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3. SISTEMAS JURÍDICO-PENAIS CONTEMPORÂNEOS

3.7 A prisão em tempos de hibridismo

Assim, após essa breve apresentação de algumas das possibilidades de transformação/mutação da prisão, resta uma questão a ser colocada: estamos diante de uma ruptura com antigas concepções jurídico-penais, resultando, portanto, em algo inteiramente novo no curso da história ocidental? Ou temos uma continuidade dos pressupostos modernos que fundaram o direito e os sistemas penais tal qual conhecemos? O retrato que tentei traçar do sistema prisional brasileiro, através das imagens de três híbridos (a prisão-albergue, prisão-

abrigo e prisão-masmorra), trazem à tona algumas características importantes dos dias de hoje.

Primeiro, cabe analisar a ausência de um projeto reabilitacional, tal qual se colocava na modernidade, enquanto pano de fundo dos procedimentos penais. Tal fato pode ser constatado, inclusive, no discurso dos principais atores responsáveis por colocar em funcionamento a engrenagem carcerária em nosso estado. Em entrevista com o responsável pela gestão do sistema prisional do Rio Grande do Norte, o discurso é de derrota: “Do jeito

que ta nós estamos só guardando os presos, nada mais... Estamos guardando por um tempo...”.

Assim, vivemos uma “mudança em direção ao armazenamento de delinquentes”, que contraria a lógica dos períodos precedentes (séculos 19 e 20) que trazia como discurso o investimento em infratores como meio de torná-los úteis e produtivos (Hallsworth, 2012, p. 203), o que já não aparece sequer nos discursos dos gestores, menos ainda na realidade de nossas prisões.

Um segundo ponto a ser analisado, é o retorno ou, melhor dizendo, a supremacia do castigo enquanto fundamento e finalidade última das práticas penais. Tal qual sinalizado por Vera Malaguti Batista, ao discorrer sobre as ideias de Wacquant, vivemos um período onde as políticas econômicas e assistenciais do projeto neoliberal se articulam com o que esses autores chamam, conforme citado anteriormente, de “adesão subjetiva à barbárie” (Batista, 2012, p. 315).

Assim, na esteira desse processo de questionamento dos ideais positivistas de reabilitação, surgem novas formas de “punição destrutiva e retributiva” (idem). A ideia aqui é coerente com a de um “neoconservadorismo” que atualiza práticas punitivas que lembram o período medieval (O’Malley, 2012, p. 119). O híbrido prisão-masmorra serve de analisador para pensarmos esse processo. Contrariando todo um discurso de humanização das penas que marcou a modernidade, trancafiar presos na chapa por dias seguidos surge agora como algo

normal (e comum) na paisagem dos presídios brasileiros, regulamentado, inclusive, pela LEP, que prevê o uso de sanções disciplinares (como o isolamento) em situações em que a direção julgue necessário para manter a ordem da unidade prisional (Brasil, 2010) (apesar dessa mesma lei proibir o uso de cela escura).

Nesse sentido, a contemporaneidade parece ser um período onde há determinadas rupturas em relação ao período anterior. Autores como Pratt (2012) sinalizam para um crescente abandono da razão em detrimento da emoção como fundamento último das práticas punitivas. A cena do preso sendo agredido na chapa, enquanto os outros atores (guardas e presos) realizam suas atividades rotineiras sinalizam para o fato de que tais processos já se tornaram lugar comum em nossas prisões. Com os especialistas do lado de fora, “políticos e sentimento público parecem muito mais sintonizados” com o avanço cada vez maior dos sentimentos e das práticas punitivas (idem, p. 195). Como bem sinalizou Pratt (2012), presenciamos a emergência de poderes extrapenais, que se infiltram em nossos aparatos penais, demonstrando o quanto os limites humanitários modernistas fracassaram em conter o desejo de sangue e castigo. Assim, mais do que a pena propriamente dita, os detentos podem sofrer muito além do que estava previsto, de acordo com vontade da equipe e o funcionamento de cada unidade prisional.

Sem pretender esgotar as questões apresentadas, defendo nesse trabalho que a contemporaneidade tem sido marcada por práticas contraditórias que, se de um lado avançam em inovação no campo das práticas penais (regime semiaberto e aberto, penas alternativas, etc.), de outro são marcadas por um retorno a procedimentos pré-modernos, cujas principais características são: a volta dos castigos e sofrimentos corporais enquanto uma estratégia penal válida; sentenciamentos arbitrários e desproporcionais; e a prevalência de gastos improdutivos, já que a reabilitação não é mais possível ou desejada (Hallsworth, 2012).

O retorno a procedimentos pré-modernos traz à tona algo que parecia distante de nós, espacial e temporalmente: “a possibilidade de efetivamente destruir o infrator” (Pratt, 2012).

A ideia de uma sociedade sem prisões vai ficando cada vez mais distante. Pelo contrário, temos um ressurgimento de suas capacidades e funcionalidades, que, potencializadas através de suas mutações contemporâneas, atende aos diversos interesses colocados em jogo: do público, do Estado e do neoliberalismo. Aliado a isso, as características das prisões brasileiras formam um capítulo à parte no cenário jurídico-penal, diversificando as possibilidades de gestão da população prisional. A precariedade de nossas instalações, as condições degradantes de encarceramento, a superlotação, além das particularidades de cada unidade prisional, podem aumentar e muito a intensidade do sofrimento imposto, e as maneiras de gerir a população prisional.

Nessa direção, respondendo aos questionamentos que iniciaram esse tópico, é possível afirmar que temos sim uma mudança no que diz respeito aos discursos e práticas no campo jurídico-penal e às funções que a prisão assume em nossos dias. Tal fato porém não significa que estejamos vivendo uma pós-modernidade, ou mesmo “pós-modernidade penal”, como sustentam alguns autores (tais como os supracitados Hallsworth, 2012; Pratt, 2012). Cabe aqui uma breve discussão sobre o assunto.

Introduzido por Lyotard, em 1979, o conceito de pós-modernidade diz respeito ao período histórico que teve início no final do século XIX (tendo seu ápice a partir da segunda metade do século XX), caracterizado por profundas transformações sociais, econômicas, culturais e estéticas, e, principalmente, o fim das grandes narrativas (Lyotard, 2009). Dentre as suas principais características está o abandono de determinados ideais que orientaram a modernidade no que diz respeito ao progresso da sociedade, ao saber científico e à concepção de homem, a decadência na crença de determinadas instituições, equipamentos e valores que pautavam nosso modo de organização social, suscitando a ideia de ruptura e instalação de uma nova ordem (Hennigen, 2007).

Porém, conforme lembra Hennigen (2007), “no âmbito acadêmico não existe consenso quanto a estarmos vivendo em um novo período histórico, com princípios organizadores

próprios e suficientemente diferentes daqueles característicos da Modernidade” (p. 195). Assim, embora tenhamos importantes transformações em nossos dias, creio que não é possível situar um paradigma que sustente a caracterização de nosso momento atual como pós-modernidade, o que justifica o uso do termo contemporaneidade (ao invés de pós modernidade) na presente tese. Para Giddens (1991), a contemporaneidade é marcada muito mais por uma agudização e universalização das características da modernidade, do que propriamente o surgimento de um novo paradigma, o que leva o autor a denominação de “Modernidade Radicalizada” ao invés de pós-modernidade (p. 162).

O que temos no campo jurídico-penal, por exemplo, é muito mais uma mescla, um certo hibridismo prático-discursivo (o que certamente traz novos e importantes elementos para o debate) do que propriamente um novo paradigma penal. Os discursos e funções assumidos pelos sistemas penais moderno, na emergência do capitalismo e do Estado moderno, continuam fazendo valer sua força, determinando o modo de funcionamento e erigindo a racionalidade jurídico-penal que nos cerca. Tal fato não significa que novas funções e discursos se não possam se acoplar, produzindo certo hibridismo e contradições, característica do nosso atual momento, tendo como resultado o fortalecimento ainda maior de toda essa engrenagem cultural-político-jurídico-penal carcerária. Dessa forma, sou forçado a concordar com autores como Garland (1995) (Citado por O’Malley (2012)) e O’Malley (2012), que apostam na continuidade do referencial modernista na leitura da punição contemporânea, embora novos discursos e práticas venham surgindo, permitindo novas leituras da questão penal contemporânea.