzidas a uma escolha entre linguagens. Avaliar a situação como simplesmente desabonadora seria, no entanto, pouco caridosa. Como afirmei anteriormente, a melhor descrição da opção de Carnap é a de uma atitude diplomática de sugerir uma transformação de abordagem do problema. Como uma solução diplomática, ela pode ser simplesmente rejeitada, muito embora sob o custo de perpetuar-se o conflito.