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2.2 A recusa da metafísica em Aufbau [1928]

3.1.3 O segundo método

Quanto mais os físicos optaram por subir na escala de abstração dos termos, as leis foram tornando-se mais abrangentes e incorporando uma gama maior de fenômenos. Mudou-se, então, ao segundo método de estruturar o sistema da ciência. Ele é estabelecido do topo para a base, assumindo poucos termos mais abstratos como termos primitivos e poucas leis de grande generalidade como axiomas. As leis contendo termos mais elementares são provadas por base nos axiomas.

A despeito de não poder ser aplicado em uma “forma pura” [para muitos dos termos me- nos abstratos [ou leis] não se conhece uma definição somente em termos abstratos e eles precisam ser assumidos como primitivos] essa direção é aquela que os campos mais avançados da ciência assumiu com sucesso, especialmente a física (R. Carnap, 1938a, p. 34).92

Pelo segundo método, as regras semânticas não providenciam uma interpretação completa aos termos elementares, visto que eles são relacionados aos mais abstratos por uma longa cadeia de definições. O cálculo é produzido, portanto, como se estivesse “flutuando no ar”, ou seja, sem relação direta com aqueles termos mais observacionais. Finalmente, os termos do nível mais baixo são “ancora- dos no terreno sólido dos fatos observacionais”. As leis gerais [e os termos abstratos] não são, portanto, diretamente interpretadas, apenas as sentenças singulares.

Feigl (1970, p. 6) providenciou um diagrama simplificado:

Figura 3.2: Diagrama de Feigl (1970, p. 6)

Nos dois métodos as regras semânticas foram providenciadas para os termos elementares. No primeiro método, os termos elementares foram assumidos como primitivos e, nesse caso, as regras semânticas têm a capacidade de interpretar completamente aqueles termos que são definidos a partir dos mais elementares. Alguns termos abstratos “sobram”, dado que não podem ser introduzidos por definições explícitas, apenas por condicionais (as sentenças reducionais). Portanto, para tais termos, a interpretação é incompleta; não por defeito das regras semânticas, mas pelos métodos de sua introdução: “esse método não é arbitrário,” diz Carnap, “mas corresponde a forma pela qual obtemos conhecimento

sobre os estados físicos pelas nossas observações”.

92“This second way represents the systematic procedure as it is applied in the most advanced fields of science, especially

in physics. The first way is interesting from the point of view of empiricism because it allows a closer check-up with respect to the empirical character of the language of science.” (R. Carnap, 1938a, p. 34)

No segundo método os termos assumidos como primitivos são aqueles mais abstratos. As regras semânticas responsáveis por enraizar [“ground”] o sistema nas observações só tem uma relação in- direta com os termos primitivos, produzida por uma cadeia de definições que parte dos termos abstratos até os termos elementares. Com o cálculo construído “flutuando no ar”, ele vai sendo “construído para baixo”, e por essa cadeia de definições é ligada, finalmente, até os termos elementares. “ As leis, gerais ou especiais, não são diretamente interpretadas, mas apenas as sentenças singulares” (cf. Found. Log. Math. [1939], p. 65). Para todos os termos abstratos, as regras determinam apenas uma interpretação indireta e, como no primeiro método, incompleta (cf. Found. Log. Math. [1939], p. 65).93

Contra a concepção de que para a aplicação de um cálculo físico precisamos de uma inter- pretação apenas para sentenças singulares, a seguinte objeção talvez seja levantada. Antes de aceitarmos uma derivação e acreditarmos na sua conclusão, devemos ter aceito o cálculo físico que fornece a derivação; e como podemos decidir se aceitamos ou não um cálculo físico para aplicação sem interpretar e entender seus axiomas? Certamente, para julgar a aplicabilidade de um determinado cálculo físico, precisamos confrontá-lo de uma maneira ou de outra com a observação e, para esse fim, uma interpretação é necessária. Mas não precisamos de uma interpretação explícita dos axiomas, nem mesmo de quaisquer teoremas. O exame empírico de uma teoria física dada na forma de um cálculo com regras de interpre- tação não é feito interpretando e compreendendo os axiomas e depois considerando se eles são verdadeiros com base em nosso conhecimento factual. Em vez disso, o exame é realizado pelo mesmo procedimento explicado anteriormente para obter uma previsão. Construímos derivações no cálculo com premissas que são sentenças singulares que descrevem os resulta- dos de nossas observações e com sentenças singulares que podemos testar pelas observações como conclusões. A teoria física é indiretamente confirmada em um grau cada vez mais alto se mais e mais dessas previsões forem confirmadas e nenhuma delas for desconfirmada pelas observações. Somente sentenças singulares com termos elementares podem ser testadas diretamente; portanto, precisamos de uma interpretação explícita apenas para essas frases. (Found. Log. Math. [1939], pp. 66, 67)

Carnap está permitindo interpretação direta apenas para as sentenças singulares. O pro- blema, tal como especificado pela analogia com o leigo [“layman”] é como podemos entender o sistema da física. Entender aqui significa, nos termos do leigo, ser capaz de ter a mesma relação que temos com a parte mais próxima da observação. Somos capazes de “entender” mais facilmente as porções mais pró- ximas da observação: p.ex., “o sinal 𝑃 designa a propriedade de ser azul”, para o qual temos o benefício da proximidade com os nossos sentidos. Com o progresso da ciência e a adoção do segundo método, que Carnap chama de “método de formalização” [a construção de um cálculo suplementado por uma in- terpretação] a possibilidade de um “entendimento intuitivo” tornou-se cada vez mais impraticável. Esse já era o caso com, p.ex., as equações de Maxwell e as tentativas fracassadas de providenciar um modelo visual através de uma analogia com processos macroscópicos. O mesmo aconteceu — ou aumentou — com o desenvolvimento da teoria da relatividade, da física quântica e as tentativas de atribuir interpreta- ções intuitivas para a função de onda. Tal situação levou alguns filósofos e físicos a argumentar que tais teorias não eram mais sobre a natureza, mas meros construtos formalísticos, meros cálculos. Mas isso,

93Como Friedman apresenta: “We cannot presuppose that the layman already understands the more abstract terms in

question, so we cannot introduce them in the semantical metalanguage via standard rules of designation. The alternative is to give no direct semantic interpretation at all for the abstract terms; view them as having only implicit definitions within the total language of physics; and then use the semantic interpretations (rules of designation) we can legitimately give for the more concrete or elementary terms to anchor the whole system on ‘the solid ground of observable facts’ ” (Friedman, 2011, pp. 252, 253)

diz Carnap, revela uma incompreensão fundamental sobre a função das teorias físicas. A demanda por um modelo heurístico que privilegiaria um entendimento intuitivo, por mais que possa se mostrar psi- cologicamente vantajosa (cf. Phil. Found. [1966], p. 176), não é necessária para a aplicação bem-sucedida de uma teoria física:

É verdade que uma teoria não deve ser um “mero cálculo”, mas possuir uma interpretação, com base na qual pode ser aplicada a fatos da natureza. Mas é suficiente, como vimos, tornar essa interpretação explícita para termos elementares; a interpretação dos outros termos é então indiretamente determinada pelas fórmulas do cálculo, tanto definições como leis, conectando-os aos termos elementares. (Found. Log. Math. [1939], p. 68)

É suficiente, portanto, para o entendimento da função de uma teoria científica que seja pro- videnciado uma interpretação parcial dos termos abstratos (teóricos). Ao demandar um entendimento de uma teoria física, é preciso, portanto, nos contentarmos a que esse entendimento — de uma expressão ou sentença — signifique a capacidade de descrever ou predizer novos fatos. O que, por sua vez, pode ser providenciado tanto pelo primeiro método, como pelo segundo. Mas, se for requisitado um “enten- dimento intuitivo”, ou uma tradução direta de uma expressão em termos de propriedades observacionais isso, para Carnap, não é possível, muito menos necessário.

Essa forma de recusa da necessidade de um entendimento intuitivo, creio, é a chave para entendermos as afirmações em Phil. Found. [1966] sobre o instrumentalismo e o realismo. A noção de interpretação parcial dos termos teóricos é, então, decisiva. Em Found. Log. Math. [1939] fala apenas de uma interpretação incompleta e indireta; em “Meth. Character” [1956] a noção de “interpretação parcial” ganha corpo e guarda muitas semelhanças com essa anterior.

3.2 Interpretação parcial dos termos teóricos em “Methodological